O Ladrão Erudito

Por Neto Moreira

Imagem: Freepik

Ouça-me, ouça-me como se deve: se queres guardar bem, algo precioso, guarda entre teus livros! Nenhuma outra conclusão me chega mais elementar que essa. Pensemos: os gatunos de outrora e de hoje, soturnamente adentram teu recinto, rompem tua segurança silenciosamente para usurpar suas conquistas materiais. Malditos sejam! Que desconhecem ou não fazem conta do tempo-sangue-suor dedicadas a elas adquirir.

Por isso, aquele colar de pérolas que pertenceu à tua avó, o relógio de quatro dígitos, o talão de cheques (ainda existem?), aquele cado de bufunfa que mantém à salvo dos bancos sobre os tetos da tua casa, onde guardarias? Entre os livros! JAMAIS, até a confecção deste conto, que se saiba, os larápios tenham levado livros das residências defloradas. Até a confecção deste conto....

Fato que se deu, contado pelo primo terceiro de um vizinho, e que, cá entre nós, preocupou-me em demasia, que havia, até pouco tempo, um gatuno surrupiador de livros. Meu Deus! Como seria possível? Suor, apreensão, tensão... se queres alguma coisa que não te pertence, leve meu carro, a televisão, o cofre por detrás da réplica de Monet, até os vinhos de minha adega, MAS, meus LIVROS

Cerquei-me de todos os cuidados possíveis. Arame farpado na biblioteca, cão esfomeado e câmeras de vigilância. Minha esposa até aceitou bem até que também fui dormir lá, no escuro, claro, “elemento surpresa”. Pelas madrugadas, acordadas, tentava imaginar quem seria tão vil meliante: Meu Professor de Filosofia? O Padre Augusto? O Editor do Jornal Local? Dona Marieta, a Bibliotecária? Não, ela não, com 72 viradas de sol lhe faltaria alguma destreza.

Adormeci, cansado por tanto digladiar contra o sono... acordei de sobressalto com barulhos de soluços. Levantei-me pé por pé e, sentado ao chão, escorado na mesa, a pessoa de capuz chorava emocionada. Em um breve instante de empatia, admirei a coragem daquele que, como eu, tem como tesouros as folhas impressas que guardam todo o infinito de possibilidades.

Quis sentar ao seu lado, perguntar seus Poetas prediletos, talvez recitar algum verso juntos, debater sobre Camus ou Kafka, fazer um café enquanto biografava Pessoa, saber o que tinha escolhido entre meus livros, porque, no fim, era um “igual” e isso é algo bastante precioso, não se encontra todos os dias.

Aproximei-me ainda tomado de forte irmanação, mas, (ah, advérbio que altera rotas), quando visualizei o MEU livro em suas mãos, recobrei a razão: dei-lhe um soco tysiano e coloquei-o para dormir. Era minha edição autografada de Grande Sertão Veredas, de 1956...

Foi preso. Trocamos cartas semanalmente por dois anos. Leu todos os livros da biblioteca da penitenciária. Enviava alguns lançamentos para o Ladrão Erudito. Vai ser semana que vem. Acabo o conto agora, porque vou ali comprar um cadeado...


Neto Moreira é um poeta fajutinho, contista e compositor de rocks rurais.

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