O “toc-toc” anunciou que ele tinha chegado com mais um buquê de rosas amarelas. Ver as flores da cor que ela mais gostava, a fazia esquecer qualquer medo. De um lado, ele com o seu cabelo ralo, sorriso largo e mãos que denunciavam a idade e a experiência. Do outro, ela com um sorriso frouxo, um olhar muitas vezes desesperançoso e cabelos grisalhos que há dias não eram penteados.
Na quarta-feira ele escreveu e mostrou à ela um bilhete: “Estou com saudade!”. Eles se amavam à moda antiga mas o recado, desta vez, ia além disso. Ela sorriu e lamentou não poder escrever uma resposta pois não tinha papel e caneta de prontidão, mas gesticulou com os lábios e os olhos marejaram. Ele entendeu a mensagem quando uma lágrima escorreu sobre o doce e já não tão vivido rosto da amada e após alguns minutos admirando a pureza com que ela tentava disfarçar o choro, ele deu sinal de que iria embora: “toc-toc”.
Na sexta-feira ela completou 85 anos e ele apareceu com um bolo de aniversário e balões. Toc-toc! Entretanto, ele sabia que o bolo não teria o mesmo gosto e nem os balões as mesmas cores que nas comemorações passadas. Ela tinha o mesmo sentimento e, sentada na cama, sorriu ao vê-lo cantando parabéns sozinho. “Seu tolo!”, pensou. Naquele instante, um sentimento de ânimo em forma de brisa atravessou as paredes e foi ao encontro dela. Não era mágica, era amor!
Como em um ritual, todos os dias ele saia escondido e aparecia com as flores amarelas só para lembrá-la das promessas feitas na juventude, das iniciais marcadas na árvore atrás da igreja, das cartas escritas à mão, dos abraços que davam asas e dos beijos que os faziam enxergar o futuro mesmo quando os olhos estavam fechados. Agora, tudo estava diferente e ninguém poderia prever tempos tão escuros mesmo sob o sol do meio-dia. Mas em um dia de chuva, aos 20 e poucos anos de idade, eles prometeram não desistir do que encontraram um no outro. E assim ele fez. Não porquê ele tinha medo, mas porque ela era ele e ele era ela. Assim como o sol pertence ao verão e as flores à primavera.
Na segunda-feira da semana seguinte, ele tomou seu café amargo, engoliu um pedaço de pão e seguiu para a praça principal. Lá, esperou até a loja de flores abrir e escolheu as mais lindas rosas amarelas que encontrou. Olhou no relógio, apressou o passo e seguiu para o encontro diário com a amada. Toc-toc! Ele esperou algum sinal da estimada mulher e tentou ver entre as cortinas. O quarto estava vazio o que significaria que a quarentena tinha terminado. Ele imaginou que ela havia, finalmente, saído de casa, do isolamento, e ficou feliz em pensar que o vidro da janela não estaria mais entre eles.
Como vento frio de outono que prepara os dias para o inverno, ele sentiu a alma gelar e também sentiu saudade, mas uma saudade diferente, profunda, ininterrupta. Ele sabia que a melhor parte dele não estava mais trancada em casa e jamais ali estaria. E como um sinal de “te vejo em breve”, uma última vez, ele bateu na janela.
Toc-toc!
Renata Bastos é formada em Jornalismo pelo Centro Universitário do Triângulo. Passou por veículos como G1, TV Integração, TV Paranaíba e hoje integra um programa para 12 jornalistas estrangeiros na Suécia. No tempo livre ama ler, cantar e tocar violão.
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2 Comentários
Que emocionante!!!! 😔
ResponderExcluirBelíssima estreia de Renata Bastos. Texto atual, bonito e triste. Emocionei-me durante a leitura.
ResponderExcluir“A vida como ela é”!
Obrigado por comentar!