Fw. Enc.: Resenha Relicário de todas as coisas de Luís André Nepomuceno

“Estou só. Uma vez a cada cem anos, abro a boca para falar e minha voz ressoa neste deserto tristonho, mas ninguém escuta.”

Nina na peça “A Gaivota” de Anton Tchekhov


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Assunto: Relicário de todas as coisas de Luís André Nepomuceno
Para: Altamir Fernandes de Sousa

No dia 28 de abril, próximo, passado, recebi via Amazon, o livro, “Relicário de todas as coisas”, que você havia me falado que Luís André Nepomuceno iria lançar. Comprei na pré-venda. Estava ansioso para ler, sobretudo depois daquela entrevista que ele concedeu a Lívio Soares, aguçando ainda mais a minha curiosidade. Infelizmente estava terminando de escrever uma coisa aqui sobre os pés descalços de Santa Maria Madalena, de Aleijadinho e, portanto, só depois de terminado o meu texto, pude começar a leitura no dia 2 de maio. Assim, tão logo terminei a leitura, no dia 4, comecei a escrever sobre essa obra tão original e cativante. Aliás, não foi ideia minha, mas de meu filho Caio, publicar em seu “Jornal de Patos” online, e que acha que sou capaz de resenhar o livro, mas este não é qualquer livro e eu ultimamente só tenho escrito coisas sem nenhuma preocupação nem textual, teórica ou, digamos assim, séria.

Das poucas vezes em que conversamos sobre o Luís, isso quando eu ainda era professor, e de certa forma nós éramos “colegas de escola”, lá no Unipam, sempre admirei e respeitei, e ainda mais depois ele lançou seu primeiro livro, “A Musa Desnuda e o poeta tímido : o petrarquismo na arcádia brasileira”, em 2002. Portanto há vinte anos. E por tabela foi através dele que pude conhecer um pouco mais, muito mais, quem foi o grande humanista Francesco Petrarca através do livro, “Petrarca e o Humanismo”, de 2008. E no decorrer do tempo, em suas palestras e cursos, vieram outros, Giovanni Boccaccio, Dante Alighieri e tantos outros, lembra? Suas palestras eram muito concorridas, e elas estavam me ajudando suprir minhas deficiências nestes e noutros autores e assuntos, e seguramente me levaram a outros. Apesar de ter cursado uma Universidade Federal, saí, de lá desnudo de muitos conhecimentos. Para não dizer, ainda vestido com a minha ancestral armadura da ignorância.

Depois vieram outros livros, como por exemplo, “Antipalavra”, que é anterior, ao “Petrarca”, de 2004, em que sua sensibilidade e criatividade, que claro já existiam, e passaram a emergir com segurança e rumo certo. E neste livro, em “Firmina Botelho”, já aparecem personagens que voltariam no “Relicário”, como Firmina Botelho, Ismênia, Flordualdo, Florêncio Pacheco, Henriqueta, Branca, Violeta e Saturnino de Melo e Castro. Flordualdo, mais tarde, muito mais tarde, diria de Firmina: “O amor dela era uma moça”.

Luís André, como João Guimarães Rosa, Gabriel Garcia Márquez e tantos outros, resgataria personagens de escritos anteriores, em suas obras-primas futuras, como “Grande Sertão: Veredas”, “Cem anos de Solidão” e “Relicário de todas as coisas”.

Mas, caro Altamir, não irei falar dos outros livros dele e nem de suas outras atividades, que não são poucas. O me interessa aqui é o “Relicário”. Lembra? Te perguntei, estarei à altura de pôr a termo essa ideia? Você disse, uai, se seu filho acha é porque o “véi é bão”.

De qualquer forma, quero relembrar aqui, o que disse há algum tempo e você concordou comigo. Eu disse, que o Luís André, era um verdadeiro renascentista. Claro, disse, baseando-me no que eu considero um renascentista, ou seja, aquele intelectual que procurou aprender tudo de seu tempo, mas não foi só nos hebdomadários e revistas científicas em voga, mas foi também ao passado beber nas melhores e mais límpidas fontes de conhecimento daqueles homens que viveram o seu mundo e a sua época, mas apreenderam outros mundos e outras épocas e trouxe para seus contemporâneos e conscientes ou inconscientemente, legaram para o porvir. Nicolau Maquiavel, por exemplo, quando se encontrava em ostracismo, relata que depois de sua faina cotidiana, “Chegando a noite, de volta a casa, entro no meu escritório: e na porta dispo as minhas roupas cotidianas, sujas de barro e de lama, e visto as roupas de corte ou de cerimônia, e, vestido decentemente, penetro na antiga convivência dos grandes homens do passado; por eles acolhido com bondade, nutro-me daquele alimento que é o único que me é apropriado e para o qual nasci...”. O renascentista trás revolucionariamente o novo, mas busca no passado este novo, com respeito...

Quando penso nestes homens renascentistas, que não foram poucos, penso primeiramente, não em Petrarca, Dante, mas Leonardo da Vinci. Ele, como já escrevi alhures, foi o que chamam de polímata ou polígrafo, foi pintor, escultor, inventor, anatomista, estrategista militar, ecologista, geólogo, escritor, músico, arquiteto, arqueólogo, decorador, desenhista e porque não dizer filósofo. E, Luís André Nepomuceno se não é isso tudo, por enquanto, é quase tudo isso.

E eu te falei, e você concordou, ele é único renascentista que conheço.

Aliás o único da cidade e região. Mas estou te escrevendo isso, para te falar das impressões, emoções e opiniões o que esse livro, “Relicário de todas as coisas”, me suscitaram. Na verdade, terminei a leitura há poucas horas e estou ainda atordoado, ou anestesiado ou sei lá o quê. Mas como não sou crítico literário e a minha tíbia formação universitária é o que consta em meu diploma, ou seja, “Licenciatura em História”, e parafraseando Immanuel Kant, em “Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita”, um cérebro tão fraco e distorcido, de como o meu, não pode escrever nada que não seja fraco e distorcido.

Não queria, mas irei usar uma palavra da moda e uma ação, que não gosto, spoiler, mas tentarei, coisa difícil neste tipo de escrita. Entretanto, ele em sua entrevista já fez isso de algumas partes, o que não é nocivo, já que a leitura que cada um faz de uma obra é diferente do que se ouviu dela.

Por exemplo, quando o Luís fala que a sua personagem predileta é Rosalina, veio-me à memória, outra Rosalina, a do patense, Autran Dourado, em “Ópera dos Mortos”, entretanto, constatei que são personagens totalmente díspares.

Vamos lá, lembra? Foi você quem enviou-me o link da entrevista, e nela Lívio Soares, fala do livro romântico, “Inocência”, de Visconde de Taunay. E fiquei pensando no livro de Taunay no decorrer da leitura, buscando algumas similaridades, e se em Inocência, que foi publicado exatamente em 1872, ano em que se passa o “Relicário”, o “protagonista” por assim dizer é um “doutor boticário”, ou seja, um médico amador sem diploma que se utiliza do “Chernoviz”, um famoso manual de medicina utilizado em meados do século XIX, e muito tempo depois para exercer as artes curar. Inclusive, meu pai, quando foi proprietário de uma farmácia lá em Major Porto, na década de sessenta, tinha um livro desse. Esse “Doutor amador”, Cirino em suas viagens ao acaso, acaba conhecendo Inocência.

Mas Florêncio Pacheco, não é um fotógrafo amador, e não perambulava pelo interior do Império em busca de pacientes, ia cumprir um contrato de trabalho. E Inocência, não era Rosalina, por exemplo, e tinham em comum, além de serem mulheres brasileiras do século XIX, uma inocência forçada pela época e o atraso daquela terra inóspita.

Outro livro que me veio à memória foi o romance naturalista, “A Carne”, de Júlio Ribeiro, de 1888. E, quando ler o livro, meu caro Altamir, haverá de concordar comigo, e que a foto da capa do “Relicário”, tem a sua razão de ser.

E confesso, depois da leitura, não deixei de pensar em Boris e Nina, personagens da peça teatral, “A Gaivota”, do russo, Anton Tchekhov, de 1896.

Como o próprio Luís disse em sua entrevista, o livro não tem um narrador, e sua narrativa consiste em “diversos gêneros”, cartas, diários, receitas, anúncios de jornais, atas e outros, e que não é necessariamente uma originalidade em narrativas ficcionais ou não.

A novidade, a originalidade desse livro, é a escrita do Luís André, ou seja, a composição de seus personagens, a descrição de seus pensamentos e ações. Seres humanos num Brasil oitocentista, mais propriamente de uma Minas oitocentista, uma Minas do interior, do oeste e noroeste. Como se fosse um universo criado de tão bizarro e insólito que é. Uma sociedade patriarcal, escravocrata, misógina que parece absurda e nunca tenha existido, mas que existe até hoje, é só abrir a janela, ou porta e olhar lá fora ou então permanecer dentro de suas próprias paredes. A casa-grande e a senzala ou as dezenas de vilas e cidades que ele cita, como Ouro Preto, Mariana, Diamantina, Curvelo, Dores do Indaiá, Bom Despacho, Santo Antônio dos Patos, Curvelo, Recife, Serro, Paracatu e tantas outras do século XIX, inclusive do estrangeiro, continuam lá com os seus atavismos imutáveis como suas taras...seus manicômios, suas salas de visitas, suas igrejas, seus puteiros e suas ruas cheias de animais engravatados e loucos de todas as espécies...

Mas se Luís André Nepomuceno, que em sua narrativa, cita inúmeros médicos ou especialistas das doenças do corpo e da alma humana, em momento algum ele deixa de abrir seu próprio relicário poético e filosófico. Sublimes momentos de melhor literatura de todos os tempos.

E Altamir, lembra que conversamos sobre a erudição de Luís? Apesar de sua juventude naquela época em que falávamos dele, sua erudição já era inigualável, hoje, e por enquanto, é qualquer coisa, que mortais, ainda mais mortais preguiçosos, jamais alcançarão.

Assim esse “Relicário de todas as coisas”, é também um relicário de todas as leituras, ou quase todas, já que as citações de livros e autores, são contextualizadas e vão da Antiguidade Clássica, aos autores dos oitocentos, claro passando pelos gregos, latinos, medievais, renascentistas, iluministas, neoclássicos, românticos e realistas. Ao acaso, durante a leitura, listei cerca de setenta, escritores, poetas, médicos, pintores, viajantes estrangeiros, escultores, fotógrafos reais e suas obras nacionais e estrangeiros de várias nacionalidades. Sem contar inúmeras de suas pinturas, esculturas e obras literárias ou científicas e personalidade históricas, das Minas, do Brasil e do resto do fim do Mundo. Além, disso, cita o “Livro de Diana”, que até ontem de tarde, nunca tinha ouvido falar. Hoje eu sei ou acho que sei, que é “Los siete libros de la Diana”. E que está relacionado a duas das mais poéticas e pungentes e trágicas personagens do “Relicário”, Firmina e Ismênia, em “Antipalavra”. Uma antihistória de amor, como a de Marília e Dirceu, Riobaldo e Diadorim, Antígona e Hêmon, Safo e Faon. E de outros personagens desse “Relicário”, tão cheio de coisas sagradas e profanas, sujas e limpas, sanas e insanas e que não posso falar aqui. E, meu Deus, ele citou Sarah Baartman!

Para encerrar, meu caro amigo Altamir, eu conheço já a sua opinião sobre o que escrevo, da última vez, usou a palavra “prolixo”, sim, mas espero eu não esteja sendo o que me chamou da última vez, foi pedante, ou postiço? Tudo bem, eu mesmo, modestamente, acho que todas essas carapuças adjetivadas, vindo de um amigo antigo, servem perfeitamente em mim e ficam até bonitas, sobretudo se ditas com sinceridade e num bar. Um abraço.

E como me alertou sobre o livro, te alerto, não se esqueça, ele será lançado sexta-feira, dia 6 de maio, no vestíbulo da Biblioteca do Unipam.

Patos de Minas, 4 de maio de 2022.

José Eduardo de Oliveira.


José Eduardo de Oliveira é licenciado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto

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