Anônimos: entre a vida e a bebida, histórias interrompidas pelo álcool - Parte 5

Por Gustavo Rubim*


CLETO

SEU CLETO, tem um carinho por ela (Lorena). É a única pessoa para quem o vejo sorrir ou fazer alguma de suas piadinhas. É um homem triste e solitário. Chega ao Caps antes de todo mundo, quando o portão ainda está fechado. Varre a fachada, com seu jeito lento e paciente de fazer as coisas. Passa a vassoura sob as folhas últimas que caem para a chegada da primavera. Arrasta para um lado, arrasta para o outro, sem pressa, até que forme três volumosos montinhos. Assim faz após o café. Farelo de pão nas cadeiras, mesas, que cobrem o chão de concreto. Prato cheio para os pássaros que frequentam o local pela manhã.

Vai ao balcão. Pega a chave com Ricardo, o mesmo que vi naquele primeiro dia. É estagiário de enfermagem, porém trabalha na recepção e não esconde sua orientação sexual, presente na voz e no jeito afeminado, mesmo com todo aquele tamanho. Seu Cleto agradece, e sai balançando o chaveiro azul, escrito em pincel negro HORTA. Mais uma função que exerce voluntariamente, molhar as plantas. Abre o cadeado que dá para um espaço lateral onde ficam os canteiros, dois principais delimitados pela passarela de concreto, o restante em vasos e espaços aproveitados. Dali sai a salada fresca para o almoço e chás em dias frios.


Com o dedo em riste, seu Cleto nomeia cada legume ou planta com a voz desgastada:

• Couve de duas variedades, a mais verdinha, couve Manteiga;
• Pimenta Dedo de Moça, Malagueta e Cumarim;
• Salsa;
• Jiló;
• Babosa;
• Rúcula;
• Manjericão;
• Alface;
• Mostarda,
• Citronela, que espanta mosquito;
• Erva Cidreira;
• E hortelã. 

Atividades que ajudam-no a fugir do passado, preencher o vazio da mente. Cleto Vieira dos Santos nasceu em Felixlândia-MG, uma cidadezinha com pouco mais de 14 mil habitantes. O nome, Cleto, não sabe de onde veio, porém, a psicóloga Sibila, uma mulher loira de meia-idade, geralmente seria, mas pacífica, ajudou a desvendar o significado, “vem do grego, que quer dizer: o eleito”.

Os pais morreram quando Cleto ainda era criança.

Era mês de maio, um dia frio, daqueles de céu cinza e que o sol tira folga. A mãe, que trabalhava como doméstica, fazia doces e lavava roupa para completar a renda, “Cleto, vai para dentro, faz frio”, disse ao chegar de uma entrega de encomenda. Pouco depois foi para dentro e encontrou a mãe caída, “morreu passando roupa”.

O pai tinha um bom emprego, era funcionário da prefeitura. Adoeceu. Ia e voltava do hospital e não sabiam o que era. Até que foram a Belo Horizonte, 196 quilômetros dali, quando chegaram ao hospital o médico mandou o homem direto para sala de cirurgias, estava com apendicite, que já havia se rompido. Não resistiu ao procedimento.


Fora os fatos que se sucederam teve uma infância feliz. A primeira mudança foi para Morada Nova, uma cidade ainda menor, famosa pela travessia de balsa, a qual seu Cleto, percorria em cima dos caminhões de carvão, no meio do trajeto pulavam no rio São Francisco e completavam o caminho nadando. Lá trabalhou por oito anos para um tal de José Silva, apelido João Luzia. Dormia na casa dele, em um cômodo separado, ainda era menino. Seguiu para Gouveia-MG, onde ficou por um tempo. Depois João Pinheiro-MG. “Nunca dormi na rua, nem usei drogas”, na cidade trabalhava para o sogro, conheceu a esposa no tempo de Morada Nova, era vizinha da casa onde ficava. Passou a beber nesse período, com o sogro e o cunhado. Levam uma garrafa de pinga com jurubeba para a roça e dava para semana inteira, “bebia pouco”.

Casou-se em Presidente Olegário-MG. Nesse período trabalhava em carvoarias, até, agora em Patos de Minas, encontrar emprego no Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Rodoviário – Sinditran –, onde ficou por 24 anos. Saiu para receber o Fundo de Garantia – FGTS. Arrumou outro serviço na construtora Faria, em que trabalhou na obra da Ponte Rio Paranaíba até Patrocínio-MG. “Fazíamos canaletas, drenos e queda d'água". Em um trecho, próximo a Serrinha, havia um local que alagava todo ano, onde foi feito uma vala enorme para escoar a água em época de chuva.

Até então seu Cleto falava naturalmente, contava sua história sem grandes detalhes, porém, não existia em sua fala, fatos que ligavam seu destino a situação atual. Afinal, como pode um homem trabalhador, sério, casado, empregado chegar a tal ponto. Novamente eu e meus pré julgamentos, até que em uma pergunta rotineira, feita regularmente pelos jornalistas ou pessoas comuns dentro de uma primeira conversa, veio o que eu não esperava, o baque seco e o gosto amargo da tragédia.

– Você tem filhos?

Hesitou, pausa e silêncio. Tenho quatro. – outra pausa e chora. Uma lágrima miúda escorre irregularmente no rosto marcado de expressões.

– Na verdade tenho três, um Deus levou, completou.

“Era 8 de março”, na verdade 11, 11 de março. Assim como todos os pacientes com que falei, ambos possuem falhas de memórias, principalmente em relação às datas que se divergem, talvez essa seja minha maior dificuldade na hora de relatar os fatos, um ou outra contradição aparece, não intencional, pois aqueles homens são os mais sinceros que já ouvi. Cada palavra é limpa e verdadeira, mesmo que fuja da realidade.

Uma sexta-feira. Seu Cleto saiu de casa, como de costume Júnior, um dos filhos, esse de 21 anos, beijou a testa do pai e despediu-se, despediu-se para sempre.

– Pai, Deus te acompanhe.
– Amém, filho, acompanhe nós todos.

Subiu a rua e foi-se. Na época aposentado, seu Cleto trabalhava no Ibis Hotel, tudo começou com um bico no período de Festa do Milho, a festa tradicional da cidade, em que são recebidos muitos turistas. E não saiu mais, trabalhava como guarda.

– Naquele dia pensei em almoçar em casa, mas era sexta-feira, saía às quatro da tarde, se fosse em casa, não voltava, aí ia perder o dia.

Seu Cleto ficou. Almoçou por lá mesmo e quinze para as quatro, veio dois homens em sua direção. Júnior que estudava Direito no Centro Universitário da cidade, que em dois anos se transformaria no primeiro advogado da família e há pouco dera um beijo no pai, passou uma corda no pescoço e suicidou-se. Júnior, tinha o mesmo nome do pai, Cleto Júnior, mas não era apenas isso que os ligava de maneira mais forte, sim, o orgulho, orgulho de ver um filho de notas altas na escola, agora para ser advogado, o único da família que gostava de estudar. Além do nome, também tinham em comum o emprego, Júnior trabalhava em um hotel, não o mesmo, mas o hotel Fratelli. No fim do mês juntavam os salários dos hotéis, a aposentadoria do pai e assim pagavam os estudos, mesmo com a oposição da mãe, dizia que o menino devia parar os estudos, a situação não permite, nem Cleto permitia que Júnior parasse. “O que pude fazer por ele eu fiz, nunca deixei faltar nada, nada”, e a lágrima continuava a rolar pelo caminho tortuoso até cair no jeans rajado da calça e fazer um pequeno círculo escuro.

Tudo que seu Cleto queria era uma explicação, um motivo sequer, quando veio a notícia dos homens naquela tarde.

– Seu filho morreu. Não, pior.

– Seu filho suicidou.

Depois disso batia aquela saudade dele, um vazio sem explicação. Não queria pular de um prédio, nem entrar na frente de um carro ou fazer como o filho, passar uma corda no pescoço, “só queria que Deus me levasse, pedia a ele todos os dias”. Então bebia, bebia na esperança que aquela dor passasse ou o levasse de vez. Quase conseguiu, bebeu tanto que foi parar no hospital São Lucas. Lá encontrou o homem que mudou seu destino, o destino de quem só servia morrer, esse homem é o Doutor Murilo, psiquiatra, o qual está envolvido na história da maioria dos personagens deste livro, inclusive na minha.

Conheci o Doutor – que não gosta de ser chamado de doutor, mas que pela formalidade deste escrito assim será tratado, em um evento. Havia escrito algo sobre suicídio e fui convidado pela coordenadora do Caps II, sim outro Caps, esse, porém que trata de saúde mental, Priscila Villas Boas. Foi quem me recebeu de braços abertos e me levou a conhecer o famoso Doutor, amado pelos pacientes. Logo nota-se o motivo, a sinceridade. Sincero nas palavras e no modo de ser, assim trata todos, inclusive os pacientes. Entendo, quando passei a conviver com eles, senti uma sensação de pertencimento, de fazer parte e aprender, não sei o quanto podemos aprender com eles. Nesse evento ouvi algumas dessas experiências em relação à dependência química e aqui estou nessa tentativa de livro.


Não foi apenas o Doutor que falou com seu Cleto, também a Sabrina e a psicóloga Juliana, a qual encontrei pelos corredores do Caps. Além do padre Geraldo, que celebra as missas de domingo na igreja do Rosário, na aleatória avenida Paracatu.

– O primeiro mês foi o pior, bebi tanto, que minha glicemia chegou a 600 (deve ser muito, imagino), fui parar no hospital Regional, outras crises vieram.

Chegou a ficar preso por cinco dias. A história é confusa, mas deve ser contada.

Ao chegar em casa, era um desses dias que havia bebido. Estava na cozinha com a esposa, que pediu a ele para amolar a faca, assim o fez.

– Vê se está bom, disse ao aproximar a faca em direção a mão da esposa.

Nisso “encostou” o instrumento, bem afiado. Causou um corte que resultou em cinco pontos. Sangue, gritos, ferimento, nessas condições o vizinho acionou a polícia. Seu Cleto foi direcionado à Delegacia da Mulher, enquadrado na lei Maria da Penha. Durante a conversa, pouco falou da esposa, disse apenas que é uma mulher ignorante, nunca aceita os erros. Após o episódio, retirou a queixa sobre o marido.

– Seu Cleto, pouco falou dos outros filhos, quais os nomes deles?
– César, Luiz Pablo e Murilo.

Procura algo na carteira, deixa cair alguns papéis, mas não se importou. Até encontrar uma foto três por quatro de um dos filhos. Era Luiz Pablo, pele clara, cabelo ruivo, a única coisa que herdou do pai foram os olhos claros.

– O sonho que existe dentro de mim nunca poderá ser realizado, ver o Júnior formado.

[CONTINUA]

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FICHA CATALOGRÁFICA

RUBIM, Gustavo Pereira. Anônimos; entre a vida e a bebida, histórias interrompidas pelo álcool/ Gustavo Rubim – Patos de Minas: EDITORA, 2019, 116 p.

Capa: Gustavo Oliveira
Diagramação: Gustavo Oliveira
Fotografia: Gustavo Rubim
Revisão: Profª Ms. Regina Macedo Boaventura/ Profª Sintia A. Pereira da Silva
Orientadora: Profª Ms. Regina Macedo Boaventura

1. Livro. 2. Livro-reportagem. 3. Alcoolismo. Jornalismo Especializado I - Centro Universitário de Patos de Minas. Fundação Educacional de Patos de Minas, Patos de Minas, 2019.


* Gustavo Rubim, 22 anos, brasileiro, jornalista pelo Centro Universitário de Patos de Minas, Unipam - Brasil. Mestrando em Integração Latino-americana pela Universidade Nacional de La Plata, UNLP - Argentina. Vive em La Plata - Argentina.

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