A Graça e o Vigor da Bruta Vez

Por Samuel Mota


La
Suturnydadi do amô i ta pompa
ad cashassa de pimenta
ardem o ezôfagho y sorbem
zakarnehumana
na cor putre e vadum dhaf —
               AUR

(Começo este conto com essas letras violentas e rudes, porque estou psicografando Ferreira Gullar e seu movimento neoconcreto. Também toca-me a mão Hilda Hilst, minha fascinante amiga que bordou o “Júbilo, Memória, Noviciado da paixão” num pano de algodão sem bastidor. O bastidor prende, e ela é solta das concordâncias vulgares. Coloca-se ponto final após encerrar a última oração dentro de parênteses? Não sei. Cansei de escrever as vozes dos mortos. Calem-se, poetas! Não há vagas para vocês.)

Ontem, pela tarde, Tereza lia um conto de Lygia Fagundes Telles e rememorava o princípio das coisas. Lembrou-se de quando nasceu. Festas e festas. A grande excitação durou por diversos e longos dias, mas passou. Tereza tinha os cabelos curtos e com fios grossos que batiam nos ombros, lábios espessos, mas não capazes de animar desejos viscerais nos corpos masculinos. Com certeza, havia alguém que, algum dia, se afetaria pelos clamores ímpares da garota. Ela lia, lia muito e sofria. Era enlevada pelos volumes do período romântico e, por tendência lógica, romantizava a vida e os amores que, por ventura, poderia encontrar e manter. Aversão grande pelo Barroco. Lia o texto breve “Da Amizade”, uma recomendação de uma prima bem quista, a Eulália. Eulália, sim, era bonita e chamativa. Tinha os cabelos escuros, olhos claros que contrastavam em alto teor com as pardas ondas negras da cabeça e a pele alva com viço natural, um presente da juventude. Namorava Túlio, um jovem universitário de Ciências Sociais. Sua preferida? Lélia González. Lygia costurou em seu conto algumas percepções e histórias sobre a amiga de longa data, Hilda Hilst. Conheceram-se em 1949, numa ocasião especial. Lygia acabara de publicar um novo livro (O cacto vermelho, acredito eu) e, por isso, recebia as homenagens devidas por sua divina contribuição ao Brasil. A amizade das damas era madura para Lygia, mas, na sinceridade inflamada e rubra de Hilda, era uma amizade velha mesmo. Velha, mas não caquética, velha madura. Tereza lendo pensou que já tivera amigos, mas nunca que durassem tanto. Acabavam logo, pois a liquidez dos tempos é nítida, e a menina preferia enclausurar-se na liberdade dos livros de capa mole. Perdeu, no ano anterior, uma de suas amigas por questões políticas. Triste fim a política aflora no mundo. Separa e não conquista pedaços de pão, de bolos, e de homens. No sentido que o pensamento seguia violentamente batendo e sendo lançado de um lado para o outro da mente feminina, parou de ler o textículo, deitou-se na cama, fechou os olhos e respirou fundo como um mergulhador a seis metros no mar, pulmões rugindo por ar e fôlego.

Vou cortar o parágrafo apenas pelo fim estético de não alongá-lo muito, aproveito para lançar os feixes que meu cérebro e minha mente, em sintonia, gorfam. Eu estava pensando se escrever ao som de Bach é um privilégio ou uma sanção. Gosto muito dos clássicos músicos, de Paganini, Satie, Vivaldi e Prokofiev. Minha afeição pelos clássicos se estende para a literatura, e é por isso que seleciono sempre os melhores escritores para que eu leia com a tranquilidade de ter em mãos algo de notória sublimidade. Se tenho que ler algo que desrespeite a literatura, leio pela crítica e pela experiência. Quando se lê essa categoria de produção, há de se redobrar os cuidados. Temos que evitar ser esponjas para não sermos contaminados pelos grandíssimos e poderosos tentáculos da cultura de massa, que enforca as verdades universais e alimenta com muita gordura os cérebros humanos. Também devemos fugir de ser espelhos, para que não tornemos tão visíveis essas cruéis tentativas de esculpir algo que não é algo, é uma aclamada banana pregada na parede ou uma cama bagunçada e maltrapilha vendida por milhões. Saudades eu tenho e nutro pela época em que se produzia com seriedade e não para passar o tempo e ganhar fama. Devemos ser um cinzel e esculturar algo que não reflita ou absorva a pobreza de caráter. Que fique claro, não exceto todas as pós-modernidades, há algumas que conservam, ainda, propósito e esperança.

Tereza abriu os olhos e os arregalou para o teto branco de seu quarto. Num instante, lembrou-se dos amores que teve. Amores que somente ela sentia, pois nenhum era recíproco e, como Fernando Pessoa, julgava que seria amada, mas não era, pelo único motivo de o Amor se interromper em épocas de imaturidade e desolação mental. O Amor enfrenta a si mesmo, apequena-se e passa pelas brechas do perigo, mas não se aventura em permanecer em terras inférteis. Em seu lugar, envia sua irmã, Paixão, que gosta do escuro e do incerto. Se há uma verdade no mundo além da existência dos átomos, é a certeza de que a Paixão se alegra em se estabelecer nos rasos poros da pele, da carne e do corpo. Delicia-se com o suor, satisfaz-se com a melodia extemporânea dos gemidos e aceita, cega e inconscientemente, as fraturas do caráter; o irmão Amor, por sua vez, é como uma radiação Gama e adentra nas camadas mais profundas do chumbo humano. Penetra os largos túneis e abissais corredores do espírito, percebe-se válido nas miudezas, brinca e dança satisfeito com a disposição da eternidade da luz e da respiração coronária da alma. Perde-se na profunda pinacoteca do ente amado, empolga-se sempre em desvendar novos mistérios e percorrer novos salões da consciência. Evita os potlatches. O irmão Amor é, com muita clareza, o irmão mais velho, que nasceu a partir da vontade de Umuri Ñeku, o avô do universo, que cruzou as peneiras de arumã antes de criar os Umuri Mahsa, a gente do universo. O irmão Amor, nos primeiros segundos de sua vida, levantou-se e seguiu seu caminho. A irmã paixão nasceu um pouco depois, parida da teimosia das cunhatã, nua e incerta, ficou caída no chão, sem forças nos membros inferiores, à espera de alguém que a levantasse e, como não recebera a dádiva da beleza, encontrou refúgio na mentira e maquiou-se perfeitamente, com o resto de barro, moldou impecáveis máscaras para si e, com as folhas maiores que estavam no chão, coseu uma plácida indumentária. Assim se apresenta a todos, adaptando as vestes ao longo dos anos, para ludibriar e se deliciar com os fluidos dos homens e das mulheres de quem tem tanto apreço pela carne. O irmão Amor é simples, veste-se como quer, pois, antes de tudo, alimenta a si mesmo sem presunção ou bengala. Por infeliz que seja o destino, Tereza nunca avistou a pureza, apenas as enganosas e cheias de graça máscaras da Paixão – gosto de adicionar estas digressões porque sou grande amigo de Almeida Garrett, tomamos chá de boldo há uma semana.

Um dia, a menina olhou um aluno de sua escola que cursava um ano acima, era o Oliveira. Não era um espécime nada bonito, tinha um cabelo curto e encrespado, cara de dragão, a face derrotada por manchas de acne, um olhar de puxa-saco e leviandade, os dentes tortos eram grandes demais e um tanto amarelados. Ninguém sabe o que Tereza achou de tão belo no rapaz, mas, na impaciência de esperar alguém que a satisfizesse, servia qualquer coisa que estivesse próxima. Foi se aproximando aos poucos e com cautela. Mandava mensagens nas redes sociais, contava fofocas, explicava seu dia e ensinava a matéria de literatura a qual já havia lido – devorava, sedenta e autônoma, o Carlos Nejar e o Antonio Candido. A amizade estava estabelecida, mas meio incerta. Devotou-se ao jovem garoto por bastante tempo e foi tratada com descaso. O reizinho inicialmente mostrava-se um bom aliado, com risadas frouxas e olhares calorosos, mas era apenas calor e pouca atitude. De um dia para o outro, dedicou-se a debochar da garota, dizendo que as bobeiras literárias nunca levariam ela a lugar algum. Tocou na ferida? Não, jogou álcool numa afta. Tereza era meio cega e não percebia o iminente perigo que corria. Ao sair da gruta, se fechou em si mesma. Parou de ler literatura e se colocou afastada do mundo, o afeto era venenoso. Entendeu que o amor nunca estaria para ela e fugiu do Oliveira. Evitava ir aos mesmos lugares que ele ia, evitava até se aproximar da sala dele.

Ficou um tempo reclusa de algumas interações mais próximas com outros garotos. Sentava-se no canto da sala de aula, abria “A terceira margem do rio”, era um portal de ondas luminosas que se fazia presente em seu conforto íntimo. Encolhia as pernas e ali poderia continuar se alimentando das barcaças de vera arquitetura do autor inimigo. Gostava do desconforto dos neologismos e das narrativas sem muita dinâmica. Passou o ano inteiro assim e quando cansava de ler, dormia. Quase ao findar do segundo semestre, começou a conversar com outro. Uma amiga loura havia apresentado os dois. Permitiu-se. O Levi era até que ajeitadinho. Era mais baixo que a menina e, como o Oliveira, tinha os cabelos curtos e grossos. A pele era morena e os olhos eram charmosos. Sabia pegar na mão, mas era dono de um sorriso muito mal esculpido pelo Diabo. Exalava dele um cheiro suave de cigarro. Se aproximaram. Conversavam e riam muito juntos, no entanto, como esta história é cheia de “mas”, duraram a cumplicidade fajuta por uns três meses e o menino irresponsável e maldito nunca mais olhou nos olhos de Tereza. Motivos? Não se sabem. Mais uma vez comprovava que o amor a detestava e que poderia ter feito muitas maldades em suas vidas pretéritas. Talvez tivesse matado os maridos com veneno de rato.

Foi-se o tempo passando, mas, em uma tarde de festividades na casa do amigo Paulo, conversava com suas amigas Rita e Jaqueline – esta última namorava o dono da casa e era extremamente feliz ao seu lado. Compartilhavam algo belo, mas não sei se tão puro – acerca da vida, de cursos de faculdade e, sobretudo, do amor. Tereza queixava-se de sua solidão e, como um tapa de luva, Rita disse que apressar as situações, os instrumentos do sentimento e querer domar o outro não trazem e nem firmam ninguém e, por isso, Tereza deveria deixar de procurar o Amor nas faces carmins de qualquer espírito que surgisse, posto que alguém naturalmente se faria presente nas horas íntimas e chás estranhos. Esses ditos foram como uma benção de curandeira de quintal para o coração infeccionado de Tereza. Azaleias brilhantes e sumarentas pairavam sobre a cabeça. Uma revelação ocorria no momento.

Os sons verbais de Rita ecoaram muitos dias pelos ossos de Tereza. Foi acalmando as flamas do peito e grunhiu internamente para que o mundo ouvisse que estava pronta para receber o Amor. Leu alguns vedas e se transformou numa bela figura de mulher. Pronta porque agora sabia ler os símbolos da vida e, mais ainda, sabia ler a si mesma. Vagarosamente, o irmão mais velho surgiu feliz ao seu lado. Andava de ônibus e, num desses dias de espera, avistou um rapaz. Seu nome era Guilherme e ele tinha os cabelos grandes e enrolados, um rosto sério, e um sorriso bonito. Era alto e poeta. Não posso detalhar mais, pois Tereza está ao meu lado e diz que não quer que eu conte tudo ainda, mas quer que eu diga que o irmão Amor tem andado de mãos dadas com ela, que a incensa com aromas calmos de tabaco e baunilha. Tereza insiste que eu diga que atingiu a Graça e o Vigor da Bruta Vez de se enamorar por um prezado anjo mensageiro. Anjo que nunca procurou, porque se procurasse jamais encontraria.

Encerro:

II
Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e anseios inundada.

H.H.


Samuel Mota é estudante e escritor, amante do teatro e da música. Fortemente influenciado pelos escritos de Clarice e Hilst, escreve crônicas, poemas e contos como forma de se libertar, se conhecer e ampliar as possibilidades do próprio eu.

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2 Comentários

  1. Perfeito! Texto leve e instigante. A evolução de Samuel é perceptível!

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  2. Parafraseando Bono Vox sobre Jeff Buckley: Samuel Mota é uma gota cristalina de letra num oceano de rabiscos enfadonhos!

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