Deserto dentro de mim

Por Neto Moreira

Imagem: Spice Up The Road

DE SÚBITO: Um homeM triste se vê lançado em um deserto, à noite, estranhamento e silêncio. Não há questionamentos sobre os Porquês infindáveis, apenas aceitação inofensiva. Não se cai em um deserto do nada: ou seria a morte ou seria propósito, ou seria um norte ou seria precipício. De qualquer forma, um Fim ou Início e ambos encontram os homens nas horas determinadas e determinantes da estrada. Areia aos pés, vento e um objeto que brilha ao longe, mais que as estrelas do firmamento. Encontro ou Encantamento?

Os olhos correram os lados do corpo trêmulo buscando identificar o inexplicável e, espanto, um amigo à sua direita, ao lado, na mesma posição de indagação. Ninguém ruminou perguntas porque as linhas nas testas franzidas eram confissão do desentendimento mútuo do onde e do porquê.

Era o deserto e era a noite e era alguém ao seu lado, possivelmente porque também carecia da jornada. O homem observa melhor o companheiro no mar de areia e vento. Ele está desalinhado, roupas esfarrapadas, um velho habita seu jovem rosto. Ele também olha o observador com a mesma feição analítica, dos pés descalços aos cabelos. Não trocam impressões, apenas se reconhecem estando ali, milagre ou perdição. Aquele amigo, aquele velho amigo e a retina a mostrá-lo tão decadente, era o único presente naquele atemporal sítio: noite e areia e vento e um objeto a reluzir ao longe.

O labirinto do deserto não oferece muitos trajetos ou oferece todos. Mas a marca brilhante ao longe, talvez seja o único caminho possível, oferecido pelo inesperado e inóspito convite do inexplicável. Põem-se a marchar, vagarosamente, em direção à luz, não porque querem assim o fazer, mas porque lhes pesa a vida e seus cortes. Passo lento que conduz, invariavelmente ao pensamento, um duro refletir sobre caminhada de suas próprias existências, as encruzilhadas, os risos e as feridas.

É como se cada passo medisse o passado e as escolhas por um futuro. Eles sangram no caminhar e as lágrimas pesam um rio em seus rostos. Embora estejam lado a lado, estão sozinhos. O trajeto leva o curso da meditação de todas suas vidas. É longo, profundo e a areia lhes exige esforço. Eles sangram no caminhar e as lágrimas pesam um rio em seus rostos... Jesus não foi tentado no deserto?

Só quando chegam àquela estrela que brilhava a longe, conseguem a divisar com precisão: era um espelho e o espanto nele refletido. O homem olha a si mesmo como nunca havia feito antes e se vê longe das desculpas íntimas que vestia: estava tão decadente quanto via o amigo. Entendimento: longe do deserto de si, jamais se reconheceria assim. Passado e presente refletidos.

E num clarão-rompante o espelho passa a lhes mostrar, a ambos, uma feição feliz de si mesmos, um futuro possível meditado na caminhada dos erros que sagravam e das lágrimas que pesavam um rio. As imagens de si mesmos então lhes estendem os braços, um movimento que não faziam!

O homem então quer e como quer abraçar a si mesmo e quando, de braços igualmente estendidos dá o passo para isso, DE SÚBITO acorda em sua cama como a despertar de um sonho. De olhos para o teto, pondera a misteriosa mensagem que lhe chega do reino mágico dos lugares impossíveis. Pensa metaforicamente sobre ela, mas, ao se sentar no leito, percebe, sobre ele, areia, sangue e as marcas de um rio...

Este conto (ou não) é dedicado à GHMS


Neto Moreira é um poeta fajutinho, contista e compositor de rocks rurais.

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