Relatos de um texto ruim

Texto e imagem por Renata Bastos


Pegou todas as palavras que encontrou pela casa e colocou sobre a mesa. Tentou escolher as que, mesmo de forma vaga, revelassem um pouco do incômodo que ela sentia ali, do lado esquerdo, mas não sabia sequer se elas de fato existiam ou se seriam suficientes. Apesar de tudo, vasculhou cada canto, sacudiu o tapete, esvaziou os bolsos. Nunca se sabe o que se perde e nem o que pode se encontrar em um daqueles, estranhos, instantes de descuido. Então ela tentou achar algo que fosse bem com café. Talvez um “bom dia “? Achou justo e, caso alguém pensasse o mesmo, o açúcar não seria necessário.

No caminho para o trabalho, pensou não ter espaço para mais frases. Colocou os fones de ouvido, se fechou e mesmo sem um conto pronto, se deu por satisfeita e colocou um ponto. Por ironia, baterias cansadas foram dormir e o mundo alheio pareceu interessante. Cansada, ela imaginou se algum dia poderia, como muitos, escrever poemas alegres sem se sentir assim de forma genuína. Poderia ela recitar o caminho de volta para versos que ela ainda não tinha percorrido? O ônibus chegou na estação final e um cochicho a fez despertar.

Subindo as escadas para o escritório ela tentou evitar, mas tropeçou nas vírgulas. Dela, dos outros. Mesmo assim, gastou o que podia com vocabulário e se sobrasse ânimo, e caso fosse muito importante, na próxima, pensaria no vestuário. Abriu a bolsa com todo o repertório escolhido antes de sair de casa e se fez pronta para a reunião. Quando chegou a vez dela falar, palavras pularam da boca e quando esbarram uma nas outras, caíram no chão em forma de frases que quase se perderam, mas foram resgatadas por pontos, abraçadas por interrogações, ignoradas por exclamações e desacreditadas por reticências. Incoerentemente coerentes.

Por outro lado, a resposta doeu mais que metáfora sem poesia e soou desnorteada como um coração que perdeu a cedilha no caminho para casa: desinteresse. Perguntaram se ela não tinha nada mais simples nos bolsos como fosse possível ser o que não se é. Seria ingenuidade da parte dela ou hora de começar um novo parágrafo? Seria assim tão fácil atravessar o rio profundo entre o que se diz e o que se entende? Depois de tantos anos ela tentava fingir que ainda se importava, mas sabia que o tempo dispensava correções.

A noite chegou e o travesseiro pareceu profundo como o pretérito e petulante como o futuro. O espelho pareceu ter coesão, mas ela sabia que nem todo olhar lido era interpretado. Que muito texto é ruim, até ser reinterpretado e incorporado. Que todos, assim como ela, tinham vírgulas ou interrogações esquecidas em versos guardados para depois no fundo do armário. Que nem a mais elegante das palavras esconderia os delírios de um texto que acha nunca ter sido ruim.


Renata Bastos é formada em Jornalismo pelo Centro Universitário do Triângulo. Passou por veículos como G1, TV Integração, TV Paranaíba e hoje integra um programa para 12 jornalistas estrangeiros na Suécia. No tempo livre ama ler, cantar e tocar violão.

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