Eu nunca vi um fantasma

 Um conto de horror ficcional de Flavio Sousa


Ainda me lembro da primeira vez que aconteceu. Quando criança, eu e minha irmã éramos a coisa mais importante para Dona Bárbara, nossa avó. Era costumeiro passarmos os finais de semana na casa dela. Nossos pais adoravam a ideia, pois assim ganhavam mais tempo sozinhos. Um casal jovem, suponho, tem muito que fazer sem os filhos por perto. O ano era 1998; Aline, minha irmã, tinha 12 anos e eu cinco anos completos. A diferença de idade nunca foi um problema. Era demasiadamente amado e entre nós havia uma conexão que somente os irmãos sabem explicar. Não sei dizer, entretanto, se em mim habitava reciprocidade por tanto amor. A família dizia que Aline era “especial”, mas só descobri que aquele era um eufemismo para pessoas deficientes, muito anos depois.

No geral, a casa de Dona Bárbara era comum. O terreno era enorme e nele havia mais duas casinhas. Uma delas feita de adobe. Pequena, apenas um quartinho, sem banheiro e um cômodo grande, com uma pia velha e sem torneira instalada num canto. Tinha aspecto deteriorado e parecia que desmoronaria a qualquer momento. Era engraçada do lado de fora. Parecia rebocada com chocolate em calda, que derreteu antes de secar totalmente, em formato de estalactite. De vez em quando tinha vontade de dar uma dentada no barro cru, só para ter certeza de que não era mesmo feita de chocolate em calda. Meu tio se hospedava na casinha de adobe. Digo hospedava porque Roberto era o nômade da família. Desde que me entendo por gente, sumia por anos e depois voltava. Geralmente ficava por dois anos e logo pegava a estrada novamente. Um homem apaixonado pelas maravilhas que o mundo poderia oferecer.

Ele não estava na casinha de adobe naquele verão de 1998. Minha avó costumava deixar o lugar trancado, mas sempre fui custoso, ela dizia, e, não demorou muito, aprendi a arrombar a porta. Lá dentro não tinha praticamente nada. Poeira, o piso cor de palha, com fissuras rococós, a pia velha num canto da parede, uma cama de solteiro, uma cadeira marrom, pintada com tinta para parede. Meu tio, o viajante, dizia que o irmão dele, o Manoel, havia feito “aquela cagada” com a cadeira da Dona Clarice. Ele chamava minha avó assim. Adorava apelidar as pessoas. Manoel, o autor da cagada, chamava-o de Azulão (era uma gozação, pois só tinha motos vermelhas); meu pai era o Pôncio Pilatos; minha mãe, a Madrinha e a mim ele chamava de Panegírico. Roberto era um leitor voraz. E já naquele tempo me interessava por livros. Quando ele voltou, achava interessante ouvi-lo lendo. Era locutor e tinha a voz mais bonita que eu já ouvi. Um dia perguntei e me explicou que viu essa palavra em um livro do Machado de Assis. Achou bonita e falou que combinava comigo.

Talvez a casinha de adobe também contenha lembranças. Quem sabe cada canto de barro seco não guarde um pouquinho da história de uma família despedaçada. Já tinha morado lá, eu, minha irmã e meus pais. Sim, quando criança eu não percebia, mas estávamos todos sendo devorados pela tristeza dos hábitos da pobreza. Hoje faltou água, ontem faltou luz. Assim era nosso dia a dia. Inevitável, bruto. Parecia não haver esperanças para nós.

Naquele dia explorei a casinha, brincando sozinho. Sentia falta da minha prima, Larissa. Isso porque minha irmã não gostava de brincar no quintal. Gostava mesmo de televisão. Parecia hipnotizada pela tela. Muitas vezes a flagrei, sentada no sofá, balançando a cabeça, num vai e vem sub-reptício, enquanto ouvia a abertura de Rugrats: Os Meninos do Coro. Um desenho medonho que chega a ser impossível de acreditar que era exibido para crianças de qualquer idade. Às vezes tinha a impressão de que as imagens saiam dos olhos dela e não da tela. Acho que a partir deste dia tive uma vaga noção do que significava ser “especial”.

À noite, a lua brilhava no céu negro de Patos de Minas. A presença dela era tão intensa que chegava a ser difícil até mesmo para as estrelas competirem com aquele lumiar majestoso. Estava no quarto da vovó Bárbara, com a janela aberta, pouco antes de dormir. Ela fazia questão que dormíssemos na mesma cama. Ela no meio, eu no cantinho da parede, abaixo da janela, e minha irmã na outra extremidade da cama. Dormir era a parte desagradável. Minha avó roncava muito e Aline, às vezes, acordava gritando no meio da noite. Achava estranho aquilo, era medonho, mas nunca atribui nenhum significado místico à coisa. Desde muito novo sempre fui cético. Minha família era descrente e para mim Deus e o Diabo eram personagens da mesma fábula humana.

Naquela noite, não Aline gritou. Pouco antes de adormecer, ouvi vovó rezando baixinho. Nunca identifiquei suas palavras. Parecia-me ininteligíveis. Sei que era uma oração porque sempre terminava com “amém”! Sabia que era religiosa, amava o Padre Zezinho. “Abençoa, Senhor, as famílias! Amém!”. Não sabia o que era amém. Parecia um tipo de ponto final. Depois da reza, ou oração, adormeci. No meio da noite acordei assustado. Não pelos gritos da minha irmã. Não soube o que me assustou. Senti um vento frio vindo da janela. Tinha certeza de que a tinha fechado. Vovó não gostava de apanhar friagem e se fechava no quarto, mesmo nas noites quentes, como aquela. E por que o vento frio em pleno verão?

Levantei-me para fechar a janela. Quando olhei para fora, a lua brilhava de maneira ainda mais intensa. E o vento ficou mais forte. Pensei que fosse chover. A ventania balançou as alamandas-roxas que vovó havia plantado, ao lado do pé de chuchu. Pareciam vivas, como se transmitissem uma mensagem. Fiquei alguns segundos olhando para elas, quando minha irmã se mexeu na cama e me assustei. Sentei correndo. Tive medo de acordar vovó, mas voltei para olhar as florzinhas roxas que balançava com o vento gélido. Foi então que me lembrei do que Dona Bárbara dizia sobre elas. Uma vez me explicou que essas flores só aparecem quando alguém da família vai morrer. Acreditava realmente naquilo, tanto que não nos deixava brincar com elas. Muito tempo depois soube que era conhecida como viúva-alegre. Pelo sim ou pelo não, voltei para cama e me cobri, meio assustado.

Um silêncio cavernoso dominou o quarto. Era enlouquecedor. As folhas balançavam, mas não faziam barulho. Não ouvia a respiração da vovó ou da Aline. O primeiro som que escutei parecia um sussurro, que foi aumentando, aumentando, aumentando... Até que estourou como um grito dentro da minha cabeça. Na verdade, eram risadas. Mas risadas de quem? Não havia mais ninguém conosco. Levantei, devagar, a cabeça, e olhei para fora da janela. Não vi nada. Só escuridão. Onde estavam as alamandas-roxas? Senti o coração disparar, mas tentava encontrar uma explicação. Saí da cama e perambulei pela casa de Dona Bárbara, até me encontrar, não sei como, em frente à casinha de adobe. A porta estava aberta, como um convite. Não tive medo. Entrei e me parecia diferente. Uma luz fraca vinha do quarto. Minha mãe estava lá. Esperava-me na cama de solteiro do tio Roberto. Achei estranho, porque estava com um sorriso bonito. Ela não sorria. Tinha vergonha, usava dentadura. Seu pavor era dar uma gargalhada e os dentes se esborracharem pelo chão. Confiei nela.

Primeiro se deitou na caminha e pediu para me deitar também. Obedeci. Disse que estava com saudade. Saudade do menininho dela. Minha mãe não falava assim. Estava meio sem consciência. Abraçou-me com força, a ponto de me fazer sufocar. Foi então que percebi que me enforcava. Implorei para que ela parasse, mas tudo que fazia era rir. Dava gargalhadas altíssimas, como quem se diverte com o sofrimento alheio. Não queria me matar, dava pra ver. Passou seus braços finos embaixo das minhas axilas e entrelaçou os dedos atrás da minha nunca, pressionando meu pescoço para frente me impedido de mexer os braços. Gretei, gritei e pedi socorro para vovó e Aline, mas ninguém parecia ouvir. A casinha de adobe ficava agora em um lugar obscuro, distante. Isolado de tudo e de todos. As pernas de minha mãe tornaram-se serpentes que se enrolavam nas minhas perninhas, mas não mordiam, apenas apertavam. Senti sua barriga se abrir e devorar meu tronco sem me mastigar. Meu crânio se fundia ao seu e estava agora totalmente imóvel, com os braços presos aos braços dela.

“Escravos de Jó
Jogavam caxangá
Tira, põe
Deixa ficar
Guerreiros com guerreiros
Fazem zigue-zigue-zá
Guerreiros com guerreiros
Fazem zigue-zigue-zá”

Foi a primeira vez que me lembro de ouvir essa cantiga. As vozes iam aumentando cada vez mais, enquanto, imóvel eu via o teto da casinha de adobe. “Escravos de Jó, jogavam caxangá”. Quando percebi que essas vozes entraram no quarto, um silêncio ainda mais horripilante tomou conta do quartinho. De repente, escutei vozes de meninas. Pareciam discutir entre si.

― Não, não, não! Agora é minha vez, freguês!

― Tá, tá, tá! Mas eu também quero brincar, norueguês!

Terminado o colóquio, ouvi passos pelo quarto e senti o colchão se afundar à medida que caminhavam em minha direção. Duas pequenas mãozinhas me tocaram levemente a barriga. Um tecido fino e gostoso me acariciou o rosto. Estava com os olhos fechados. Recusava-me a olhar o que estava diante de mim. Pude sentir a respiração daquela pequena criaturinha apoiada na barriga que era da minha mãe e agora se fazia minha. Seu sapatinho machucava minha coxa. Talvez tivesse um lacinho na ponta. Decidi abrir lentamente os olhos. Primeiro vi escuridão. Depois uma luz vermelha, longínqua.

Vi primeiro duas tranças negras, muito bem feitas. O que tocava meu rosto era o lacinho rosa colocado delicadamente na ponta. Era uma menina, talvez fosse bonita. Tinha boca de menina. Reparei primeiro no seu queixo, tinha covinha. A boquinha era pequenina e tinha hálito caramelado. O nariz, um pouco aquilino demais, era também agradável. Ah, mas os olhos. Os olhos estavam queimados, pretos. Como se tivessem sido torrados em brasa, como quando se marca um boi. Quando olhei pra eles, ela finalmente falou comigo.

― Ele quer te ver, ele quer te ver, agora é sua vez, freguês!

Tentei gritar, mas não consegui. Da minha boca, em vez de sons, saíram pedaços de náilon. Quanto mais me esforçava para gritar, mais rápido minha boca era costurada. Chorando vi que a pequena monstrinha segurava um punhal cumprido, prata, com um cabo de madrepérola. Começou a cantar mais uma vez. “Escravos de Jó jogavam caxangá”. Cravou meu peito e disse:

― Tchau, freguês! Agora é sua vez, norueguês!

Meu corpo se descolou de minha mãe. O peito ardia e vi meu sangue se espalhar pelo colchãozinho do tio Roberto. Aos poucos afundei, até atravessar o colchão e bater com a cabeça no chão. Estava pesado, feito uma tonelada. Senti o chão rachar sobre mim, sem poder me mexer e caí. Caí por meses. Pelo menos foi essa sensação. Quando pensava que nunca mais sairia dali, acordei numa sala branca. Na minha frente, um homem bonito. Totalmente nu. Estava sentado num sofá Chesterfield, um clássico do estilo inglês. Eu nunca tinha visto um daqueles antes. Era vermelho, soberbo, bem feito. O homem sorriu e disse:

― Está com fome?

― Não. Obrigado, moço.

― Como não está com fome? Sua barriga ronca. ― De fato senti fome. Parecia que não comia há anos. ― Cattleya, não deixe seu amiguinho com fome. ― A garota sem olhos que me matou no seio de minha mãe trazia consigo uma bandeja repleta de guloseimas. Assustei-me quando a vi. Logo percebi que já não tinha os olhos cauterizados. Eram castanhos, bem claros, quase verdes. Uma linda menininha.

― Pode comer. Não tenha medo. Todos nós aqui amamos você, Zequinha. ― Devorei as guloseimas. Estava faminto. Enquanto comia ele falou, falou, falou, mas só prestei atenção numa coisa. Levantou-se e foi chegando perto e vi que, quando andava, suas pernas humanas, como numa sombra, transformavam-se numa pata de bode peluda e voltavam para sua forma humana. O mesmo com a cabeça, às vezes bode, às vezes homem. Estava nu, mas não tinha sexo.

― Veja bem, aquela ali não é sua mãe? Precisa se livrar dela. Aquela mulher te matou. É uma vagabunda. Você sabe que ela é uma vagabunda, não é? Seu pai sabe que ela é uma vagabunda! ― Começou a se enfurecer ― Por que não se livra dela como ela fez com você, hein? Vamos, ande logo seu moleque covarde!

Ouvi seus passos se aproximando na direção, agora um bode completo. Enorme, colossal, chifrudo. Só consegui gritar: mamãe, mamãe, mamãe. Atingiu-me com tudo e cai, de costas para o chão, estralei a nuca no chão frio. Minha cabeça doeu com tanta força que fiquei tonto. Acordei com minha avó desesperada, tentando me acudir. A luz amarela do quartinho de Dona Bárbara estava sob minha cabeça e comecei a levantar. Não consegui dizer uma palavra. Aline disse que eu tive um pesadelo, mas não acreditei nela. Voltamos a dormir. Estava exausto.

Quando acordei, no dia seguinte, ouvi um som familiar: “Escravos de Jó, jogavam caxangá”. Fiquei assustado, mas eram apenas os meninos da rua da minha avó, cantando e brincando. Era sábado de manhã. Não quis brincar. Estava com fome e fiquei feliz de comer os pães de queijo da vovó Bárbara. Estava com saudade deles. E me alegrou sentir o cheirinho do café passado na hora, ouvir a hora certa no radinho de pilha. Eram evidências de que estava em casa. O resto do final de semana foi quase normal. Sempre que aproximava da casinha do tio Roberto, via o espectro da minha mãe, sorrindo sem dentes, me convidando para entrar. Ignorei.

Alguns anos depois, minha mãe, minha mãe de verdade, enlouqueceu. Tinha dez anos quando tudo aconteceu. Lembro-me até hoje do diagnóstico: depressão psicótica. O primeiro ataque foi em casa, quebrou tudo que tinha, tentou nos matar com vassouradas. Uma vizinha acudiu e evitou o pior. Tinha certeza que aquilo tudo era obra da minha falsa mãe. Ela atormentava minha mãe verdadeira. Foi então que passei a vê-la sempre com minha mãe, não importava onde estivesse. Sem perceber o que estava acontecendo, me afastei de minha mãe. Pensava que as duas eram, agora, cumplices. De algum modo, queriam-me morto ou que eu as matasse.

A doença arrefeceu depois de alguns anos de sofrimento. Tínhamos agora uma relação próxima, mas ainda complicada. Brigamos muito às vezes e cheguei a pensar que nunca a amei e que deveria ter obedecido ao homem-bode e arrancado ela de dentro de mim. Ignorei, de novo. Pela primeira vez decidi apagar o fantasma que eu sempre vi acompanha-la desde os cinco anos. Aquela mulher sem dentes e sorridente seria para sempre esquecida da minha visão, mesmo estando ali, todos os dias... O tempo fez o resto.

No ano passado, minha avó morreu. Foi o Azulão quem contou a notícia lá em casa. Fiquei arrasado e senti remorso. Amava vovó Bárbara, mas havia me afastado. Não suportava a ideia de encarar a casinha de adobe e os espectros que me assombravam. Tio Manoel pediu que minha mãe esperasse a funerária buscar o corpo. Meu pai, minha mãe e eu fomos pra lá. Estava mal, a saúde dela, ao final da vida, definhava e a moléstia torcia o corpo dela como um papel. Cruel. Tão cruel que, internamente, ficamos felizes. “Descansou”, dizíamos.

Mamãe ficou triste. Nunca entendi direito o motivo, mas as duas não se bicavam, embora Dona Bárbara fizesse de tudo por ela e por nós. Nos últimos dias de vida, tive uma conversa com minha mãe. Disse que precisava se reconciliar com a vovó, pois não teria muito tempo, se continuasse postergando, seria tarde demais. E ela seguiu o conselho. Foi minha mãe quem a banhou pela última vez. Amei minha Dona Carminha de Oliveira Sousa, com intensidade e sinceridade, pela primeira vez, na partida de Dona Bárbara. Cortou-me o coração ver as lágrimas percorrendo seu rosto cansado da vida doméstica. Amei-a e vi, pela última vez, o espectro assassino que a perseguia desde os meus cinco anos. O quarto da vovó permaneceu no mesmo lugar, de frente para as viúvas-alegres, que no dia de sua partida floresciam majestosas, anunciando que a dona da casa expirava, mas deixava beleza em todos nós.

Eu nunca vi um fantasma. Agora o espectro assassino se despedia triste por não cumprir sua missão: afastar mãe e filho. Não, eu não vi um fantasma. Nossas dores podem nos assombrar por anos, mas não são maiores do que quem as criou. Feridas abertas com um punhal com cabo de madrepérola podem ser cicatrizadas na fragilidade da partida, ou no acolhimento nos momentos de afeto e compreensão. Eu nunca vi um fantasma. Aquilo que me assombrava secou e murchou como uma alamanda-roxa no quintal de Dona Bárbara. Todos os dias, minha mãe e eu vamos ao quintal da vovó cuidar das flores, é uma lembrança da Clarice, como diria o tio Roberto. Limpamos juntos a casinha de adobe, assim como limpamos nosso coração das mágoas e traumas da primeira infância. Sim, eu nunca vi um fantasma!

FIM!

Flavio Sousa é jornalista e escritor. Autor de "Crônicas Devassas". Especialista em marketing de Moda e Celebrante de Casamento.

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