Aliterações

Por Neto Moreira


Meu nome esqueci no banco de uma praça, sem graça. Não tinha pássaros, não tinha passos. O pipoqueiro, um senhor suado, ensaiava o espanto de quem, há tanto, não via um vivente:

- Há um século não vendo nada. Tome aqui um agrado, não agradeça, não é de bom grado, que pipoca, sozinho em praça, só se mastiga a tristeza, doce ou salgada.

Sentei sentindo pressentimentos, coisa do destino ou culpa mesmo? Três ou quatro mastigadas, boca adentro e os pensamentos vomitaram descontentamentos. Uma pipoca chamei de Dúvida, a outra, Arrependimento. A mais doída, aquela que desceu arranhando o corpo, amargando a boca, sangrando as vísceras que me compõem, a mais difícil de engolir chamei, porque esse era seu nome, de Verdade.

O Pipoqueiro observava a obra. Parecia pobre, mas não o era.Parecia um nobre e quem me dera saber se sábio ou se assecla de estranha seita. Estava sério, sentando em banco próximo, como se soubesse, exato, do próximo ato. Levantei-me entre o engasgo e a fala gaga: - “Onde estou? Que lugar é esse que não pertence a lugar algum? O que me deste que me viste nu? Por que o relógio da praça não trabalha a graça de contaras horas desta demora?”

Aproximou-se com máximo cuidado, o passo entre a pressa e a lentidão, a boca entreaberta, como se trouxesse o ar de alguma explicação, em vão. Era ele o anjo da desilusão? Aquele que forja, com esmero, o espelho de nos vermos? Agachou-se defronte minha fronte, em seu verbo, destituído de dor ou felicitação, só o hálito de quem não tinha o hábito daquela conversação:

- Eu estou aqui há tantas eras... não me deram calendários para contar meus sofrimentos, não me deram bússolas, velas ou ventos, meus mapas só me levaram para dentro. Cheguei aqui quando, perdido nas vias e veias de minha vida, quis pensar por um momento, dei nessa praça, sem graça, sem pássaros ou passos. Um pipoqueiro, um senhor suado, cumprimentou-me com entusiasmo, deu-me pipoca de graça e o tempo para ruminar pensamentos.

Parou por um instante. Olhou para o lado, um olhar demorado, um olhar estranhamente maduro para um pipoqueiro, um olhar trabalhado pelo tempo:

- Depois de me fazer as mesmas perguntas que gritastes agora aos ares, o pipoqueiro repetiu o que dito agora por mim foi à ti. O eterno retorno, contorno das vidas divididas entre as dúvidas e as dívidas. Disse-me que já era hora de ir, maturado pelas rugas da reflexão, tomou em suas mãos este avental de pipoqueiro e estendeu a mim, como agora entrego a você.

Uma turba de ideias turvava a visão, um turbilhão. Era isso então?

- E se eu não quiser aceitá-lo? E se não me couber no corpo que não esperava esta confissão?

- Amigo, não sei se há abrigo nessa decisão, se essa escolha não te encolha a ponto de não achar a saída desta praça sem graça, que é, pra dentro, hoje sei, pelo tempo em que aqui fiquei.

Entregue à trama daquela fortuna, as veias pulsavam no impulso (in)consciente de receber o fato estendido, como se escrito estivesse ou que preciso fosse. Os diálogos cessaram cedo, nos olhares, todo o enredo. Tomei o traje e como que, vestindo a um padre, apresentei-me para reza, rédea da récua, da carga que eu transportava minha mente.

O senhor, desarmado e despido do terno de pipoqueiro, desapareceu na cerração sombria daquele terreiro, deixando-me só naquela praça sem graça, sem pássaros nem passos, só pensamentos revoltos pelo tempo. Mas sei que virá haver o dia de algum alguém almejando saber o que escondia, receber de minhas mãos o alimento da sabedoria.

Eu sei virá, como aqui relatado neste conto, quando eu estiver pronto e até este momento, acolá, aqui e ali, minhas aliterações em um jardim, álibis de mim.


Neto Moreira é um poeta fajutinho, contista e compositor de rocks rurais.

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2 Comentários

  1. Excelente conteúdo. Parabéns!

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  2. O Neto Moreira vem dar graça às nossas leituras...outrora alguns poetas patentes ousavam, com frequência, atreverem-se nas letras e nos presentearam com maravilhosas criações literárias. Alguns deles adormeceram...hoje temos a satisfação de ler esse contista, nada fajutinjo, ao contrário, extremamente criativo e inteligente que dá sentido à nossa leitura.
    Continue, Neto Moreira, nesta senda de fazer os bons leitores muito felizes!
    Amém!

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