Por Neto Moreira*
Era sério. Encomendou escrivaninha, luminária e cadeira com conforto de abraço. Toda fabricada para durar uns vinte ou trinta anos segurando o suor de seus braços. Deixou o pão por conta dos filhos, ele que nunca vadiava nesta tarefa sagrada. Nosso pai nada dizia. Só encalçou um chinelo velho para ficar mais à vontade. Trancou-se no quarto de cima, talvez pra ter vista melhor da vida.
Minha mãe não esbravejou, mas deu sentença: - Cê sai ou cê fique, mas me diga. Nosso pai não deu resposta. Caminhou sem passo de bêbado, deu tempo só de dizer: - Pai, o senhor me leva junto dessa sua mesa? Ele somente voltou o olhar para mim e me deu sinal de bença e, com as mãos, me sinalizou uma saída. Minha Mãe, parada, esperava assunto, mas o som das teclas responderam por ele.
Nosso pai não voltou. Mas ele não tinha ido a nenhuma parte. E era estranho estar tão longe e ainda sim ouvir o som de sua respiração. Só executava esse invento de permanecer entre as margens das folhas, sem delas nunca mais sair. O estranhamento deu pra correr a vento de pipa. Os parentes, os vizinhos e conhecidos reuniam-se na sala debaixo para sentenciar a solução.
Nossa mãe, embaraçosa, se portou com muita acatamento, e as visitas evitavam iluminar o fato: ficou aluado. O falatório ganhou a manchete das bocas – dos mais próximos aos curiosos de pouco laço de sangue, contando que nosso pai nunca nascia do quarto, nem pra tomar fôlego, nem de dia nem de noite, solto e solitário entre o abecedário. Então nossa mãe concluiu que a merenda que tivesse escondido no quarto se consumia: ou abria a porta e se arrependia e ia por ordem à casa ou desencorpava de fome.
No que num engano. Eu mesmo cumpria a missão de furtar alguma sobra pra abastecer o corpo do pai presente e ausente. Bati a primeira vez e o silêncio só encontrava parada no som das teclas da velha máquina de escrever. Me ouviu, não passeou pra cá, não deu sinal. Não ia abrir a porta. Tive que opor jura das sagradas. Batia três vezes e só quando o som dos pés na escada de ferro, ele botava a mão pra fora. Nossa mãe fazia de desapercebida.
Mandou vir nosso tio pra ajudar na casa, o padre, o pastor , o homem da ciência da cabeça e até dois soldados com missão de desatar uma desistência. De nada adiantou. Nosso pai parecia imerso num rio, com canoa feito à mão, pra resistir às tempestades mais severas dos rogados persistentes por certa folhas de calendário.
A gente teve que se acostumar com aquilo. Mas, na verdade que me cabe de contador, jamais se foi de assentar sossego. O que encucava era como suportava a solidão das teclas ou seriam elas companhia? Fazia água ou calor, frio ou notícia de falecimento, só com a máquina de escrever se lhe bastava o tempo. E o tempo corria com os números – e ele sem fazer conta do viver.
Nossa irmã casou e nossa mãe não quis festa. A gente imaginava ele, com o sorriso dado, entrando na igreja... E as folhas do calendário foram constituindo túmulo silencioso sobre sua imagem. Poderia alguém reconhece-lo? De barba longa, dentes lameados, unhas grandes, mal e magro... Pensava eles nos filhos e na mulher? Alguns conhecidos achavam que eu me ia me parecendo com ele, mas não me intentava se era elogio ou desavença. Eu, de cá, vivia sem saber se o amava ou bebia copo de cólera pela sina de, ainda sim, manter uma brasa de esperança.
Minha irmã se mudou com o esposo. Meu irmão foi fazer negócios na capital. Minha mãe velha, quase não falava, sobre ele ou sobre nada. De mim, sou homem de tristes e velhas palavras. Talvez por encafifar sempre uma culpa sem motivo. E a idade já me tingia os cabelos e a vida, só demoramento.
Eu me acostumei, no silencio, tentar perceber as teclas. O som da certeza que, contra tudo, ainda lutava e vivia o velho pai. O que ele escrevia? Quantas folhas tinha? Biografia de uma vida mal escrita? Contos fantásticos? De quem? Ou como? Ele que nunca deu sinal de sabedença de letras. Não pensava na condenação do filho mais velho? Preso em casa para nunca mais sair. Meu mundo era imaginar o fardo que desconhecia. Seria desígnio do Alto? Seria só despirote?... palavra banida do vocabulário da família. E os anos pareciam um rio na cheia, carregando tudo, principalmente o que sobrava de minha vida.
Do nada. Do nada. Do lado do desespero ou da redenção, cheguei na porta ou na lápide, sabe-se lá. Bati com força pela primeira vez, todo estorvado. Disse com o que me dispunha: - “Pai, o senhor está velho, já fez seu cado. Agora, venha, não há mais precisança, e, se o senhor me permitir, tomo seu lugar na cadeira. E assim falando, meu coração bateu com o acerto do filho de seguir destinos traçados (por quem?).
A porta estava aberta, pela primeira vez aberta para algum desencontro. O medo era do tamanho de um gigante. Não sei se rangeu a porta ou meus dentes, coisa de quem sente... Uma névoa parecia maltratar os olhos ou era poeira que chicoteava os olhos...
Na medida que a luz nascia, pude ver meu pai estirado no tatame do cimento cru. Estava morto e quase morro eu de espanto porque vi sua alma alva levantar da cadeira, abrir a janela e, sem aceno, nadar no infinito. Eu vi o grito, mas segurei aqui comigo, contido. Uma chuva de pensamentos trovejava na cabeça que me sobrava. Era ele, deitado de frente pra mesa e quanto tempo houve de ter passado? Não ensaiei revista ou despedida. Fechei a porta, talvez para sempre. Caminhei a passo de borboleta, arredei a cadeira e o sucedi na mesa.
Os olhos não batiam no compasso do raciocínio. Só havia uma folha na velha máquina de escrever. Em branco. Fiz o olho dançar no recinto com precisão de gavião procurando presa. Não havia mais nenhum pedaço de papel sequer. Era esta a herança que me cabia? Uma folha em branco? Levantei como rinoceronte. Tirei a folha da máquina. Amassei como se tivesse martelo nos dedos. Tropecei em tantos Porquês que meus dedos sangraram. Tranquei a porta e engoli a chave. Para agora, o nunca mais era um bom tempo.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Ninguém saberia mais dele ou de sua não-obra, ou a obra era só me colocar no seu lugar? Estão certos os pais que dirigem à mão de fogo os destinos dos filhos? Sou homem depois desse desacerto? Sou o que não fui e vou permanecer calado. Ilhado pela lembrança de quem não sabe se falhou ou foi falhado. Meu pai permaneceu na Terceira Margem da Folha, além da frente e do verso, perdido no tempo das rimas imateriais. Eu não pude vê-las, essas que me cabiam. E agora o que me sobra é só a sombra do intento de quem não tentou escreve-las, por não saber o que diria. E quem sabe?
Neto Moreira é um poeta fajutinho, contista e compositor de rocks rurais.
* Este texto é uma homenagem direta do autor ao conto "A Terceira Margem do Rio" de Guimarães Rosa, a obra literária mais venerada por Neto Moreira.
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1 Comentários
A apropriação deliberada do estilo singular de Guimarães Rosa, ou seja, o pastiche do conto “A terceira margem do rio” ficou extremamente interessante e criativo.
ResponderExcluirDe todos os contos roseanos, esse é o meu predileto, pelo “non-sens” do ato do canoeiro, em analogia à falta de sentido da existência.
Neto Moreira teve a feliz ideia de trocar a canoa pela máquina de datilografia e conseguiu proezas criativas nas mudanças do texto original. Por exemplo:
“...cadeira com conforto de abraço”;
“...pra ter vista melhor da vida”; “Só executava esse invento de permanecer entre as margens das folhas, sem delas nunca mais sair. O estranhamento deu pra correr a vento de pipa.”;
“... o silêncio só encontrava parada no som das teclas...”;
“ que ele escrevia? ...Ele que nunca deu sinal de sabedença de letras. “;
“Não sei se rangeu a porta ou meus dentes, coisa de quem sente... “;
“Os olhos não batiam no compasso do raciocínio...Fiz o olho dançar no recinto com precisão de gavião procurando presa...
“...Tropecei em tantos Porquês que meus dedos sangraram. Tranquei a porta e engoli a chave. Para agora, o nunca mais era um bom tempo.”
Lindo pastiche, Neto Moreira! Gostei imensamente. Parabéns pela bela homenagem ao grande escritor mineiro.
Jô Drumond
Obrigado por comentar!