Por Elza Maia
Uma singela coletânea
Para todos os jovens sentados na calçada ou ao ponto de ônibus
que sentem-se padecer no segundo austero do caminho para casa
perdidos no frescor da noite
munidos apenas
com o fone nos ouvidos.
Ser
Era um paradigma.
Deitada, via a fumaça sair por entre seus dentes e abraçar o infinito de estrelas sobre sua cabeça. Uma mão por cima do estômago, a outra lhe servia de recosto para a cabeça. Ao seu lado dedilhavam um blues tranquilo no violão. O tempo sereno sussurrava em seu ouvido a indisposição de partir.
Mas deveria ir.
E se fosse, o que seria de si?
Afundou o cigarro na toalha em que estava deitada. Cuspiu uma última vez aquela névoa que prendia na garganta. Sequer gostava do sabor que ficava. Beijou-o e voltou ao amanhecer, respirando sem perceber.
Ver
Entoar aquela melodia não era difícil para ela. O fone estéreo tangia o violão rouco enquanto ela repetia as palavras com doçura, baixinho. Seus olhos se dispersavam pelo chão, seus pés iam e viam naquele alpendre envelhecido em que sentava.
Naquele alvorecer sereno o vento levava os fios de seu cabelo de um lado ao outro.
Com o rosto erguido e agora o olhar depositado no céu ela sentiu-se inebriada.
Pintado de rosa, de azul, a luz se desfazia e refletia nos seus olhos.
Tacitamente, ouviu o trinco se abrir. Sem se despedir, entrou. Mas não via para onde ir.
Prazer
Era de noite. Como em todas as partes de sua vida havia uma música de fundo. Em cima da cama ela se movimentava com certo donaire, olhando para ele, deitado. Com os lábios entreabertos, ela observava a feição de desejo em seu rosto colorido de malícia na penumbra. O sorriso de canto estava lá, como a representação de toda a sutil tensão que o corpo dele passava a ter, arrepiado. Ergueu os braços e tirou a camiseta devagar, jogando-a ao pé da cama. Seus pés deslizavam pelo lençol de seda como uma serpente esguia na areia. Com os olhos felinos sorriu para ele, mordiscando o lábio inferior. Os cabelos, médios e repicados, jogados por cima dos seios. O quarto escurecido fazia apenas uma sombra dos corpos com a luz do luar pela janela de correr. Ele se levantou e afundou seu rosto no pescoço dela. Uma brisa efêmera inundou as cortinas e se dispersou pelo quarto, tocando os corpos colados, trazendo um misto de temperaturas.
Na casa fechada, sem qualquer lâmpada acesa, ela sentia prazer. Sua mãe havia saído e o dia não lhe havia sido bom. Ameaçava chover lá fora. Abraçando-a, agora ele dormia. E ela pensava, pela janela.
Padecer
Pela manhã ele havia ido embora mesmo sabendo que a mãe dela não voltaria cedo. Era melhor evitar a fadiga e todos os conflitos que geraria ainda que gostasse saborosamente de arriscar - e quisesse. Deixou-a lá, sonolenta, encolhida e vulnerável. Meio acordada se levantou e abriu a porta para ele. Então tudo ficou vazio. Do jeito que gostava. Levemente tonta, desnorteada, parou e olhou em volta após bater o trinco. A claridade era singela, ainda ligeiramente escuro pelo amanhecer. Uma luz desfalecente adentrava à janela. Paz e quietude. Piscou os olhos pregados devagar, equilibrando-se. Bagunçou os cabelos, retornou a cama arrastando-se, vestida com seu pijama. Era um dia vago do qual não tinha nada para fazer. E não queria fazer nada que não fosse aproveitar sua própria companhia. Dormiu, sonhou, rolou no lençol. Horas à fio. Então acordou por não conseguir forçar-se a dormir mais. Ainda estava quieto e sereno. Lá fora era nublado. Como gostava. Porém, uma sensação um tanto quanto lúgubre espreitou-a, aproximou-se de mansinho, sorrateira. Decidiu levantar-se, cambaleante. Olhou ao redor. Dentro de si questionava-se o que estava fazendo e porque fazia. Mas parecia que obter essa resposta não faria qualquer diferença. Estática, parecia-lhe meio soturno.
Elza Maia é uma amante da escrita e aprecia colocar no papel os sentimentos da vida cotidiana. Futura psicóloga, pretende mesclar as duas paixões em uma.
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