Criança

Por Elza Maia

Imagem: @arte.frames

Às vezes, quando muito paro, me pego embriagando em bebidas diluídas de sonhos passados. Sentada, fitando o pôr do sol que se aproxima tácito em tons melancólicos de violetas e anis azuis, abraço meus joelhos em uma tentativa amena de me aquecer no frio vento junino e de me esquecer, pelo mais breve segundo, das minhas obrigações impostas que me repito que foram escolhas expostas pelas placas no caminho.

Afagando meu queixo no jeans, arquejo um suspiro que me parece não ter fim. Disseram que era adulta, enfim, e subitamente me lembrei que vivi a todo tempo esperando esse momento. Mas ele veio, como acho que vem para todos, meio atropelado e cuspido como um chiclete mascado e descartado e me vejo parada com a camisa amarrotada e o cabelo embaraçado.

Me vejo do mesmo tamanho que sempre fui, criança pequena, com medo do escuro e querendo brincar de fantasias, desbravar poesias e perdurar em um dia que pareça nunca acabar. Não consigo explicar onde que tudo decidiu mudar. Sentada sobre as pedras, abraço o ombro daquele que se perdeu comigo, meu amigo. Em silêncio, observo-o com os olhos lentos, enquanto o Vento insiste em nos reconfortar em um frio enlaço.

Até parece que, se o Vento pudesse dizer, diria que sente muito e se pudesse fazer, levaria consigo o nó amarrado que deixou pelas pontas esfareladas dos velhos sapatos. Na luz azulada, como uma despedida esmaecida, o vejo fitar inerte com os olhos meio marejados, transluzindo aquilo que não podia escapar e segurava como se fosse transbordar.

Na nossa pequena adultez, perdidos na pequenez, não há separação da meninez. Apenas a obrigação de continuar pelo caminho, meio sem tempo, meio sozinho. Meio existindo mesmo sentindo que um peso se amarrou pelos braços e se instaurou como novo morador em nossos condomínios.

Fecho meus olhos.

Consigo ver as estrelas do anoitecer.

De repente, enquanto puxo minha respiração, vem a sensação familiar de preencher o peito de ar e esvaziar em um sopro cansado. Sinto minha mão esfriar e a voz frustrada me chamar para voltar. A grama seca se quebra pelo nosso caminhar e o vento brinca de balançar o cachecol vermelho por entremeio aos seus sopros. Dá para sentir a respiração escapar por entre os dentes e se condensar em uma lufada quente no tempo frio.

Tão veloz, as luzes cortam o vidro em círculos reluzentes de vermelho e o velho amigo desespero faz sua cama em algum canto adentro sorrateiro. Sou tão velha com esse peso que levo e tão nova para me despedir da minha criança. Meu Deus, como isso é enlouquecedor. Uma pequena voz se levanta de algum lugar, como se estivesse em uma constante deriva, se encolhendo em um desamparado ensurdecedor.

Devagar, cerro meus olhos enquanto ouço o corte fino do vento entre os carros. Ao fundo, uma música que deveria consolar. Vejo o Tempo, que se aproxima de cinza e me estica a mão como em um convite para dançar. O aceito e ele me gira pelo ar, cantarola alguma melodia que se traduzia na mais pura nostalgia, me reconforta com o sabor agridoce de palavras faladas, guardadas como lembretes de que foram um dia lançadas e veladas pelo sentimento dúbio.

Em um lembrete de que o tempo passou.

Então me esqueço, naquele compasso consonante, das incertezas flutuantes e das cobranças inquietantes que me enforcavam com luvas sutis de cetim. Cedo ao ritmo lento pelo qual o Tempo me leva. Poderia até dizer que se compadecera da nossa angústia desvanecida e, quem sabe, acolhera a alma sofrida. Sussurra em meu ouvido, o ar me escapa, meus olhos arregalam em uma surpresa incontida. Era um segredo, antigo.

O Tempo sorri para mim e me repleta de uma paz serena, me ordena o despertar. Acordo com o estacionar do carro e a estranheza da sensação de saber de algo que não consigo lembrar. Olho para meu amigo e sinto seu semblante cansado, mas conformado em ter tido algum tempo para se apropriar e chamar de seu. Então o abraço, meio no susto, meio desajeitado. E pego no enlaço súbito, protesta em surpresa, mas se desamarra em poucos segundos. Seu corpo solta o peso e seus braços relaxam. Ninguém sabe ser adulto. Há tão pouco era a infância. E daqui a pouco, talvez, já esteja no fim. Sinto meu rosto desfazer as rugas e se amenizar em uma delicada tranquilidade. Ser adulto cansa. E ainda se é criança. E ninguém consegue deixar essa máscara escapar. Talvez só basta ser. O que era. O que é. Como se é.

Lágrimas saltaram

e um sorrisinho de canto emergiu.

Era fim de um dia

de um tempo

que só podia

existir

aqui.


Elza Maia é uma amante da escrita e aprecia colocar no papel os sentimentos da vida cotidiana. Futura psicóloga, pretende mesclar as duas paixões em uma.

🦆

Apoie o jornalismo independente colaborando com doações mensais de a partir de R$5 no nosso financiamento coletivo do Catarse: http://catarse.me/jornaldepatos. Considere também doar qualquer quantia pelo PIX com a chave jornaldepatoscontato@gmail.com.

Postar um comentário

0 Comentários