Azul Poesia

Por Neto Moreira

Imagem: Pixabay

Quando nasceu um anjo tomou-o em seus braços e pingou uma gota de poesia dentro do seu olho esquerdo. Quando ia repetir o processo no outro olho, os barulhos dos chinelos serpenteando o piso de madeira, fê-lo bater suas asas, ao que parece, deixando a obra divina incompleta. Ao que parece...

A mãe nada assistiu com os olhos da matéria, mas viu o filho vestido de sorriso sem medida de dente, sem medida de gente e pressentiu tristezas ao pequeno, porque o mundo, quando muito, não era para as pessoas lavadas em esperança. Azulou-se a vista. Só o pintado. O destro mantinha a cor de nascimento.

O menino era, realmente, diferente. E o advérbio-profecia parecia contar seu divinamento, ao desdobrar-se, como a visão do garoto, em Real e Mente. Era sim: no olho direito via o mundo como era, escravo da matéria, e, o esquerdo, na outra banda da lente latente, pintava em imaginário e som as coisas da vida. Como Ying e Yang, par em dança, os olhos viam a mesma coisa, mas sentiam diferente. Benção ou Desbenção? Não importava... A cruz é dada assim, no nascer e feliz as que carregam sem gemer.

Quando seu pai resolveu ser morto, por exemplo, tapava o olho esquerdo e via só água desconsolada e desespero. Então punha a pequena mão no olho direito e enxergava no olhar de sua mãe, o amor da despedida, da saudade que dói, mas lapida, mais sereno e grato pela vida até ali vivida. Até seu pai, encaixotado, parecia resignado com o tempo dado por Deus à ele. Passou o resto do velamento tapando o olho direito.

A familiagem nunca compreendeu sua forma de ver os viventes e as vivências. Suas narrativas das coisas eram sempre permeadas de pormenores coloridos e mesmo num grito, dizia haver alguma canção. Julgaram-no, porque é isso que sobra aos descompreendidos das razões de cada um, meio aluado, deixavam num canto, às vezes ouviam-no com espanto, quando por exemplo disse, com a segurança própria de quem relata verdades, ver o trenó do Papai Noel sobre o poste da rua na noite de natal.

Ocorre que como as mães sempre tem razão, no lado de fora da porta da casa o mundo é mais cético dessas coisas celestes e não demorou muito para que vista lhe trouxesse visitas indesejadas. Na escola era sentenciado e executado publicamente todos os dias. Definitivamente o mundo não está pronto para o diferente.

Um dia, a maldade visitou-lhe com tempo e bagagem... dessas que veio para ficar. O colega mais carente, e, portanto, valente, tinha em suas mãos uma atiradeira de pedras tristes. Mirava em um pardal, quando foi interrompido pelo garoto. Dizia: “Não faça isso. Veja como é colorido e canta. É pedaço de Deus com penas”. O assassino deixou a mira para rir, enquanto sua mão pousava sem carinho na cabeça do garoto. “És aluado mesmo! É um pardal! Chegou nessa terra sem ser convidado e vive apenas à cagar nos carros”.

Levantou a besta bélica. Puxou os elásticos como Hércules desviava rios. E o pequeno pedaço da terra, em velocidade e força, não encontrou seu objetivo, porque a mão do garoto que lhe interrompera o curso. A dor foi instantânea como a reação dos brutos. Segurou-lhe pela roupa gasta sem importar com as lágrimas e exigiu-lhe explicação antes do corretivo prometido.

Com a calma dos puros, contou-lhe sobre seus olhos, suas visões de mundo, o adorno do mistério que tanto fazia-no travesso e ao mesmo tempo sério nos dois olhares complementares. Mais benção que maldição, acreditava. Mais criatividade que exatidão, acreditava. Mais anjo do que gente, acreditava. Mais comunhão do que crente, acreditava.

O ofensor não encenava riso nem descrença. Meditava a maldade para moldá-la na carne. “Escolha um dos olhos como herança”. A resposta foi imediata como a certeza que abrigava. “O Esquerdo. Deixa-me o esquerdo”. E, na contramão do avençado, socou trinta e três vezes o seu olho que pediu para deixar intacto...

O garoto enterrou sua suave visão. A cortina de pele ainda ficava aberta, os cílios colados, mas a retina, antes coroada em santa sina, não mais brilhava a poesia e nunca mais havia chorado por aquele olho.

O garoto demorou a lembrar o calor do asfalto e o sacolejo dos ônibus. E demorou ainda mais, quase cem eternidades, para se acostumar com mundo arranhando em cinza. O mundo não andava direito pelo seu olho direito. Cinza. Só as manchetes eram vermelhas. Vestiu-se de advogado, homem de reuniões e prazos e a gravata sufocava ainda mais a memória do menino que um dia via animais nas nuvens do céu. Muitas vezes pensava “prefiro ser cego”, mas a blasfêmia logo tropeçava no pedido de perdão.

Um dia, quando o cansaço calcificava o otimismo, sentindo-se bêbado nas vias da vida, surpreso, viu que o olho d'água minava nascente nos seus dois globos. E esta era uma novidade recém-nascida em frescor e espanto. “Choro pelos dois olhos! O morto e o vivo”! E do nada onde vem e vão as criaturas celestes, o anjo apareceu em névoa de piedade:

- Voce! Porque a demora?

- Venho em boa hora: quando é preciso.

- O que traz é benção?

- Nada que necessite explicação.

- Então vais pingar poesia no olho que me sobra???

- A redenção não cabe à mim. Só trago as chaves. Abra a janela para o jardim.

O garoto não compreendia, mas atendeu: era pedido de anjo.

- Aquele pássaro é como o que salvastes. Como o vê?”

A descrença gaguejava sua garganta... “É só um pardal. Marrom. Não canta”.

- Não! Voce pode ver?

- Não... É o que listei para ti agora. Marrom, não canta.

- A poesia não está no olho, mas na vista. Esteve sempre aí. Voce que a colocou na gaiola. Voce pode ver?

O tempo congelou-se como quadro. As pessoas, os carros, o barulho, tudo estático como espectadores da cena. De longe parecia que o pássaro olhava para dentro dos olhos da alma e, como todas as coisas mágicas da vida, ele levantou voo, plainou até o garoto e entrou como um rojão em seu peito, a esperança em penas. Assustou-se com calma enquanto tudo voltava ao seu curso. Não havia anjo na sala, mas no jardim o pardal estava no mesmo local, colorido em roxo, cantando a ponto de colocar sabiá no bolso.


Neto Moreira é um poeta fajutinho, contista e compositor de rocks rurais.


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