Audre Lorde A Irmã Estrangeira

Mulher negra, poeta, lésbica, guerreira, mãe, professora, ativista e pensadora.

Por José Eduardo de Oliveira

Audre Lorde no início da década de 80 / Getty Images

Uma boa notícia para quem conhece ou para quem quer conhecer a obra de Audre Lorde foi divulgada na Folha de S. Paulo, dia 13/06, pelo repórter Maurício Meireles em sua coluna Painel das Letras: Editoras se unem para publicar obra de Audre Lorde.

Os livros e suas datas das primeiras edições, que serão lançados por quatro editoras independentes são: “De Uma Terra Onde Outro Povo Vive” (1973), “Entre Nós Mesmas”, poemas (1976), “A unicórnia Preta” (1978), “Velhos e Novos” (1982), “Zami, uma Biomitografia” (1982) e “Sou Sua Irmã”, obra póstuma de 2009.


Audre Lorde (1934-1992), nova-iorquina de origem caribenha de pais emigrados da ilha de Granada, localizada a nordeste da Venezuela, tinha até então somente “Irmã Outsider”, um de seus mais de uma dezena de livros, traduzido aqui no Brasil no ano passado, e ainda assim, 35 anos depois da primeira edição que foi em 1984. Nem por isso era ignorada, pelo contrário, era bastante pesquisada e cultuada, ou em inglês seu idioma original ou através de traduções independentes e em uma coletânea meio que underground de textos e poemas em PDF divulgada em vários sites, “Textos escolhidos de Audre Lorde”. Também, no ano passado uma coletânea organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, “Pensamento feminista: conceitos fundamentais”, trouxe dois textos seus traduzidos.

O livro “Irmã Outsider”, traduzido por Stephanie Borges, trás uma vigorosa coletânea de ensaios e conferências, escritos entre 1975 e 1983, que é qualquer coisa de impressionante e instigante. Lorde mostrou para todo mundo que ser pobre, lésbica e negra não é defeito de fabricação e nem doença e sim uma diferença que não passa de uma igualdade dentro das diversidades humanas e fecundas em todos os sentidos. Assim ela se retratava: “Sendo uma pessoa negra, lésbica, feminista, socialista, poeta, mãe de duas crianças – uma delas, um garoto – e parte de um casal inter-racial, eu me lembro a todo momento de que sou parte daquilo que a maioria chama de desviante, difícil, inferior, ou um escancarado ‘errado.’” Enfim, uma “outsider”, uma forasteira, uma estrangeira em todos os lugares. Mas na verdade foi sempre uma conterrânea presente em sua época como poucas. Em 1978 foi diagnosticada com um câncer de mama o que não impediu que ela seguisse em frente sem perder a criatividade a verve e a militância feminista.

Audre Lorde, faz parte desde Sojourner Truth, das feministas negras norte-americanas, passando por Toni Morrison, Angela Davis, Partricia Hill Collins, bell hooks, Alicia Garza, Patrisse Cullors, Opal Tometi e Kimberlé Crenshaw, para citar apenas algumas, porque a lista é grande.

E aqui no Brasil, mesmo sem ter suas obras traduzidas, foi e continua sendo uma referência imprescindível para ativistas feministas, dentre elas, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro, Joyce Berth, Carla Acotirene e Marielle Franco (1979-2018), que minutos antes de ser assassinada covardemente, ao despedir-se de suas colegas em um coletivo teria pronunciado a frase, "Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas.", que se encontra neste livro de Audre Lorde.


“Irmã Outsider” é um livro que quando se começa a ler, você não para e quando termina quer reler, são tão fortes seus ensaios que chegam a ser constrangedores, mas Audre Lorde, é uma ativista e quer é isso mesmo, ela é uma mulher negra e lésbica num mundo que despreza as duas, não necessariamente nessa ordem. Ela fala de erotismo, mas como poder; fala de raiva, porque o racismo e o sexismo branco não podem ser tratados de outra forma. E sem contar suas batalhas com mulheres brancas, homens negros e o desprezo de quase todos por aquela outsider, porque ela, segundo Stephanie Borges, não se encaixava nos padrões que ainda hoje são exigidos para as mulheres: “...branca, heterossexual e magra.”

O livro compõe-se de quatorze textos e uma entrevista concedida a outra ativista, poeta, ensaísta, também norte-americana, só que branca, Adrienne Rich (1929-2012), que também foi casada e mãe de três filhos e depois se assumiu lésbica, autora do importante texto, “Heterossexualidade compulsória e existência lésbica.”

Junto de Adrienne Rich em 1977 / Pinterest

Nesta entrevista, de 1979, quando ela já sabia do câncer, como num depoimento pungente, Audre Lorde, fala de sua formação, de suas profissões, inclusive como professora de brancos e policiais, de seus amores femininos, de seu marido, que era branco e de seus dois filhos e de sua mãe. Ela abre seu coração, mas não abre a guarda, “...eu já tinha colocado na minha cabeça que não ia mais me preocupar com quem sabia ou não que sempre amei mulheres. Uma coisa que sempre me fez seguir em frente – e não é coragem nem valentia, a menos que coragem ou valentia sejam feitas disso – é a percepção de que sou vulnerável de muitas maneiras, e não é algo que eu possa evitar; não me tornarei ainda mais vulnerável colocando as armas do silêncio nas mãos dos meus inimigos. Não é fácil uma lésbica assumida na comunidade negra, mas estar no armário é ainda mais difícil.”

Assim, seus escritos retratam o que ela viveu nas décadas de sessenta, setenta e oitenta e depois de trinta e cinco anos, estão aí, representados através da violência do racismo, sexismo, da homofobia, desrespeito aos direitos humanos e todo tipo de preconceitos. Como uma afro-americana-caribenha travou batalhas cotidianas contra todos se tornando uma das principais precursoras de movimentos como “Black Lives Matter” (vidas negras importam) e os questionamentos que a interseccionalidade e as questões de gênero nos propõe a toda hora.

Entretanto a ativista, Audre Lorde, que se desvencilhou bem ou mal dos problemas de sua existência e do câncer de mama, não conseguiu derrotar um câncer hepático que a ceifou em 1992, mas nunca desistiu: “Toda mudança implica crescimento, e crescer pode ser doloroso. No entanto, conseguimos aprimorar nossa autodefinição quando expomos nossa identidade no trabalho e na luta conjunta com aqueles que definimos como sendo diferentes de nós, mas com quem compartilhamos objetivos comuns. Para mulheres negras e brancas, idosas, jovens, lésbicas e heterossexuais, isso pode representar novos caminhos para a nossa sobrevivência.”

E adverte: “...as ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa grande.”

Em uma de suas últimas fotos, em Berlim 1992 / Dagmar Schulz.

José Eduardo de Oliveira é licenciado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. É autor de três livros, sendo o último "Bento Rodrigues: Trajetória e Tragédia de Um Distrito do Ouro", lançado em 2018.

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2 Comentários

  1. Texto sensacional!!!
    👏👏👏👏👏👏

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  2. bravo amigo!!!
    Mandou bem. E bem no meio da revolta mundial antifascista e antiracista!!

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