Dois de Espadas

Por Samuel Mota


“Então, se alguém vos disser: O Cristo está aqui, ou está ali, não acrediteis absolutamente; — porquanto falsos Cristos e falsos profetas se levantarão e farão grandes prodígios e coisas de espantar, ao ponto de seduzirem, se fosse possível, os próprios escolhidos.”
(S. Mateus, 24:11)

        Helena contava a seu neto. Era o aniversário de 35 anos dele:
        Era dia de festa. Era minha amiga Isabel que debutava.
        Eu estava lá. Doce e calma.
        Todos estavam lá. Nem tão doces e calmos.
Talvez estivessem, mas eu não sei, pois é impossível saber as sensações mais intrínsecas dos seres. Há uma necessidade íntima de penetrar as entranhas dos homens. Esta não é uma necessidade minha. Gosto mesmo é das minhas particularidades. São poucas as pessoas interessantes no mundo. Acho que isso seja originado talvez por preguiça ou falta de coragem. Alguns me chamam de palavrosa, porque eu falo demais. Antes ser palavrosa do que pavorosa. Alguns me chamam de heterodoxa. Eu não me sinto ofendida, porque não sei o que este vocábulo expressa. As luzes eram muitas e eu era muita também. Sempre fui. A festa estava muito boa. E eu tenho certeza que minha presença tornou-a mais agradável.
        A aniversariante, que estava sentada ao meu lado esquerdo, tocou meu ombro e disse, com ênfase e curiosidade:
        — Helena, você trouxe suas cartas?
        Desde que li Machado de Assis, ganhei uma vontade grande de me inteirar do mundo holístico. Comecei com astrologia, depois quiromancia e cartomancia. Meu maior desejo era ser conhecida por alguma coisa. Ser aclamada. Eu me tornei conhecida por ser muito assertiva lendo o tarot. Eram diversas as pessoas que chegavam em mim para aclarar o futuro ou descobrir uma traição do namorado. Eu gostava, mas, às vezes, era muito cansativo. Nunca aprendi a interpretar as runas, elas exigem muito do oraculista. Eu não suporto exigências, muito menos se advindas de símbolos estranhos. Estranhíssimos. Muitas vezes, fico envolta em meus pensamentos e preciso de um choque meio inesperado para voltar à vida. Os choques têm de ser bem aplicados. Tendem a ser doloridos. Não gosto deles, me incomodam.
        — Trouxe sim — disse com firmeza.
        A Isabel era muito feliz. De onde tirava tanta simpatia eu não sei. Éramos como Hilda Hilst e Lygia Fagundes Telles. A única diferença é que ela não era inteligente e dedicada como a Lygia. Esse era um defeito seu. Não era interessante.
        Eu coloquei a mão no bolso da jaqueta e tirei o tarot. Eu sempre fui muito colorida. Neste dia, se me lembro bem, eu estava com um vestido longo e largo com estampa de flores e uma jaqueta preta por cima. Meu cabelo estava em black power, mas eu era loira. Meu baralho era herança de uma tia acriana. Seu nome era Ângela e ela tinha esses interesses meio heréticos e flácidos. Acho que sabia – mesmo que intuitivamente – que eu, algum dia, gostaria também. Eu a via muito pouco, mas sabia que ela tinha um vaso de violetas eternas. Murcharam há seis anos, quando ela se ausentou da vida. Não sinto saudades, pois não a conhecia direito, mas, no fundo, queria ter convivido com ela de forma mais latente. A distância de João Pessoa a Rio Branco é imensa, mas a proximidade dos ideais é sempre maior. Eu guardava o tarot dela em um saquinho de tecido colorido. Tinha sido ela a costureira daquela roupagem carnavalesca e múltipla. Tirei as cartas do invólucro e as embaralhei. Tirei três cartas. Fui interpretando ao meu modo. Mil mensagens intensas foram chegando em minha mente, mas eu não as disse. Meu medo era o da fraude. Foi então que senti um empurrão nas costas. Não tive tempo para pensar em quem poderia ser. Era a avó da consulente.
        Minha mão formigava e queimava como se tivesse sido colocada diante à brasa. Meu corpo dormente se transfigurou – a avó de Isabel já era falecida –, a coluna encurvou como um bambu. A voz turva como a de um idoso, claro. Ímpeto e calor. Dor e devoção. Pedi um lápis à Isabel. Apossei-me dele. A velha apossou-se de sua ferramenta:

Minha querida neta, o amor que sinto daqui é muito intenso. Sinto saudades de nossas danças da madrugada, suas idas à minha casa me enchiam de alegria. Sinto falta disso, mas os laços de afeto não se rompem com a morte do corpo físico. Estou acompanhando todos os teus passos, como uma coruja cuida de seus filhos, tenho muito orgulho de você. Peça à sua mãe para abandonar os vícios. Você, minha neta, precisa de mais amor. Arranje um namorado com urgência e agradeça sempre a Deus como se deve. Do lado de cá, há muitas flores brancas e um sol com nitidez fenomenal. É tudo lindo. Lembre-se daquela frase que te disse há um tempo, filhinha: nem tudo são flores e os espinhos não só machucam, mas também nos ensinam.
Aleteia
        
        A carta seguiu por mais seis extensas e profundas folhas. Folhas não, guardanapos que estavam na mesa. Detalhados e frágeis guardanapos. No meio daquele evento incomum e anômalo, juntaram-se todos os convidados. Alguns assistiam com interesse fenomenal, outros com curiosidade frívola, outros com medo e repulsa religiosa. Com isso, meu baralho, herdado e longo, caiu no chão e o perdi. O pilar de minha fama se perdeu. Foi pisoteado. Fui pisoteada. Mas isso não importava. O que importava era a felicidade nítida no corpo e olhar da aniversariante. Era um olhar de gratidão e surpresa. Amor e sensação. Eu sabia que ela sentia falta de sua avó, e Isabel sabia agora que sua avó estava ao seu lado. Sua avó estava com ela. O amor era inevitável. O amor é inevitável. Ela estava leve e feliz.
        Estávamos, eu e ela, doces e calmas.
        Sua avó ao nosso lado.

* * *

        Isabel contava a seus netos:
        Não sei como são as festas de aniversário das outras pessoas, mas as minhas sempre foram ótimas. Sempre dou risadas espontâneas, abraços verdadeiros, tenho conversas prazerosas. Os presentes que ganho são sempre excelentes. Uma vez ganhei um vestido excelente, outra vez ganhei uma caneta excelente. A verdade é que são sempre excelentes. Minha casa estava muito enfeitada. Balões roxos e flores roxas.
        Meus familiares chegaram e foram se colocando nas mesas alugadas. Adequaram-se ao ambiente. Moldavam-se. Eu estava muito ansiosa, comemorar a vida é algo que me rejuvenesce. Como pode ficar mais velha e rejuvenescer? A gente rejuvenesce no espírito. Cumprimentei todos que chegavam: meus primos, minhas tias, meu cunhado. Meu irmão conquistou um ótimo rapaz. O Gabriel é artista e, às vezes, nós pintamos juntos. Minhas telas são sempre muito abstratas, as dele são sempre muito sutis e atenciosas. Ele é como um outro irmão. Minhas amigas começaram a chegar. A Helena muito brilhante, como sempre. Ela me disse, um dia, que tinha Mercúrio em Aquário e que isso fazia com que as pessoas a notassem com mais facilidade. Era muito distinta. Eu não acreditava muito nessas coisas, mas sempre a incentivava. Acho que o papel de uma verdadeira amiga é incentivar. O incentivo move. O amor move. Assim que todos chegaram, sentei-me. Procurei ficar ao lado do Luís. Eu secretamente gostava dele. Conversamos muito. Sobre jogos, sobre a vida, sobre os filmes do Tarantino. Ele me contou que viajou para a Bahia e que era um ótimo lugar para começar a namorar, porque a Bahia é muito intensa. Até então, nunca tínhamos nos beijado. Senti um toque elétrico no ombro. No mesmo instante, minha conversa intencionada se rompeu. Era Helena.
        Helena sempre gostou de atenção. Disse para mim que trouxe seu baralho de tarot e que queria ler as cartas para mim. Este seria seu presente. Eu não acreditava, mas a incentivava. Ela tirou um saquinho policromático do bolso da jaqueta preta. Sua mãe era costureira e vendia bolsas, carteiras e capangas artesanais. As sobras de tecido viravam saquinhos. Eram lindos, sempre quis um, mas nunca ganhei. Helena colocou três cartas e foi lendo as imagens codificadas, me dizendo palavras complicadas. Ela tinha isso: usava palavras requintadas para dar um ar de esperta. Gostava muito de filosofia e colocava Platão em todas as suas falas. Eu não entendia, mas incentivava. De repente, começou a tremer. Todos ficaram alerta. Meu pai, que era médico, se colocou em estado de atenção total. Poderia ser um ataque convulsivo. Helena curvou as costas e pigarreou duas ou três vezes. Todos muito assustados. Com a voz fraca, pediu um lápis e organizou uns guardanapos que estavam sobre a mesa. Foi escrevendo:

Minha querida neta, o amor que sinto daqui é muito intenso. Sinto saudades de nossas danças da madrugada, suas idas à minha casa me enchiam de alegria. Sinto falta disso, mas os laços de afeto não se rompem com a morte do corpo físico. Estou acompanhando todos os teus passos, como uma coruja cuida de seus filhos, tenho muito orgulho de você. Peça à sua mãe para abandonar os vícios. Você, minha neta, precisa de mais amor. Arranje um namorado com urgência e agradeça sempre a Deus como se deve. Do lado de cá, há muitas flores brancas e um sol com nitidez fenomenal. É tudo lindo. Lembre-se daquela frase que te disse há um tempo, filhinha: nem tudo são flores e os espinhos não só machucam, mas também nos ensinam.
Apáte
        
        Eu fiquei em choque. Não sabia como reagir. Olhava inerte para os seis guardanapos. Muda.
        — É de sua avó, amiga.
        — De mi-minha avó?
        — Sim.
        Percebi o que havia ocorrido. Eu fiquei impressionada e estarrecida:
        — Helena, como assim?
        — Sim. Eu sou médium e recebi esta psicografia. É uma carta de sua falecida avó Apáte.
        — Helena.
        — Diga. Se quiser que eu explique como funciona, eu explico.
        Um silêncio se estabeleceu por um momento. O silêncio era destrutivo. As pessoas esperavam uma reação ou, pelo menos, o esboço de uma.
        — Como você tem coragem de inventar uma porcaria dessas? Você não tem vergonha? Você é péssima em tudo, inclusive na mentira. Péssima. Eu quero saber qual a necessidade dessa fama toda. Inventar uma mediunidade para chamar atenção é querer chamar Deus de idiota. Você acha que Deus é idiota? Diz para mim, você acha que eu sou idiota? Você é como Lúcifer, Helena: bonita, instigante, cheia de luz, maldita e invejosa. Minha avó não está morta e não se chama Apáte. Minha avó se chama Vera. VE-RA. E não veio hoje porque está viajando para o interior. Eu não quero você em minha vida. Pode sair da minha casa. Eu vou ligar para a sua mãe vir te buscar, enquanto isso, você pode esperar na calçada.
        No meio daquele evento incomum e anômalo, juntaram-se todos os convidados. Alguns assistiam com interesse irritante, outros com curiosidade imoral, outros com medo e repulsa intensa.
        Pela primeira vez, meu aniversário não foi ótimo. E a carta que recebi não foi um presente excelente.
        O amor se rompeu.
        A festa acabou.


Samuel Mota é estudante e escritor, amante do teatro e da música. Fortemente influenciado pelos escritos de Clarice e Hilst, escreve crônicas, poemas e contos como forma de se libertar, se conhecer e ampliar as possibilidades do próprio eu.

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1 Comentários

  1. Incrível a construção dos personagens e como eles se diferenciam. Muito interessante a expectativa criada na história, realmente muito bem escrito.

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