Anônimos: entre a vida e a bebida, histórias interrompidas pelo álcool - Parte 3

Por Gustavo Rubim*


ISRAEL

CABISBAIXO, sentado em um tamborete baixo de madeira rústica, começou.

“Sou Israel Luís da Rocha”, tinha identidade aquele homem. “Meus pais são Ananias Luís da Rocha e Rosálina Maria de Jesus Rocha”. Viveu na Vila Operária, bairro periférico, até os doze anos. Tinha seis irmãos, o primeiro foi morto na porta de casa. A irmã Maria de Fátima namorava um recruta, que em um fim de semana, destruiu parte da família. Agrediu Maria dentro de uma discussão, o irmão Baltazar entrou para defendê-la. De dentro de um casaco, pendurado em um cômodo da casa o recruta sacou a arma, matou Baltazar; matou Maria, grávida de três meses e deu três tiros na mãe de Israel, que resistiu.

Assim, sem esboçar nenhuma expressão, disse-me seco e direto, com aqueles olhos amarelos, provavelmente causados pelos 40 anos de pinga. “Estava deitado quando tudo aconteceu”. Logo depois morreu Sebastião, outro irmão, “morreu de beber”. A casinha ficava próximo ao rio Paranaíba, mudaram na enchente de 1984, para o Bairro Jardim Aquarius. Ali ficaram realocados, agora sem as enchentes. A mãe morreu de tristeza. O pai, que trabalhava como curtume, profissão de curtir couro, saiu para pescar com Israel e outro filho, quando viram o pai, no piloto da canoa, cair no rio e sumir, suspeitam que tenha tido um infarto fulminante, algo assim.

“Meu pai era um homem bom, trabalhou a vida inteira”. Israel começou a beber aos 17 anos, apenas aos fins de semana. Conheceu a esposa ainda na Vila Operária, estão juntos há 36 anos, tiveram três filhos, duas moças e um rapaz, além de três netos. Mantém contato com todos eles, “nunca fecharam a porta para mim, sempre tive para onde voltar”.

Olhei aquele homem, com traços orientais, que justifica o apelido, seu Miagui, assim o chamam por lá. Nunca pude imaginar tanta desgraça na vida de uma pessoa ainda mais na vida daquele sujeito pacífico, que passa as manhãs com um jogo de tabuleiro, cujo objetivo é alinhar em cinco de seis corredores, vinte e cinco peças, divididas proporcionalmente em: amarelo, azul, branco, verde e vermelho. Cada corredor deve conter cinco peças da mesma coloração, que no início são embaralhadas. Lê-se na madeira velha onde Israel corre as peças lentamente, com o dedo indicador da mão direita; “gosta de dá o cú”, “chupa rola”, “Caps AD”, “pelota”, “Carlos Cleia”.

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A FASE MAIS DIFÍCIL FOI QUANDO QUEBROU O TORNOZELO. Caiu do meio-fio, isso é uma ação de risco para qualquer bêbado, tentar se equilibrar no meio-fio. Aponta o mesmo dedo de mexer as peças no tabuleiro para o pé esquerdo e mostra a cicatriz, clara, em alto-relevo. Depois quebrou o pé novamente da mesma forma. “Não consigo mais agachar, tem quatro anos que não trabalho”. Além da limitação, hoje tem uma infecção de bexiga, problemas no fígado e pâncreas.

“Nessas bebedeiras já fui maltratado na rua, diversas vezes. Em uma briga de bairro, matei um homem”. Algumas facadas foram suficientes, passou vinte dias na cadeia e foi absolvido pelo juiz, por ter agido em legítima defesa. Mas não saia da minha cabeça, seu Israel matou um homem, como pode? Olho-o novamente, permanece da mesma forma, sem expressão, nem o vento do ventilador ao fundo é capaz de mover um fio de cabelo branco de sua cabeça. “Isso me dói até hoje, a bebida faz a gente fazer coisas inimagináveis”. O juiz sim, mas aquele sujeito nunca se absolveu, o remorso continua ali, vivo.

A maioria dos pacientes são como seu Israel, velhos de destinos tristes. O que o diferencia é ter uma família e possuir sonhos, “antes de morrer quero ver o Flamengo no Maracanã”. Possuir sonhos é talvez o melhor remédio para eles, um motivo para sair dali, seguir a vida, aproveitar o que lhes restam. “Você é novo menino, estuda, tem tudo pela frente, será um ótimo jornalista, tenho um primo que é jornalista, Maurício Rocha”. Com DNA jornalístico, me contou da briga da noite passada, “uma cachorrada só”, que resultou no ferimento de Everson.

Fui embora, almocei com aquela história na cabeça, estudei com aquela história na cabeça e dormi com aquela história na cabeça.

– Aquele chuveiro tá de pelar frango.

E VOLTA A ASSEMBLEIA.

Eles têm muita preocupação com a higiene, ninguém gosta de andar sujo, com mau cheiro. Grande parte das solicitações são em relação a isso, o restante a respeito da falta de segurança, objetos roubados, brigas, entre outros fatos. E claro, o horário das refeições, muito distantes um do outro, reclamação que coube a João Batista dizer, ergueu a mão, não a enfaixada com uma tipoia improvisada por uma faixa, a outra, a esquerda.

– COMO DIZ O CASO DO OUTRO, seria bom um cafezinho depois do jantar, comemos muito cedo.

Ideia acatada por Maria Lúcia, o cronograma ficou assim:

Abertura dos portões, 7 horas;
Café da manhã, 8 horas;
Almoço; 11 horas;
Café da tarde, 14 horas;
Jantar, 19 horas;
e o cafezinho aprovado, às 21 horas.

Os marmitex vem do restaurante Vovó Lulu, “comida boa”: arroz, feijão, macarrão, um tipo de carne e salada fresca. Pouco antes das onze horas, passa algum funcionário para listagem da refeição.

[CONTINUA]

Instagram: @gustavo_rubim
eugustavorubim@gmail.com

FICHA CATALOGRÁFICA

RUBIM, Gustavo Pereira. Anônimos; entre a vida e a bebida, histórias interrompidas pelo álcool/ Gustavo Rubim – Patos de Minas: EDITORA, 2019, 116 p.

Capa: Gustavo Oliveira
Diagramação: Gustavo Oliveira
Fotografia: Gustavo Rubim
Revisão: Profª Ms. Regina Macedo Boaventura/ Profª Sintia A. Pereira da Silva
Orientadora: Profª Ms. Regina Macedo Boaventura

1. Livro. 2. Livro-reportagem. 3. Alcoolismo. Jornalismo Especializado I - Centro Universitário de Patos de Minas. Fundação Educacional de Patos de Minas, Patos de Minas, 2019.


* Gustavo Rubim, 22 anos, brasileiro, jornalista pelo Centro Universitário de Patos de Minas, Unipam - Brasil. Mestrando em Integração Latino-americana pela Universidade Nacional de La Plata, UNLP - Argentina. Vive em La Plata - Argentina.

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