Anônimos: entre a vida e a bebida, histórias interrompidas pelo álcool - Parte 8

Por Gustavo Rubim*


IMPERFEITOS

– Escreva três defeitos…

DESSA VEZ PARTICIPEI DA AÇÃO – era a mesma folha verde, que Lorena partira com uma régua no canto da mesa – diretamente. Peguei um dos pedaços, junto um lápis de escrever e alguns feijões pretos.

– Isso não é feijão. – afirma seu Israel. Discutimos o possível nome por alguns minutos e não chegamos a nada.

Ninguém sabia o que era aquilo, pegamos dez, cada, para colocar um por um em cima dos defeitos escritos. Ainda não havia escrito nenhum, por que será que é tão difícil escolher três defeitos entre tantos que tenho?

A única que tinha terminado era Flávia.

De longe li, em letras espaçadas, não todos, mas dois dos defeitos.

NÃO TENHO PACIÊNCIA
BEBO D+ (DEMAIS)

Perguntei-me primeiro porque havia escrito daquela forma, por que a sigla + e não a palavra escrita? Aí voltei a pensar nos meus defeitos, anotei: inseguro, ansioso, ruim.

Foram os escolhidos. A insegurança está presente em tudo que faço, por vezes me ajuda, geralmente estou sempre bem preparado para uma situação devido a ela. Ansiedade, me deixa doente, sou um homem doente, acho que a solidão me deixa assim, também as dívidas. Ruim, ruim, penso que é sempre bom pensarmos assim, primeiro que realmente somos ruins e egoístas, é da natureza humana, segundo porque nos força a melhorar.

Mas ainda pensava em Flávia.

Flávia, trabalha com móveis: marcenaria. Tem três filhos. Um dos filhos cursa medicina, outro é filho de um paciente do Caps, Eduardo, o qual não cheguei a conhecer. É bissexual, seu modo de vestir evidencia isso, as camisas escuras, quase sempre pretas e o jeito masculino de se sentar na cadeira. Usa fones o tempo todo e fica apenas no período da manhã. A tia paga uma pensão para realizar o tratamento. Chega quase sempre suja de migalhas de madeira e com a botina de couro.

Quando havíamos terminado, Lorena perguntou, hoje não a menina, mas a mulher, parecia segura de si, olhava com firmeza e gesticulava as mãos de maneira suave no ar, enquanto ouvíamos as marteladas de seu Manuel, que consertava a porta do banheiro.

– Gente, que barulho é esse?

– É seu Manuel. Disse que está arrumando a porta, mas vai é derrubar o Caps, – diz Flávia com sua voz grave.

Eles gostam de se sentir úteis, realizar atividades, seja qual for. Assim estão vivos, servindo a sociedade, longe daquele complexo de inutilidade.

Mas a pergunta não era essa, veio logo em seguida.

– Foi difícil escrever os três defeitos?

A maioria concordou que sim, realmente foi difícil escrevê- los. Mas um precisava dizer o porquê, o escolhido foi João Batista, que disse o seguinte.

– Apontar os defeitos dos outros é tarefa fácil, conseguimos identificar milhões e outros mais, porque estamos preocupados com quem está ao nosso lado e esquecemos de olhar para nós mesmos. Aí a dificuldade de apontar os nossos defeitos, os nossos erros.

Um minuto de silêncio na sala, todos paramos e ouvimos, digerimos aquela resposta do porta-voz, nosso porta-voz João Batista. Se pudesse pegava-a, colocava no bolso ou pendurava na parede do quarto com uma moldura clássica. Depois dos instantes, Lorena, pouco disse e assim olhávamos para nossos defeitos no papel verde.

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SAI DA SALA E ENCONTREI SEU MANUEL COM O MARTELO NA MÃO, agora descansava nas cadeiras da recepção. Sentei sobre o calcanhar esquerdo e apoiei um dos braços na coxa direita, sem trocar palavras, apenas olhávamos o ritmo lento das pessoas que entravam.

Até que parou diante de mim, a mulher que vi sair de um dos quartos, naquela rápida passagem pelo corredor.

– Quero contar minha história. – disse-me com uma voz de sono, cara de sono e olhar de sono.

– É a Bruna! – rompeu o silêncio seu Manoel.

Bruna Achinita Martins, soletrou o nome do meio para que não cometesse o pecado de escrevê-lo errado neste livro, “A.C.H.I.N.I...”, não, não possui descendência japonesa, mas não foi apenas isso que me levou a hipótese, também as bochechas grandes, o olho miúdo, narizinho pequeno e afilado, por fim o cabelo raspado, não totalmente, dava para notar que era um cabelo liso.

Achinita, a mãe, Laurinda, tirou de um livro espírita. “Tudo de ruim, conheci depois que meu pai morreu”. Ainda estava no ensino médio, não concluiu os estudos. O pai a rejeitou, por toda vida. Nunca ligou em um aniversário, não se falavam. Ele tinha uma outra família, uma outra esposa e um outro filho, que adotou como seu. A mágoa de Bruna foi nunca ter conseguido o amor do pai. Dali conheceu as drogas e a prostituição. Entrava em caminhões e percorria as cidades vizinhas, para se prostituir a troco de 30, 40 reais. Foram onze anos nessa vida. Engravidou de Katheline, sua única filha, aos 22 anos. Hoje a garota tem 16 anos e mora com a madrinha, prima de Bruna.


Apesar da gestação complicada, nasceu saudável. Não parece com a mãe, sim com a tia. Não conhece o pai, morreu há algum tempo de câncer, parece que foi isso, adoeceu e morreu. A maioria dos relacionamentos foi com mulheres, detalhe, é bissexual, mas se classifica como homossexual.

– Quando me relaciono com mulher é diferente, mulher é mais carinho, mais conversa, mais atenção. Mulher entende a outra. Poh! Hoje quero conversar. Então é mais fácil lidar com o sexo feminino. Homem não, homem é só sexo, não pode ver um buraco que já quer logo enfiar, mesmo sem a gente querer.

Há nove anos se separou de Josiane, a mulher com quem viveu por três anos, depois disso não se relacionou mais, nem com homens nem como mulheres. “Não tenho mais prazer em nada, não gosto de fazer nada”. O olhar para Bruna é ver exatamente isso, seu Manuel vê exatamente o mesmo, por isso sempre dá atenção a ela, tenta puxar uma conversa, mas a única hora que está com os outros é na fumaça dos cigarros lá fora.

Em uma folha de caderno escolar, passa a língua com saliva na borda para prender o fumo ao meio. Faz isso pacientemente, mas sem perfeição. Pede ajuda a Walter.

[CONTINUA]

Instagram: @gustavo_rubim
eugustavorubim@gmail.com

FICHA CATALOGRÁFICA

RUBIM, Gustavo Pereira. Anônimos; entre a vida e a bebida, histórias interrompidas pelo álcool/ Gustavo Rubim – Patos de Minas: EDITORA, 2019, 116 p.

Capa: Gustavo Oliveira
Diagramação: Gustavo Oliveira
Fotografia: Gustavo Rubim
Revisão: Profª Ms. Regina Macedo Boaventura/ Profª Sintia A. Pereira da Silva
Orientadora: Profª Ms. Regina Macedo Boaventura

1. Livro. 2. Livro-reportagem. 3. Alcoolismo. Jornalismo Especializado I - Centro Universitário de Patos de Minas. Fundação Educacional de Patos de Minas, Patos de Minas, 2019.


* Gustavo Rubim, 22 anos, brasileiro, jornalista pelo Centro Universitário de Patos de Minas, Unipam - Brasil. Mestrando em Integração Latino-americana pela Universidade Nacional de La Plata, UNLP - Argentina. Vive em La Plata - Argentina.

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