“Quem em meio ao funeral dirá de mim: - Nunca fez mal...?”
Passei um filme aos meus alunos esses dias. Em uma cena, enquanto um monge budista conversa com seu aprendiz, ao transbordar um recipiente com o chá que prepararam, o sábio homem diz: “Como esta tigela, você está cheio de especulações. Para vez a luz do saber, você deve primeiro esvaziar a tigela”.
Me encontro cheio de especulações. Transbordando-as. Na última semana pude verificar com mais detalhes o que é a barbárie. Como ela assola e corrói sem o peso do arrependimento. Num dia, você a vê através das mídias julgando ser “coisa do mundo”. No outro, você a vê como um morcego de asas quebradas dentro de sua casa e descobre, veja só, que sua casa é parte do mundo também. Barbárie, doenças, enxames, pecados, transtornos... são, todos esses, coisas do mundo – e entes vivos (ou escondidos) dentro do seu lar.
O horror, para além do óbvio, é gerador de dúvida. O que se faz quando se sabe que um familiar se foi por ter sido vítima de tortura? Ou quando a mágoa é mais forte em seu espírito do que a fé? Houve fé, no entanto.
Padrões de comportamento: sofrer, relativizar, tentar esquecer, lembrar, lembrar, lembrar, enfurecer, lamentar, se perguntar o porquê tanto quanto recordar. Duvidar, crer e eternamente se incomodar – humano, demasiadamente humano.
Marcas de sangue por todos os lados. Ferramentas, cadeiras entortadas, martelos, substâncias, bastões, comida sobre o fogão, remédios e respingos pelo chão. Palma da mão vermelha na superfície da parede. Dor infinda. Gemidos e histórias cessadas (e não algumas, mas várias). Na maca, um corpo quase nu. Quase nu porque não há nada mais nu que um esqueleto, dizia Saramago diante da representação tradicional da morte.
E claro, as duas lágrimas que tentaram por tanto tempo não escorrer da forma que foram obrigadas a fazê-lo. Pesam tanto e aguentariam fardos ainda maiores para não descer ladeira abaixo como se deu. E foi como um punhal no seio das duas últimas mães que havia. São essas as representações fiéis de minha mãe e tia.
Mantive um comportamento que me é de praxe ter: memorizar sorrisos. Eles aparecem largos na minha memória quando dou adeus a alguém. Adeus.
Em meu outro texto nesse formato, na edição #1, falei sobre a aceitação da morte. Será que posso aprender com o que eu mesmo escrevi? Quem a vida terá me tirado quando a edição #3 deste caderno for escrita? Só escreverei quando o lamento bater à minha porta? A tigela segue transbordando. Sigo eu, imaturamente, especulando. Sigo eu, imaturamente, lamentando. Sigo eu despetalando as pétalas no túmulo de um quase poeta.
Em memória de Luciano Gonçalves Machado. Meu complicado tio.
Mikael de Melo é professor, poeta e ator nos grupos Tupam e Vitruviano Teatro. Graduado em Jornalismo, é ex-repórter da Rádio Jovem Pan.
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2 Comentários
É isso
ResponderExcluirOua, porrada esse texto. A escrita dói, mas é forma de cicatrizar feridas. Escrever é um luto em progresso.
ResponderExcluirObrigado por comentar!