A cagada literária

Por Gustavo Rubim

Imagem: Caio Machado
Os vossos livros deram-me sabedoria. Tudo aquilo que a infatigável mente humana criou durante séculos está comprimido no meu cérebro num pequeno novelo. Eu sei que sou mais sábio do que todos vós. E eu desprezo os vossos livros, desprezo todos os bens terrenos e a sabedoria. Tudo é mesquinho, perecível, espectral e ilusório, como a miragem. Podeis ser orgulhosos, sábios e belos, mas a morte vos apagará da face da terra, assim como às ratazanas, e a vossa descendência, a vossa história, a imortalidade dos vossos heróis serão congelados ou queimados junto com o globo terrestre.
— Anton Tchekhov, em A Aposta

Teófilo Tito nem se assustou quando leu a Folha Patense do dia seguinte, atirada por debaixo da porta do escritório pelo garoto-da-bicicleta, a notícia de mais um suicídio: acontecimento frequente por ali que pouco se pública. Óbvio que “O fato”, em linguagem periodística, não foi narrado de forma tão explicita, contudo se entende que o senhor F. F., por volta da 1 1/4 da última terça-feira, atirou-se da sacada de seu apartamento e atrapalhava o tráfego dos transeuntes que ziguezagueavam rumo à azáfama de um dia de meio de semana. Esse senhor notável; digno de nota, F. F. fora no passado um “ilustre” professor do Centro Universitário, se acordara Tito, buscando na memória aquele velho da fotográfica preto & branco: sim!, sim!, como me lembro, o podre professor que citava trechos inteiros de Franz Kafka. Curiosamente, Tito tinha entrepernas, naquele momento, um exemplar de O Processo, “Alguém devia ter caluniado Josef K., visto que uma manhã o prenderam, embora ele não tivesse feito qualquer mal” — atravessava esse trecho da obra com o pescoço pendido, se alguém abrisse a porta ou visse a cena sem contexto, naquele instante, imaginaria que o garoto admirava absorto o próprio pênis — “A cozinheira da Sua Senhoria, a senhora Grubach, que todos os dias, pelas oito horas da manhã, lhe trazia o pequeno-almoço, desta vez não apareceu. Tal coisa jamais acontecera. K.”, Tito fechou o livro sem cumprir as quatro páginas — com que se comprometia a cada cagada — , intrigado com o primeiro parágrafo daquele livro estranho de um autor mais estranho ainda, a voz cortante não lhe saíra da cabeça, ecoavam aquelas palavras do antigo professor, como se alguém as proferissem de dentro de um bueiro — quem sabe, um desses que despejam os excrementos patenses na Av. Fátima Porto.

Tito era funcionário de um escritório numa galeria na rua Olegário Maciel, um cômodo antigo, quase defronte a Casa Lotérica: sala comercial de 10 a 15 m² com mofo nas paredes; piso de taco e portas envelhecidas; as janelas não se abriam, o vento entrava por onde o vidro se quebrou; ainda havia um banheiro, como uma caixa dentro de uma caixa, apenas o vaso encardido que fedia urina e uma pequena pia com uma torneira gotejante; acima um espelho do tamanho de uma folha A4 com respingos de pasta dental. O papel higiênico era áspero; quando havia. Nesse cômodo, trabalhavam apenas Tito e o advogado-aposentado Padilha, um velho decrépito, pele pálida, rosto angular, olhos acinzentados auxiliados por óculos de armações grossas, cabelos grisalhos, taciturno e de modos cavalheirescos apesar de aparente descontentamento com a própria existência. Era um desses raros seres que não devolvem ao mundo a raiva de si mesmos, que não culpam pelo fracasso individual o coletivo, ainda que odeiem seu semelhante e envergonham-se da espécie. Raramente se recebe gente no escritório que ocupava-se apenas de questões burocráticas, quem chegasse até o fim do corredor escuro da Galeria, certamente por algum equívoco, já que ninguém chegava até ali sem estar perdido, poderia confundir aquele cubículo com um almoxarifado. Padilha não dava atenção a Tito, considerava-o um jovem estúpido, de pouca leitura, até por odiar estudantes [jovens]. A despeito de serem obrigados a trabalharem em mesas quase parelhas no cômodo minúsculo, nunca interrompiam o silêncio alheio ou se quer trocavam olhares. Padilha lia continuamente, cabisbaixo, passando as páginas mecanicamente com a mão tremula e enrugada. As funções que ocupava no escritório eram mínimas para não dizer desnecessárias. Em sua mesa, empilhavam-se volumes e mais volumes de livros grossos, quando já não podia-se mais vê-lo por entremeio a montanha livresca, baixava-os ao chão e formava-se um monte da altura da mesa, criando assim uma fortaleza na parte lateral que o impedia de abandonar a cadeira ao fim da tarde; pontualmente às 17 1/4.

Quando Tito iniciou, ordinariamente, as “cagadas literárias”, adaptou naquela latrina fedorenta, ao lado da privada, um pequeno banquinho que lhe servia de apoio para os livros. Sempre deixava ali uma obra que emprestara, no princípio, do velho e desconfiado Padilha, que começava a ter simpatia pelo rapaz por seus hábitos literários. Sabiamente, Padilha fez empréstimos de livros pequenos, de até cem páginas, porém, de grande poder almático, desses que o sujeito entra desavisado em uma ruela e vê-se numa caminho distante e pedregoso do qual nunca se sai o mesmo na outra margem.

— Há que se iniciar pelos clássicos, não tens tempo a perder, meu jovem! — dizia o velho Padilha, consumido por um sentimento abrasante que há tempos não brotava em seu coração envelhecido — suponho que 23, 24, não mais que isso, a idade de Ivan, um dos irmãos Karamázov.

Não conseguia esconder a euforia, o advogado-aposentado assemelhava-se ao pastor que converte ao cristianismo a ovelha perdida.

"Porque este meu filho estava morto, e reviveu, tinha-se perdido, e foi achado. E começaram a alegrar-se”.

— Lucas 15:24

Ressoava na cabeça do velho a parábola favorita, ao imaginar a conversão de uma mente estupida, não completamente, pois não há conversão para mentes completamente estupidas. Fabricava em pensamentos profundos, como o médico que analisa o enfermo para dar-lhe medicação eficaz a enfermidade.

— Humm! — fazia franzindo o cenho — de fato perdeu a juventude, quando ainda há tempo de ler bobagens, com a idade que tens terá que ir direto aos clássicos — agora recostava-se na cadeira com a mão segurando o queixo — clássicos de nossa literatura é claro, antes de tudo o que é nosso!. Enfim, deu ao garoto dois volumes “obrigatório”, Quincas Borba, de Machado de Assis e Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto.

Amedrontado, para não desapontar o velho Padilha, que jogava todas as fichas nele, passou a ler periodicamente no banheiro do escritório, que já não lhe parecia tão desagradável. O mantinha sempre limpo agora, comprou dois cactos e uma suculenta que ornavam a pia pequenina, no espelho já podia-se ver a fase e até um perfume de lavanda foi introduzido no ambiente sanitário. Mês a mês, o rapaz fazia a devolução dos exemplares com pequenos comentários, sem o questionamento de Padilha que, silenciosamente, lhe entregava novos volumes. Tito lia cada vez mais rápido e com maior devoção, já não cumpria, ou cumpria parcialmente, as obrigações do escritório, para meter-se logo na comua, que parecia mais confortável que a poltrona de secretário.

De forma imperceptível, pelo menos para o rapaz, Padilha metia, aos poucos, leituras mais densas, os russos… A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstói; Memórias do subsolo, de Fiódor Dostoiévski; contos e peças de Nikolai Gogol e Anton Tchekhov. — Os russos são o princípio, meio e fim, nada há além deles! — notificava Padilha, cada vez mais moído e frágil no assento costumeiro. Já ia ao escritório apenas as segundas, quartas e sextas, faltavam-lhe forças, mas não estado de espírito para as afazeres.

— Tito! — enfim tratava o rapaz pelo nome de batismo — estou morrendo, bem!, todos estamos, entretanto pareço, e não só pareço, mais perto do abismo da morte. Como há de ver, não acumulei nada nessa desgraça de vida, senão não frequentaria até hoje esse escritório imundo, que me deu, é certo, mais um fôlego de vida. Quando se é jovem, vive-se com pressa e perturbadoramente, quer-se tudo instantaneamente, já na velhice o tempo é um inimigo. A morte vem lhe buscar e a gente dá birra para ficar mais um pouquinho. Meu tempo acabou!, quero lhe deixar meu único bem, uma pequena biblioteca que possuo em meu apartamento. Meus filhos não carregam hábito, nem se interessam por eles. Não sei em que errei, sempre fiz de tudo para criar leitores, para que se sentissem atraídos pelos livros. Falhei!, falhei!. Talvez faltassem neles uma natureza solitária, puxaram a mãe, viva e falante, tocava meus livros apenas com o espanador. Ralhava, eu mesmo gostava de limpá-los. Dizia com razão, com aquela voz de fumante, que eu tinha mais ciúme do diabo dos livros do que dela. A verdade é que eles estavam por todos os lados, eu busca capturá-los, até que passaram a usá-los como guardanapos e papel higiênico. Foi o cúmulo para mim, o estopim. Sai de casa e mudei para um apartamento no centro, levando apenas minha biblioteca e alguns ternos de roupa. Reli tudo que julgava indispensável, ontem, enfim!, acabei Os Miseráveis, de Victor Hugo, agora posso morrer em paz!.

Duas semanas depois, numa segunda-feira chuvosa, o velho Padilha morreu!. Tito remoeu por algum tempo a morte do amigo, despejou toda tristeza de seu jovem coração na literatura, transformando-a em um refúgio para todas os males d’alma. Devorava volumes inteiros, saltando diretamente para os calhamaços, ou na linguagem Padilhana, os “rasgadores de alma”, como: Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; David Copperfield, de Charles Dickens; Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes; e et cetera.

“En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor”.

— Capítulo 1, Don Quijote de la Mancha

O hábito de passar longos períodos sentado no vaso sanitário do escritório, entretido em leituras cada vez mais densas, faziam aumentar a pressão no cóccix hemorroidário de Tito, e, com o tempo, acabou fazendo com que suas veias e artérias aumentassem de tamanho, tornando-o sintomático; e é aí que está o problema!, a hemorroida… Primeiro veio a sensação de calombo ou de saliência ao redor do ânus; dores e ardor ao ir ao banheiro, as fezes saiam do ânus de Tito como lavas de um vulcão; e uma terrível coceira nas nádegas, que fazia-o, por vezes, ferir o próprio cu ao coçar com as unhas largas e sujas. Ao defecar, continuava com a sensação de que ainda havia fezes para eliminar.

Já não regressava à casa, o cubículo do fim do corredor de uma das galerias da rua Olegário Maciel tornara-se sua vivenda, mais precisamente o cubículo ainda menor; o banheiro, o qual forrou com uma cortina o piso e dormia ali mesmo, como um cão. Quem visse Tito, naquele estado deplorável, já não reconheceria aquele jovem estudante de Direito do Centro Universitário que um dia fora. Bons modos, belas vestimentas e um ar de ignorância e inocência o cercavam à época. Agora possuía o espectro de um animal selvagem. Por fim, resolver ler, definitivamente, a obra elegida pelo velho Padilha como a derradeira, Os Miseráveis… Limpava-se agora com as páginas lidas, já não dispunha de recursos e chegara até a comer algumas folhas. Não se sabe o que passava no espírito desse jovem, perdoem o narrador por não atrever-se a mergulhar nesse abismo, talvez por incapacidade, de penetrar almas oblíquas e joviais.

Sabe-se apenas, que meses depois, o chefe enviou ao escritório da Olegário Maciel, um de seus rapazes, que vasculhando o cômodo atrás de documento importantíssimo e urgente, sentiu a necessidade de usar o banheiro, já com a bexiga comprimida pelo frio do ar-condicionado. Ao abrir a porta, sentiu o espanto de quem está para morrer, um frio atravessou sua alma como uma lança; Lá estava o corpo de um homem, que aparentava ter 40 anos, de aparência cadavérica, sustentado na privada pela proximidade das paredes, que não permitiram que o corpo despencasse no chão. O sujeito ainda respirava, não se sabe como!, talvez mantido pelo frio. Socorrido às pressas, ao decorrer dos dias, foi diagnosticado com quadro de câncer anal avançado. Desfalecendo na cama, seus últimos pensamentos, que balbuciava quase sem forças, era o temor de morrer sem ter lido Pedro Nava, “Ah!, ah!, também Dyonélio Machado!, sim, o pobre esquecido…”, e dia após dias citava nomes e mais nomes de autores desconhecidos aos ouvidos de médicos e enfermeiros e de boa parte da humanidade. Naquele dia, no bolso da jaqueta que cobria o corpo estirado — jaqueta similar a usada por Jean Valjean no romance Os Miseráveis — foi encontrado um recorte de jornal com o seguinte trecho de uma artigo, "Senhor F. F. é encontrado morto na calçada da rua Major Gote, os literatos são almas realmente fracas para suportar a dureza vida [autor desconhecido].

Fim

Gustavo Rubim, 22 anos, brasileiro, jornalista pelo Centro Universitário de Patos de Minas, Unipam - Brasil. Mestrando em Integração Latino-americana pela Universidade Nacional de La Plata, UNLP - Argentina.

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