Astuciosa Revanche (Lei do Talião)

Por Jô Drumond

Imagem: Unsplash

Em uma cidadezinha interiorana, havia um juiz chamado Alfredo Pedruzzi, admirado pelo dom pacificador. Tinha fama de apaziguar qualquer pendenga. Era chamado para resolver todas as arrelias da região, até mesmo para apartar briga de casal. Homem sensato e ponderado era muito respeitado por todos. Resolvia facilmente qualquer encrenca judicial em sua circunscrição, de modo a satisfazer plenamente as partes conflitantes em qualquer tipo de litígio.

Certa vez ele agiu de maneira inusitada para resolver uma questão pessoal, de foro íntimo. Sua mulher, Clarisse, muito bonita e sedutora, tinha inúmeros admiradores, mas todos a respeitavam por ser esposa do Doutor Alfredo. Um dia, ele se ausentou para uma demorada missão. Estando sozinha, ela recebeu a inesperada visita de um vizinho metido a Don Juan, que havia muito tempo esperava uma brecha para seduzi-la. Tão logo ele tocou a campainha, foi atendido pela própria Clarisse. Zequinha inventou a desculpa de que queria falar com o Doutor, ciente de que ele não se encontrava. Ela lhe disse que ele se ausentara para uma missão demorada. Ele lhe pediu um copo d’água. Com a maior presteza, ela lhe disse que entrasse e ficasse à vontade, enquanto ia buscar a água.

Quando voltou, encontrou-o muito bem-instalado num sofá, de pernas cruzadas, admirando os quadros de pintura que decoravam as paredes. Zequinha se mostrou surpreso ao perceber que, no canto inferior direito de alguns quadros, havia a assinatura dela. Fingiu desconhecer seus dons artísticos. Desdobrou-se em elogios sobre seu trabalho pictórico e começou a discorrer sobre o pouco que sabia a respeito dos grandes mestres da pintura. Clarisse se interessou pela prosa. Nunca havia imaginado que seu vizinho Zequinha gostasse de pintura. Alfredo não tinha olhos para as artes; somente para questões jurídicas. Ofereceu um cafezinho ao visitante, e a conversa começou a tomar caminhos diversos. Do Belo artístico à beleza feminina, que se postava diante de si, foi um passo. Começou discretamente a elogiar a conduta ilibada da vizinha, sua seriedade, sua cordialidade... Num triz, passou dos atributos morais aos físicos: belos olhos amendoados, cabelo sedoso, corpo escultural, porte aristocrático, sorriso aberto... enfim não poupou léxico qualificativo.

Conversa vai, conversa vem, ele foi se aprochegando discretamente. Num determinado momento, arriscou pisar em campo minado e percebeu que não havia mina alguma. O campo parecia-lhe propício ao desbravamento, sem risco ao desbravador. O envolvimento continuou num “crescendo” até chegar ao ponto esperado. Usufruíram de bom grado as delícias da alcova. Aquela concupiscência donjuanesca tinha um sabor especial para ele, por se tratar da alcova do grande pacificador, por quem ele nutria um misto de antipatia e inveja. Gostaria de saber se, alguma vez na vida, o juiz perderia as estribeiras e a reputação. Ele mesmo faria com que o cornuto soubesse da lascívia de ambos entre quatro paredes, para testá-lo. Certamente, o pacífico se tornaria furioso. Era isso mesmo que intencionava. Queria se divertir às custas do vizinho corneado.

Ao saber do ocorrido, por meio de um bilhete anônimo, Alfredo não se alterou. Permaneceu o mesmo, sem mudança de comportamento. Aguardou que Zequinha viajasse para colocar sua estratégia de revanche em prática. Bateu à porta da vizinha e lhe pediu um dedo de prosa. Abancou-se, tomou um cafezinho e puxou o assunto.

- Dona Fininha, vim cobrar uma dívida de seu marido. Ele aproveitou minha ausência para profanar meu lar, incitando minha mulher ao pecado da luxúria. Estou aqui, na paz, para tentar reparar o erro. Caso a senhora concorde, poderemos pagar a desfeita com a mesma moeda.

Fininha, sempre fiel ao marido infiel, já andava indignada com as inúmeras vilanias do traidor. Seria uma boa oportunidade para presenteá-lo com um merecido par de chifres. Doutor Alfredo não era de se jogar fora. Um homem bem-apessoado, íntegro, por quem ela nutria grande admiração. Ela não se fez de rogada.

- Dr. Alfredo, essa é mais uma das inúmeras safadezas do Zequinha. Já estou farta de marido “pulador de cerca”. Aceito, com muito prazer, sua proposta de pagar a dívida com a mesma moeda. Mas antes de começarmos o desagravo, o senhor prefere um whisky puro ou com cubos de gelo?

A pendenga foi resolvida com mucho gusto, sem arrelia. Ao chegar de viagem, Zequinha recebeu um bilhetinho anônimo, nos mesmos moldes do anterior, anunciando a desforra feita em grande estilo. Fingiu ignorar o recado. O bilhete foi queimado. Ficou o dito pelo não dito, “o feito pelo não feito”. Ninguém nunca tocou no assunto. Colocou-se uma pedra sobre a história real e um ponto final na ficcional.


Jô Drumond é escritora, tradutora juramentada e artista plástica. Já publicou 18 livros. Pertence a três academias de Letras: Afemil, AEL e Afesl. É colaboradora do Jornal de Patos, da Revista cultural Desleituras e publica no próprio blog.

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12 Comentários

  1. Astuciosa Revanche ( Lei do Talião)
    Como sempre Jô, surpreendente e maravilhoso conto. Fico estupefata com seu brilhantismo. Gostaríamos de ter mais juízes astutos e apaziguadores, mas…. o que temos hoje é desalentador….
    Obrigada por nos presentear com momentos tão agradáveis… vc é um bálsamo.
    Adriana Dadalto
    Vitória ES

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  2. Jô Drumond, neste conto, faz uma aproximação com Nelson Rodrigues. A rapidez da frase, o desenrolar da trama, a presença do humanamente humano, como dizia Belchior, no recanto sombreado da alma, a entrega, que para isso somos feitos, e o fechamento de mestra da narrativa curta.

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  3. Da ficção para realidade o personagem Alfredo não deixou nada a desejar. Sem violência, sem gritarias, sem bebedeiras, sem baixarias e sem expor a infidelidade da esposa, apenas com muita astúcia. Ótimo exemplo de como os mais inteligentes resolvem seus problemas.
    Parabéns, Jô!

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  4. Esse juiz era mesmo apaziguador! Resolveu o problema de dois casamentos de uma só tacada, digamos assim. E ainda se vingou com a mesma moeda. Belo conto, Jô Drumond. Parabéns!

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  5. Jô, au plaisir de te lire! Simples, fluido, interessante e inteligente! Fico imaginando qual seria a reação do Dr. Alberto se a mulher do Zequinha não tivesse topado. Rsrs

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    1. Ótimo,Jô! Essa "lei" deveria ser incluída na Constituição. Já pensou no fuzue?
      Não pare de escrever. Uma delícia ler seus textos.

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  6. Dear Jô Drumond,
    Alfredo, Clarisse, Zequinha, Fininha. Quando querem sedução, juízo não importa. Quando um não quer, dois não brigam. Conversa antiga. Tanto tem de atual quanto de sensual. Causo interiorano causa arrepios. Se Fininha fosse Clarisse, Zequinha Alfredo, seriam os quatro os mesmos frutos do desacato? Que vivam sempre desacatos iguais. Desiguais bastam na singular singularidade. Esses seus personagens convivem na eternidade. No interior. Parabéns pelo texto!

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  7. " Astuciosa revanche ( lei do Talião) " A vida como ela é.( Nelson Rodrigues) Belo texto, com um vocabulário impecável!!!! Parabéns adorável Jô!!!!

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  8. Fiquei admirado com a rapidez com que se tomam de assalto homens e mulheres nessa cidadezinha. Pessoal pinga-fogo! Cruzes!!

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  9. Muito bom, Jô. Lembra aqueles contos do Decameron, em que sempre prevalece a astúcia na falta de outras estratégias.

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