(conto baseado em fato real)
« La peur collective stimule l‘instinct du troupeau et tend à produire de la férocité envers ceux qui ne sont pas considérés comme des membres du troupeau »
Bertrand Russell
(O medo coletivo estimula o instinto de manada e tende a produzir ferocidade contra os que não são considerados membros do grupo)
(tradução da autora)
Lá pelas bandas do rio Urucuia, numa corrutela chamada Pedra Vermelha, havia um rapazote afeito a malandragens e patifarias. Certo dia, por meio de um forasteiro, descobriu o crack, versão popular da cocaína, capaz de lhe proporcionar grande deleite, a preços ínfimos. Afeiçoou-se àquele aprazimento até então desconhecido que lhe aportava sensação de prazer, excitação, hiperatividade, intensa euforia e poder. Em pouco tempo, não podia mais prescindir daquele regozijo. Ao inalar a droga, sentia seu efeito benfazejo em poucos segundos, mas a “viagem” não durava mais que cinco minutos. Carecia de contínuas repetições diárias. Mesmo não sendo droga onerosa, acabava sugando os parcos trocados dos bolsos do cotidiano.
A dependência provocava-lhe depressão, grande cansaço e falta de apetite. O jovem emagrecia a olhos vistos. A compulsão para o uso do crack, ou a “fissura”, como se diz, levava-o a subtrair a aposentadoria de sua mãe e a fazer pequenos furtos na vizinhança. Os afanos não lhe traziam benefício imediato, pois teria que vender as bugigangas gatunadas. Carecia de dinheiro vivo. Para isso, o mais plausível seria praticar assaltos. Quando o assaltado não tinha nada a lhe oferecer, às vezes ele se tornava extremamente agressivo, quase paranoico. Por isso ficou conhecido como Zequinha Noia (de paranoia) e Zequinha Crackento.
Mãe Gertrudes se preocupava com a inapetência do filho e com seu visível emagrecimento. Não andava nada satisfeita com as constantes extorsões por parte dele. A magra aposentadoria mal dava para o sustento básico. Não entendia a razão pela qual seu filho tinha constante carência de dinheiro. Gostaria que ele arranjasse um emprego ou qualquer serviço que lhe aportasse alguma remuneração.
Certa noite, Zequinha Crackento entrou em casa muito excitado e foi logo exigindo grana. Sua mãe estava desprovida, naquele momento. O filho exigiu-lhe então seu cartão de aposentada e a devida senha. Ela recusou, alegando que o pouco de que dispunha no banco mal daria para comprar os remédios de uso constante até o fim do mês. Num rompante, ele foi até a cozinha, pegou uma faca de ponta e descarregou toda sua fúria sobre a pobre mulher. Ao ouvir gritos de socorro, a vizinhança se aprochegou e presenciou a trágica cena. Todos já estavam habituados à violência da região, mas nunca esperavam presenciar um matricídio, espécie de pecado imperdoável e passível de pena máxima naquelas lonjuras. Encontraram o rapaz com a faca em punho e, diante dele, uma cena dantesca.
Violência gera violência. Alguns vizinhos resolveram dar a devida lição ao criminoso. Amarraram-no a uma carroça velha e espantaram o cavalo mediante forte estampido. O animal saiu desembestado arrastando o criminoso, que por um triz desafortunado se tornou vítima de diversos algozes. À medida que ele ia sendo arrastado, uma trilha sanguinolenta assinalava o percurso. Todos se inteiravam do matricídio e se prontificavam a participar da chacina. No parar da carroça, ele já estava aparentemente morto.
Pelo sim, pelo não, houve uma sessão de apedrejamento pelo populacho aglomerado. A reação da multidão, nesses casos, é inesperada. Muitos aproveitam para extravasar o lado animalesco aprisionado pelas normas sociais dentro de si. Foi o que aconteceu. Para terem certeza do almejado fim do criminoso, amarraram-no ao tronco de uma mangueira e fizeram uma exibição de tiro ao alvo. Ato contíguo, ao acabar a munição, para evitar o risco de ressurreição, encharcaram-no de gasolina e atearam fogo. Há quem credite no poder punidor do fogo. Tanto é que criaram o mito do inferno, no século IV, para amedrontar os pecadores.
A pobre árvore, que não tinha nada com o que se passava em seu entorno, ardeu em chamas, de roldão. Na manhã seguinte, viam-se ainda toras incandescentes e um resquício de fumaça que enevoava a vizinhança. No ar, pairava um cheiro de vingança e uma falsa sensação de dever cumprido.
Jô Drumond é escritora, tradutora juramentada e artista plástica. Já publicou 18 livros. Pertence a três academias de Letras: Afemil, AEL e Afesl. É colaboradora do Jornal de Patos, da Revista cultural Desleituras e publica no próprio blog.
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12 Comentários
Jô.
ResponderExcluirParabéns pela narrativa do texto.
No meu ponto de vista a ciência e a tecnologia anda a passos largos em evolução e o ser humano ainda engatinha.
Mais uma vez vc brilhando cm seus causos. Parabéns tia vc é mto inteligente e criativa. Admiro mto sua capacidade e a pessoa Maravilhosa q vc é. Saudades. Bjo. Bjo. Bjo
ResponderExcluirTrágico, porém muito bem narrado! Parabéns, tia Jô!
ResponderExcluirJô, a história é triste! Dois assassinatos, sendo o segundo, coletivo. A punição foi feita para o assassino que se tornou vítima. Ninguém vai preso. , Será que vale isso!?
ResponderExcluirÉ , somos feitos de bem de mal. Tem horas que um deles prevalece .
Parabéns pela história tão bem narrada !
Nossa!!! Que tragédia. Infelizmente anunciada! Muito bem contada e mesmo sendo um relato de tristeza e revolta, você consegue expressar de forma leve. É uma realidade presente e verdadeira em muitas famílias. Parabéns Jô.
ResponderExcluirVárias famílias passam pela dor, constrangimento e ainda são roubadas pelos próprios entes queridos,bem como toda a sociedade, devido a fissura dos dependentes químicos pela droga... Recebi um texto que diz o seguinte:" A justiça sem misericórdia é tirania, mas a misericórdia sem justiça é tolerância, complacência com o delito ".
ResponderExcluirTexto muito contemporâneo. Deveria ser lido por todos, pois mostra a verdadeira realidade do mundo das drogas.
Mais uma vez surpreendida com uma narração da tia Jô Drummond. É do tipo que você não consegue parar de ler até terminar a leitura. Muito bem escrita, com riqueza de detalhes e não importa se é drama, tragédia, comédia... É sempre sensacional ��
ResponderExcluirObrigada aos leitores pelo retorno carinhoso. Vou postar abaixo alguns comentários de leitores que não conseguiram postar diretamente no jornal.
ResponderExcluirJô Drumond
Bom dia Jô . A página para os comentários não abriu… assim vou comentar aqui.
Como sempre vc está de parabéns pela forma com que lida com as palavras. Uma história triste, mas muito rica, porque com ela vc faz traz à tona e nos faz refletir sobre as mazelas da nossa sociedade, como distribuição de renda, acesso ao conhecimento, falta de acolhimento, má qualidade de vida. Uma considerável fatia da população não alcança condições mínimas de sobrevivência e passa a vida jogada à própria sorte, sem nenhum tipo de socorro. Muito emocionante.
Ágda Pimentel (Belo Horizonte)
👏👏👏👏🌹🌿🌻🌿Caríssima, ler um texto seu é sempre um privilégio e um deleite, ainda que às vezes a temática nos fustigue, quando associada à realidade... Nesse, um quê de profético se acrescenta à excelência da " écriture" quando penso em nosso país... Hora virá em que poderemos ter um " estouro da boiada". E a cena, certamente, satisfaria os desejos de Hécate. Hélas!
Você foi inspirada, Jô!! As circunstâncias atuais necessitam de texto como esse, textos que exerçam a função de ser " un flambeau qui éclaire l'avenir"! Fazem pensar!🙏🙏🙏🙏
Darcília (Vitória)
Ele surtou. Durante o surto o dependente químico faz qq coisa e não se lembra depois. Qdo existe um dependente na família, o caminho é internar numa clínica particular, se tiver condições financeiras, ou tentar junto ao poder público. Enquanto isso é preciso sustentar o vício do familiar pra evitar um surto. Surtou, é tragédia na certa
Neusa (Marechal Floriano)
Tão bem escrito que me remeteu aos muitos casos de mesma natureza, presenciados por mim na escrituração de flagrantes, durante o tempo em que fui Escrivão de Polícia. Quem me dera ter sua habilidade para descrever tim tim por tim tim e tão bem os fatos. Nasceu com o dom e vem aprimorando-o a cada dia. Parabéns.
Gilson (Uberaba)
Ei Jô!
Obrigada. Essa foi diferente das suas outras " escritas", mas nem por isso menos intensa.
Te admiro cada vez mais.
Abraços saudosos
Madgalena (Manguinhos)
Bom dia Jô.
Que história trágica.
Só de pensar que isso acontece muito mais do que a gente vê. (Filhos matarem seus entes queridos) por causa de droga. Parabéns pela riqueza de detalhes. Mas é muito triste.
Um grande abraço e um ótimo feriado.
Lola (Vitória)
Jô achei fantástico! Vc descreveu muito bem a vida e os sentimentos dos "noiados"
Beatriz (Patrocínio)
Seu texto atesta o hediondo do vício das drogas.
É UM GRITO AVISANDO O PERIGO!
Neida (Vitória)
Mais uma vez você brilha com este excelente texto. A sua literatura nos encanta.
A escrita é tão clara!
Muito triste, mas também real e ilustrativa.
A ferocidade gerada pelo medo transforma-se, cresce, avoluma-se e não há força capaz de enfraquecer o “espirito de manada”.
“No ar, pairava um cheiro de vingança e uma falsa sensação de dever cumprido”.
Regina Menezes (Vitória)
Gostei muito, Jô.
Na primeira parte, vê-se a decadência física, mental e moral de um ser humano tomado pelo vício.
Na segunda parte, após o matricídio, o linchamento como uma das maiores manifestações da barbárie.
O "causo" parece ter, embutido em sua atmosfera sombria, um chamado à civilidade.
Alexandre (Brasília)
Parabéns Jô!! Triste realidade vivida por usuários de drogas e seus entes mais próximos.
ResponderExcluirJo, excelente narrativa sobre essa atualidade tão constante. A justiça foi feita e merecida.
ResponderExcluirTriste, real, atual e preocupante.
ResponderExcluirVivemos numa sociedade onde só se enxerga o usuário. Não diminuo a montruosidade do ato, mas o fato me faz refletir o descaso ( ou a conivência ) com quem realmente é o maior destruidor de juventude , que é o fornecedor. Este sim, o grande empresário, o político, o coronel, o juiz…. enfim…..precisamos urgentemente trazer luz aos verdadeiros culpados pela destruição, aniquilação e culpabilidade de um único e cômodo personagem de toda essa triste e desumana situação.
Parabéns Jô, vc consegue dar leveza a um tema tão pesado…. Só os grandes são capazes de nos manter presos a uma leitura até o final… amo seus causos….
Obrigada por me presentear com sua excepcionalidade….
Adriana Dadalto.
Parabéns, Jô! Sou sua leitora assídua e a cada publicação, mais admiro sua capacidade criadora. Você consegue ir do hilário ao tema mais dramático com a mesma leveza na descrição e o mesmo envolvimento. Essa crônica, que bem poderia ser uma notícia na página policial de qualquer cidade, narra a realidade de muitos jovens que se entregam ao vício. Infelizmente, essa fuga da realidade por meio de substâncias químicas só vem aumentando.
ResponderExcluirObrigado por comentar!