O dia em que o diabo chorou

Por Neto Moreira


Estive a conversar com o Diabo. Simpático ele. Está um pouco acabado é verdade. Uma barriguinha ligeiramente proeminente (que ele jura não ser de cerveja, pois, segundo me relatou não bebe há 200 anos). Caninos um tanto quanto gastos. A pele vermelha já não reluz com tanta intensidade. Somente o cheiro de enxofre permanece o mesmo. Bem, mas chega de divagações, porque impressões superficiais quase nunca trazem consigo verdades.

Nos encontramos num bar. Seis e meia da tarde de uma sexta-feira. Um ritual quase santo para a inauguração do final de semana. Eu ainda estava engravatado. Ele de smoking e bengala como bem manda o figurino. Na mão um sem fim de “Contratos Para Adesão de Almas” e diversos folders onde-se lia “Garantia de Uma Eternidade Quente – Caldeirões Exclusivos”. Convidei-o para sentar. Parecia cansado. E estava. Pediu uma gim tônica com limão. Estranhei, mas nada questionei. Nem mesmo uma expressão de surpresa, pois em verdade seria outra análise superficial, não é mesmo?

A cada gole nos tornávamos mais íntimos. Chegando ao ponto de trocarmos confidências. Falei um pouco de meu “adorável” chefe, do meu amado time com 5 estrelas celestiais e da gostosa do 202 que me tirava o sossego. Ele ouviu educadamente. Se propôs visitar meu chefe, pois quanto ao meu time, não havia nada a fazer, uma vez que sua situação já era (é) infernal. Agradeci no tocante ao meu chefe. Já aliviado e desejoso de retribuir a gentileza estimulei-o a desabafar, contar as dificuldades que só a vida de Diabo apresentava. Mal começou a falar, para meu espanto, o Todo Poderoso Senhor das Trevas pôs-se a chorar copiosamente. Esticando os braços alcançou-me em um abraço demorado. Uma situação bastante constrangedora, é verdade: estava eu a acalentar as mágoas do Tinhoso, em um abraço apertado, com mil olhares de expectadores maliciosos e uma gim tônica com limão sobre a mesa. Um pouco mais calmo, mas ainda entre soluços fortes, expôs sua situação, que vocês hão de concordar comigo, digna de compaixão.

Suas investidas infernais já não eram tão necessárias. Aquilo pelo qual o mesmo havia dedicado toda sua eternidade começava a se tornar banal:

As instituições humanas, todas degradadas;

A corrupção humana alastrada em tantas órbitas possíveis, pairando nos ares como CO2 que respiramos, mesmo que jurasse que não existisse mais;

Idiotas no poder, falando de Deus, mas agindo como o próprio interlocutor da conversa;

O Meio Ambiente gritando e era justamente isso: já não era inteiro, era “meio” mesmo;

Os homens já não possuíam saúde para ser deteriorada, já que as redes de Fast Food ofereciam entre palácios sorridentes, invisível passaporte para a outra vida...

ERA ISSO: A CONCORRÊNCIA com as atividades essenciais de um Capeta, estava insuportável! “Como não percebi?”, “Este ramo era de família, o que eu vou fazer agora?” – reclamava o Tinhoso, chorando no mar de insegurança, no medo da concorrência, na futilidade de sua profissão de Capeta Profissional... Completamente entendível. Tentei animá-lo:

- Quem sabe um dia o mundo conserta, aí você pode retomar sua vida normalmente – arrisquei.

- Quem sabe, quem sabe... – respondeu-me com ar de descrença.

E numa explosão de enxofre, voltou ao sétimo círculo do inferno um pouco mais esperançoso. Pedi outra cerveja. Antes da primeira golada me perdi olhando para o copo em vagos pensamentos e com dois fortes remorsos: a de ter mentido sobre o mundo consertar e sobre a visita para meu chefe.

Neto Moreira é um poeta fajutinho, contista e compositor de rocks rurais

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