Imagem: Agostine Braga |
Os diferentes falares devem ser considerados como variações, não como erros. Muitas vezes, incorre-se no preconceito linguístico ao se estigmatizarem pejorativamente certos modos distintos de expressão como português incorreto ou inculto. Não se deve julgar determinada manifestação linguística superior a outra. Isso seria uma espécie de segregação cultural e social entre as classes menos favorecidas e aquelas de maior prestígio social, com acesso ao ensino formal e à norma culta. Deixemos a diversidade linguística a cargo dos estudiosos em dialetologia e em sociolinguística. Vamos aos fatos:
O “mineirês”, sobretudo oriundo da zona rural, é bem marcante. Quando me mudei para Belo Horizonte, passei a notar nitidamente a diferença, sobretudo de entonação, dos falantes da capital em comparação aos do Alto Paranaíba, de onde eu era oriunda. A meu ver, em BH, não havia sotaque específico. Depois que fui morar em outro Estado, passei a perceber nitidamente a entonação e as nuances do falar belorizontino.
Saí de Minas Gerais há mais de trinta anos. No entanto, mesmo sem perceber, mantenho minha “marca registrada” linguística. Como se diz: “a gente sai de Minas, mas Minas não sai da gente”. Em sala de aula, na Aliança Francesa de Vitória, eu falava francês o tempo todo. Um dia, na cantina, um aluno me ouviu falando português e se surpreendeu. − Não sabia que minha professora era mineira − disse-me ele com ares de espanto. Outro dia, ao chamar uma colega de Universidade pelo nome, ela me perguntou: você é mineira? Eu quis saber o motivo da pergunta. Você me chamou de Joana; meu nome é jo-a-na. De outra feita, entrei numa padaria e pedi dez pães. O balconista me perguntou imediatamente se eu era mineira. Eu quis saber o motivo da pergunta, pois tinha dito apenas duas palavras: dez pães. Disse-me que caso eu fosse capixaba teria dito “deis” e não “dez”.
Cada região tem suas especificidades linguísticas. Dizem jocosamente por aqui que os habitantes do Espírito Santo (situado entre BA e RJ), em sua maioria, são descendentes de baianos que se cansaram durante o percurso em direção à cidade maravilhosa e resolveram parar no meio do caminho. Considera-se que no ES não há sotaque específico. Realmente, não pode ser comparado ao falar nordestino ou gaúcho, que são bem marcantes. No entanto, como forasteira, percebo muitas diferenças, sobretudo lexicais, no linguajar capixaba, com relação ao mineiro. Por exemplo, aqui não se fala entornar: é esburrar; calango é taruíra; sucupira é macanaíba; estourar é pocar, saracura é siricora; mendigo é mendingo. Aqui não existe mandioca; existe aipim; não se fala mulher, nem colher; é mulé e colé;... e daí por diante...
Algo bem nítido entre o registro coloquial mineiro e o capixaba, nas classes menos favorecidas é a questão da conjugação verbal. Por mais simples, pobres e sem instrução, as pessoas com as quais convivo nas montanhas capixabas conjugam os verbos corretamente. Ninguém troca “nós queremos” por “nois qué”. Em Minas, surpreendo-me, às vezes, com pessoas graduadas e pós-graduadas que não respeitam a conjugação verbal. Um dia perguntei a uma delas a razão do uso de dois registros linguísticos tão díspares. Ela me disse que fazia isso para que houvesse maior interação entre ela e os interlocutores. Caso ela usasse o linguajar escorreito, poderia ser considerada pedante, esnobe e, por conseguinte, poderia até mesmo ser rejeitada naquele grupo social.
Como dizia o escritor Guimarães Rosa, “pãos ou pães é questão de opiniães”. Quem lê Guimarães Rosa percebe que sua prosa é salpicada de termos inusitados como aqueles usados por nossos antepassados mineiros. Em verdade, trata-se de arcaísmos que ainda hoje são usados pelos anciões. Ao ler Guimarães Rosa, volto às raízes e reencontro, a todo instante, o léxico outrora habitual aos meus ouvidos. Destarte, a leitura de sua obra tem, para mim, sabor de infância. Carrego na memória termos e expressões usuais daquele tempo, abolidos de meu vocabulário desde a mocidade, quando passei a viver em grandes centros urbanos e a utilizar um vocabulário mais condizente com a nova realidade.
Rosa dizia que não se submetia à tirania da gramática. Segundo ele a gramática teria sido inventada pelos inimigos da poesia. No entanto suas subversões linguísticas não interferem na compreensão do texto, pelo fato de respeitarem a estrutura do idioma. Enfim, os falares regionais e os diversos registros linguísticos são enriquecedores, mas a gramática não deve sofrer grandes alterações para que se evite o risco da Torre de Babel. Todo idioma sofre variações regionais, sobretudo em um país de dimensões continentais como o nosso. A língua portuguesa nos une, de Norte a Sul, porém com diferentes nuances. Tais variações acontecem porque o sistema linguístico é flexível e também porque seu princípio fundamental é a comunicação. Como afirma o especialista em linguística, professor José Augusto Carvalho, num jogo de xadrez, as peças constituem um sistema. Se uma das peças é movida ou removida, o sistema é outro, porque se modificou a rede de relações, mas o jogo (a língua) permanece o mesmo.
Jô Drumond é escritora, tradutora juramentada e artista plástica. Já publicou 18 livros. Pertence a três academias de Letras: Afemil, AEL e Afesl. É colaboradora do Jornal de Patos, da Revista cultural Desleituras e publica no próprio blog.
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9 Comentários
Que riqueza de texto. Eu adorei, como capixaba, conhecer um pouco mais da nossa variação linguística pelo olhar sensível e atento da cronista Jô. Parabéns! JC Mattedi
ResponderExcluirCom certeza não devemos segregar nenhuma manifestação linguística. O privilégio de morar em um país tão vasto e populoso, nos traz essa riqueza maravilhosa. Obrigada por abordar algo tão peculiar de forma agradável e elucidativa. Somos o que somos, diferentes e iguais dependendo do contexto, mas nunca inferiores.
ResponderExcluirAdriana Dadalto - Vitória ES
Nao poderia esperar um texto diferente de Jo, ja que se trata de uma expert em Linguistica e em Guimaraes. Analise que esclarece e aprofunda noso olhar.
ResponderExcluirJô,
ResponderExcluirColega e amiga!
Ao ler seu texto , fiquei orgulhosa, muito mais ainda
com todas estas informações importantes sobre nossa língua, rica em regionalismos e "falares" diferentes, como você bem citou em seu rico e útil texto.São estudos de grande utilidade e de informação para todos nós, pois estamos sempre diante desses "falares".
Amei!
Parabéns!
Jo, seu texto é importantíssimo ao se referir aos dialetos de cada Região, Estado e a zona interiorana, bem como, mencionar Guimarães Rosa que distingue na sua obra esse linguajar tão fiel. Em certos Estados o capixaba é reconhecido pelo falar cantando, uma observação que fiz, pois logo perguntam afirmando: É capixaba!
ResponderExcluirExcelente texto que desmonta qualquer comentário de certas pessoas preconceituosas.
Parabéns!
Denise Moraes - Comentário acima.
ResponderExcluirJô, amei ler o seu escrito. Sou casada com um semi-analfabeto. Quase sempre ouço conjugações que ferem a língua portuguesa, mas que as compreendo como se fosse um dialeto. Acostumei a conviver com isso, mesmo tendo por anos, tentado ensinar o certo. Senti que o certo para ele é falar assim, já que durante 38 anos, quando o conheci, conviveu com sua mãe analfabeta, mas grande empreendedora. Isso me deu a ideia de escrever um dicionário informal e uma estória infantil. Estou escrevendo e devo publicar um dia.
ResponderExcluirJô, muito interessante,nunca pensei que no Esp Santo ouvessem diferenças entre nós mineiros e os capixabas,por ser estados vizinhos
ResponderExcluirVivendo e aprendendo com você,.
Escritora,cronista e especialista em ver as pequenas diferenças no palavreado mineiro e outros estados
No Paraná,ou em SP já me acostumei,pois é com quem convivo
Parabéns prima por não se esquecer de mim
Sou sua leitora
Jô, parabéns! Que texto maravilhoso, culto, gostoso de ler. Que visão a sua. Que amplitude. Lindo de morrer.
ResponderExcluirObrigado por comentar!