Anônimos: entre a vida e a bebida, histórias interrompidas pelo álcool - Parte 1

Por Gustavo Rubim*


PRÉ-PREFÁCIO, contextualização

Diante do vazio desses dias, à condição do desemprego, encontrei, no fundo da mochila, o exemplar que trouxe comigo, nesse tempo de andanças entre Paraguay e Argentina, do livro-reportagem que escrevi em 2019.

Abandonei parte do tempo que dedico a Fiódor Dostoiévski, Rodolfo Walsh, Jean-Paul Sartre e tantos outros, para ler a mim, uma atividade que sempre me tortura. Primeiro por ver os erros de minha escrita prematura impressos em papel Avena 80g/m². Depois por quase não me reconhecer naquelas páginas.

Sou outro, nem melhor nem pior, tão desesperado quanto, no entanto tenho a sensação de, naquele tempo, ser mais forte. Mas é como sempre digo, nunca podemos medir a dor do passado, pois ao contrário das dores do presente, nunca a sentiremos de todo, será sempre um esboço indigesto do que passou.

Nisso falei com o Caio, do Jornal de Patos, do meu interesse de publicar o livro-reportagem, em capítulos, no site. Já que essa obra trabalhosa não deve ter tido mais que cinco leitores: eu (por obrigação), mãe, pai e meu amigo Gustavo Oliveira, que fez a capa, diagramou e escreveu a Orelha do livro. Não esperava mais do que isso, afinal cumpro minha missão como jornalista de escrever para não ser lido.

O Caio topou a publicação.

O autor

Quarta-feira, 2 de março de 2022
La Plata - Argentina.

ORELHA

GUSTAVO OLIVEIRA, arte da capa & ilustração.

Durante os primeiros anos de minha vida, morei com minha família na casa da vó Francisca.

Lá, tio Lela, filho dela, morava e trabalhava como representante comercial. Os cartazes coloridos, cheios de mulheres lindas e deliciosas empunhando copos de cervejas estavam lá, prontos para serem colocados nas portas dos butecos.

Dos 4 aos 12 anos ou 14 os rótulos da capa se impregnaram em minha mente. São parte de minha memória mais íntima. Os almoços de domingo, as risadas e reuniões do povo não eram passos sem elas lá, na boca de todo mundo.

Na contracapa, há outras que vi na vida, depois dos 15.

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“Não sei quanto às outras pessoas, mas quando me abaixo para colocar os sapatos de manhã, penso, Deus Todo-Poderoso, o que mais agora?”
Charles Bukowski

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Essa é uma obra de não-ficção, dedicada a todos ex-bêbados e os que ainda permanecem.

PRIMEIRO GOLE

Uma rua e muitas histórias, ao descer pela avenida Paracatu, durante alguns anos, sempre notei aquela placa metálica, ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, não sei qual das palavras me atrai mais ao que acontecia naquele cômodo, também na experiência que tive no Caps AD, os Centros de Atenção Psicossocial, esses direcionamos aos dependentes de álcool e drogas, importante notar essa separação, ÁLCOOL E DROGAS, então álcool não é droga?

Não trata-se disso, não é a questão a ser respondida, mas sim o que ele é capaz de fazer na vida das pessoas. Nesse livro-reportagem, nota-se o contraste entre os membros de A.A. e os pacientes do Caps, por isso dedico minha gratidão e a maior parte a eles. Não menos importante, alegro-me pelas experiências que tive nas salas de A.A. e por poder dizer que sou um amigo de Alcoólicos Anônimos.

Cada noite mal dormida valeu a pena. Ryszard Kapuściński, jornalista e escritor polaco, dizia que, para o periodista descrever a sensação de estar próximo de um leão, só seria possível caso aproximasse de um leão. Porém, nunca consumi bebida alcoólica e durante a confecção da obra, pude sentir o gosto amargo do álcool.

Talvez, Kapuściński, não se referia ao ato em si, mas a ideia de penetrar aos destinos, até senti-los de fato – é o que acredito. Assim me atrevi a dormir com cada palavra que ouvi. Como foram longas as voltas para casa a porte da minha bicicleta, os pneus já gastos pelo atrito do asfalto e das ideias que carrego.

Mergulhe, não em um copo de cerveja, mas nas histórias que verá nas páginas seguintes, as quais não consegui distinguir da minha.

Boa leitura!

O autor


COMO CHEGUEI AQUI

SOU UM HOMEM CANSADO, há três dias não durmo, apenas tenho sonhos perturbadores, isso afeta minha percepção, mal sinto o vento quente, comum dos meses de setembro. Toca meu rosto e traz o cheiro podre de esgoto da avenida Fátima Porto. Choveu há poucos dias, o nível da água está alto, com ela vem o lixo de toda cidade. O capim que cresce na lateral da faixa de ciclista respinga gotas d'água em minha calça jeans-escuro, entre uma pedalada e outra. Ainda assim é abafado, meus pés suam dentro do sapatênis carmim e da meia furada no dedo mínimo do pé direito – assim questiono ainda mais sua utilidade, além de bater em quinas de portas.

Faz 33 graus, a umidade relativa do ar é de 74% e a sensação térmica é de que vou morrer. Hoje é terça-feira, a segunda do mês. Acordei cedo e tomei um banho quente, sequei o cabelo e me olhei nu em frente ao espelho, que ia da pia até o gesso branco, observei não a mim, mas algumas marcas de creme dental no canto inferior esquerdo. Liguei a torneira, umedeci a ponta da toalha azul 100% algodão, é o que diz a etiqueta que descostura nos primeiros três pontos, posicionei dois dedos atrás da região molhada e limpei as marcas que me incomodavam. E essa transformou-se na única parte que podia enxergar com nitidez.

Enquanto me vestia, vagarosamente, pensava no melhor trajeto até a Prefeitura Municipal, julguei melhor descer pela Major Gote, depois pegar a Fátima Porto.

Puta merda, porquê peguei a Fátima Porto. Que fedor, que calor, e esse capim, droga de capim!

Infeliz, injusta, impiedosa, essa é a vida, a droga de nossas vidas, e o que temos medo de dizer sobre ela. Pois é, o capim bate menos e mais suave do que ela. Agora já posso ver o prédio, não o da Prefeitura, mas o que está à frente dela, FÓRUM REGIONAL, li a dois semáforos da subida infernal. É um bairro montanhoso, até certo ponto coberto pela vegetação verde, interrompida em algumas partes pelo laranja vibrante das erosões. Não vou descer, joguei marcha leve, um, um de sete, é o mínimo. Não vou descer, não vou descer, o primeiro sintoma, um leve relaxamento nas coxas, seguido por uma dor nas articulações, agora doem as costas e a última baixa é mental, porra! Não vou conseguir, desci, sem olhar para trás, nem para frente, continuei os 20 metros restantes cabisbaixo e amargando a desistência, ao lado segurava o guidão, enquanto olhava a roda girar, ausente de minhas pedaladas.

Quando ergui o olhar, já não havia mais subida, pude ver enfim a placa quase ilegível na fachada da Prefeitura, segui ainda sem montar, tranquei a bicicleta na haste da bandeira azul, vermelha e branco, de Patos de Minas, ao lado direito, a bandeira nacional, à esquerda a do Estado. Antes de entrar, andei de um lado para o outro, até meus batimentos cardíacos diminuírem, à ponto de não ouvi-los mais. Com as mãos no bolso da calça, brinquei com algumas moedas, reconheci a de cinquenta centavos pela largura das bordas, onde passei a unha do polegar, até identificar o traçado do cinco.

Por fim, entrei, sem cumprimentar o guarda na entrada. Me dirigi direto ao balcão, onde estava uma mulher de olhar avulso, orientou-me, “vire à direita e chegará onde deseja”. Dei alguns passos e peguei uma pequena fila, apoiei os polegares nas alças da mochila e esperei em um movimento gangorra, em que jogava o peso na perna direita, depois para esquerda, observando o piso rajado. Aproveitei para olhar as anotações, em bilhete amassado, sobre o procedimento a ser feito.

– Para você, senhor? – Disse a moça branca e gorda, com a região do nariz e bochechas avermelhadas.
– Desejo protocolar um documento para o Caps AD.

Disse como havia me orientado Maria Lúcia no tal papel, uma letra miúda e precisa, características de senhoras daquela idade, de cabelo até os ombros, loiro-escuro e trajes elegantes.

É a coordenadora do Centros de Atenção Psicossocial, são instituições brasileiras que visam à substituição dos hospitais psiquiátricos, em linguagem popular, antigos hospícios ou manicômios. São classificados por números romanos (I, II, III), que dizem respeito apenas à quantidade populacional do município e, consequentemente, ao grau de complexidade.

CAPS I – Destinado a um território com população entre 20 e 70 mil habitantes (critério para implantação) e é referência para um território com população de até 50 mil habitantes.

CAPS II – Destinado a um território com população entre 70 e 200 mil habitantes (critério para implantação) e é referência para um território com população de até 100 mil habitantes.

CAPS III – Destinado a um território com população acima de 200 mil habitantes (critério para implantação) e é referência para um território com população de até 150 mil habitantes.

O CAPS III constitui-se no principal dispositivo CAPS e presta um serviço de atenção contínua, durante 24 horas, diariamente, incluindo feriados e finais de semana, com capacidade de acolhimento, observação e repouso noturno. Assim escrito na Portaria do Ministério da Saúde nº 130/2012. Dentro disso, ainda há outras classificações, a qual não me esqueci, pois deve estar se perguntando sobre a sigla “AD”, agravos clínicos relacionados ao consumo de Álcool e outras Drogas. O caso dessa unidade.

O meu objetivo não era explicar toda essa terminologia, artigos e o escambau, para isso serviu não mais que três parágrafos. Mas sim o que detalhei no ofício, que ali devia protocolar.

– Preciso da cópia dos seus documentos. – Disse a mulher, que agora suava, naquela pequena sala (estreita, mas bem vertical), suava entre as dobras do pescoço.

Puta merda! Exclamei em pensamento, leu pelo meu semblante que não os tinha, quem anda por aí com cópias de documentos?.

– Senhor, caso não tenha dirija-se a fila ao lado.

Outra droga de fila, uma droga duas vezes maior. Fui para lá, procurei novamente no bolso a moeda de cinquenta centavos, era o suficiente para as impressões, Registro Geral e CPF. Voltei a fazer o movimento gangorra, foi quando notei aquela garota na minha frente. Isso tornou a espera menos incômoda. Imaginei nosso destino juntos, filhos, cachorro e grama no quintal. Naqueles instantes minhas ideias sobre a vida não foram tão duras, e, tudo que disse horas atrás, não servia para todos, apenas para as almas solitárias. Posso ser feliz sozinho, pensei comigo. Existem casamentos horríveis.

Observei os gestos da garota, que vestia preto e um modo delicado de agir, que de tão precisos mal movimentava os fios negros do cabelo longo. Nem seu nome descobri, nem o semblante guardei de fato. 

– Senhor, senhor, e para você?
– Uma xerox destes documentos, por favor.

Peguei a folha morna, dobrei na horizontal, em seguida na vertical, até adaptar-se ao bolso traseiro do jeans-escuro. Antes guardei os documentos na carteira, que ocupava o bolso vizinho. Retomei a fila.

– Os originais e as cópias, senhor.

Entreguei junto ao ofício, que dizia:

Ofício nº único
Patos de Minas, 9 de setembro de 2019.

Prezados Senhores,

Eu, Gustavo Pereira Rubim, brasileiro, estudante do curso de Comunicação Social: Jornalismo do Centro Universitário de Patos de Minas – Unipam, matrícula 17001027, inscrito no CPF sob o nº 111.111.111- 11, residente em Patos de Minas – MG, rua Nito de Deus Viera, Caiçaras, 301, ap. 304, sirvo-me de presente para solicitar o livre acesso à Secretaria M. de Saúde, setor Educação Permanente/ CAPS AD e seus pacientes, com o propósito de realizar um livro-reportagem dentro da disciplina JORNALISMO ESPECIALIZADO I, orientado pela professora Regina Macedo, que busca relatar histórias de pessoas acedidas ao ALCOOLISMO, amparadas pelo CAPS AD, unidade rua Dona Luiza, Lagoa Grande, 710.

Declara-se, também, por meio deste documento, que se encontra alinhado ao Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, capítulo I, art. 1º “[...] o direito fundamental do cidadão à informação, que abrange seu o direito de informar, de ser informado e de ter acesso à informação [...]” e art. 2º, IV “[...] a prestação de informações pelas organizações públicas e privadas, incluindo as não governamentais, é uma obrigação social [...]”, desde que, como rege o art. 2º, II “[...] tenha por finalidade o interesse público [...]”, assim garanto a relevância do tema que atinge quatro milhões de brasileiros, segundo a Organização Mundial de Saúde – OMS, que na década de 1960 reconheceu o conceito ALCOOLISMO como doença, por incentivo dos norte-americanos Bill Wilson, um corretor da bolsa de Nova Iorque, e Dr. Robert Holbrook Smith, um cirurgião de Ohio com um grave problema de alcoolismo, criadores da comunidade internacional Alcoólicos Anônimos – AA – que assim como o CAPS AD, recebem pacientes afligidos pelo álcool.

Porém, afirma-se enfim, através deste documento, princípio do livro-reportagem que se fizer possível, o real propósito do escrito: que irá basear-se, não na trajetória de bêbados e fracassados, mas em seres humanos sujeitos aos malefícios do álcool, muita das vezes levado a garganta como medida de esquecer mazelas e sofrimentos de uma vida amargurada.

Atenciosamente,
Gustavo Rubim.

– Senhor, seu ofício será enviado para Secretaria Municipal de Saúde, em seguida para o Caps AD, no prazo médio de uma semana terá uma resposta. – Disse ao cortar com uma régua o papel timbrado, com o brasão da Prefeitura, que me entrega em seguida.

Nº Processo 14.955
Data 10/09/2019
Hora 13:29
SubAssunto OFÍCIOS EM GERAL
Observação ofícios em geral
Contribuinte GUSTAVO PEREIRA RUBIM
C.N.P.J.      C.P.F. 111.111.111-11
Telefone                   /
Atendente GISELE FARIAS DOS SANTOS

Deixei Gisele logo que exclamou, “próximo/ senhor”.

Ainda não contei o que vivia naqueles dias, estava desempregado e isso me abalava moralmente. Um homem sem emprego é pior que um homem traído, pior que um homem traído publicamente, pior que um homem traído publicamente e passivo. Só não é pior que um homem desempregado repleto de dívidas para pagar. Esse era meu caso e o motivo do olhar vago, do entrelaçar das mãos no cabelo oleoso, do enrugar a testa e das noites sem sono.

Porém, aquela tarde merecia um picolé. Andei bons quilômetros até ali, era merecido. Observei o senhor debaixo de uma árvore, que se preparava para a chegada da primavera, e algumas pessoas dentro da margem de sua sombra, que pelo horário não era mais que quatro passos dos últimos galhos.

– Os de fruta são um e cinquenta, ao leite dois e cinquenta.

Pensei em comprar o mais barato, entretanto refleti de que valia aqueles um real a mais, de que valia os dias que passava economizando, já que no fim do mês sempre sobravam boletos para pagar. Do que valia minha vida sem um picolé ao leite debaixo da sombra de uma árvore qualquer.

– Me dê um de chocolate.

Paguei com minha nota de cinco, a que sempre deixo para emergências, aquilo era uma emergência, agora penso o que faria com cinco reais em uma emergência mais drástica, creio que devo aumentar a taxa.

Com as mãos grudando, atirei a embalagem a lixeira, ainda na porta da Prefeitura, bebi dois copos d’água em um bebedouro lateral e enxuguei a boca na manga da camisa, em um movimento leve com o pescoço. Andei em direção às bandeiras, destranquei a bicicleta e segui de volta para casa, sem observar nenhum detalhe, pensava como a vida realmente era infeliz e que talvez pudesse escrever um grande livro com as histórias que ia encontrar.

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NÃO CHEGOU A FECHAR UMA SEMANA, me ligaram um dia antes, segunda-feira de manhã, estava autorizado. Fui no dia seguinte.

[CONTINUA]

Instagram: @gustavo_rubim
eugustavorubim@gmail.com

FICHA CATALOGRÁFICA

RUBIM, Gustavo Pereira. Anônimos; entre a vida e a bebida, histórias interrompidas pelo álcool/ Gustavo Rubim – Patos de Minas: EDITORA, 2019, 116 p.

Capa: Gustavo Oliveira
Diagramação: Gustavo Oliveira
Fotografia: Gustavo Rubim
Revisão: Profª Ms. Regina Macedo Boaventura/ Profª Sintia A. Pereira da Silva
Orientadora: Profª Ms. Regina Macedo Boaventura

1. Livro. 2. Livro-reportagem. 3. Alcoolismo. Jornalismo Especializado I - Centro Universitário de Patos de Minas. Fundação Educacional de Patos de Minas, Patos de Minas, 2019.


* Gustavo Rubim, 22 anos, brasileiro, jornalista pelo Centro Universitário de Patos de Minas, Unipam - Brasil. Mestrando em Integração Latino-americana pela Universidade Nacional de La Plata, UNLP - Argentina. Vive em La Plata - Argentina.

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1 Comentários

  1. Muito interessante aguardando o segundo capítulo!!!! 👏👏👏👏👏

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