Humanamente intragável

Por Júlia Duarte Megale

Foto: Sophia Megali

Desagradabilíssimo. Era o que sentia logo ao colocar os pés para fora da cama. Não que chamasse o que sentia verdadeiramente de um sentimento, mas era como sentia que deveria ser nessa data tão desagradável. A redundância de tudo me irritava profundamente.

Saí apressado, carregado pela agenda lotada de todos os dias e não tive tempo de escolher com atenção as meias que se adequavam ao uniforme da jornada extensa de afazeres sociais. Eram azuis. Deveriam ser verdes. Um escândalo. Um ultraje. Por esse descontentamento ridículo que me iniciou tão mal um dia tão ordinário, decidi ser absolutamente desagradável a tudo e a todos.

Não que normalmente me irritassem tão profundamente minhas meias. É que tinha desses dias em que simplesmente parece que o sol nasceu na única posição em que conseguia entrar pelas cortinas antes de o despertador tocar, ou que a cama caminha para o lado, em apenas alguns milímetros, para acertar canelas desavisadas, ou que o ovo frito matinal resolve se tostar nas beiradas. Nesses dias de tanto desgosto, parece totalmente irreal a perspectiva de emanar qualquer energia que não a de um urso recém saído da hibernação. E foi daí minha decisão.

Ao porteiro que há anos me via ir e vir, sempre com um olhar simpático e sem julgamentos aparentes, mesmo quando chegava em meus piores estados de sobriedade e humor ou com as piores companhias, cuspi por entre os dentes armados do sorriso jovial que sempre me acusavam de ter, um bom dia meio cantado. Ri comigo mesmo da agressividade do gesto. Sou um horrendo cantor.

Conseguia ser absurdo de todas as formas imagináveis enquanto caminhava exatamente no meio da calçada. Aquele andar despreocupado de quem desrespeitava o tumulto urbano fazia- me sentir um completo estorvo aos que me circundavam e, obviamente, me enchia de um prazer selvagem.

Na parada de ônibus, conversei por vinte e quatro minutos inteiros com um senhorzinho sobre qualquer assunto que não levasse a lugar nenhum. Nada de enriquecedor poderia ser espremido de minhas palavras, nenhuma opinião revolucionária podia ali se encontrar e nenhuma anedota digna de prêmios humorísticos arrancou risadas em excesso do velho. Puro papo jogado fora. Ele deve ter odiado profundamente e, sendo assim, me diverti bastante. Consegui, ainda, atingir o ápice de minha desagradabilidade ao passar o dia de trabalho cantarolando para mim mesmo, ao espantoso ponto de dois ou três colegas começarem uma cantoria por reconhecerem a música ‘mainstream’.

Assim sendo, ao cair da noite, me encontrava mais que satisfeito por ter conseguido transparecer tão bem minha insatisfação geral com a própria vida, e por ter exprimido a realização pessoal de cada gesto e palavra proferida contra os outros seres humanos, que naquela ocasião representavam meus inimigos mortais absolutos. Pude ser, perfeitamente, intragável ao mundo. Um exemplo de infortúnio social. Uma representação pura do próprio desgosto divino. Uma vergonha à moral e aos bons costumes.

Ainda que relativamente inofensivo.


Júlia Duarte Megale tem 20 anos, adora escrever, é fã de Virginia Woolf e estuda Biotecnologia na UFU      

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