Espera no ponto de ônibus

Por Gustavo Rubim

Imagem: La Liseuse/Auguste Renoir

(…) Como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante dessa noite carregada de sinais e de estrelas eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo.

— Albert Camus

Já estava atrasado o rota 1, que deveria ter passado pelo ponto do antigo Fórum, às 18h10. Distrai-me da tardada espera com a leitura de “O Estrangeiro”, de Albert Camus, já esquecido da primeira aula que me aguardava no Centro Universitário, em que trataríamos a respeito do código de ética dos jornalistas brasileiros e a atuação do profissional sob a linha editorial dos veículos de comunicação. A princípio o tema me desinteressava, embora as classes do prof. Homero me animassem bastante, um pouco conservador, de fato, mas um fiel seguidor da Constituição Brasileira [sabia de cor todos aqueles artigos ou inventava-os e esbanjava o conhecimento da leis sempre que questionado por um dedo em riste no meio da sala], que buscava se adaptar a futilidade do trato do Direito dentro dos cursos de Comunicação Social, não que o abismo fosse tão desmedido em comparação com os nobres estudantes do curso de Direito.

Foi quanto buscava me fixar ao capítulo difícil e interromper o pensamento que me desconcentrava, unido a preocupação de que o ônibus passasse longe de minha vista, que me dei conta daquela garota, ao despregar a vista da página e mirar o horizonte; de pé, lia através das lentes, a mesma obra que tinha em minhas mãos. Não pude disfarçar o espanto e prolonguei aquela análise como quem escolhe a bandeja de queijo mais barata no setor de frios do mercado. Tinha nas mãos finas e delicadas, uma bela edição da editora Record, com o nome do autor, em legras grandes de forma, na vertical. O meu era um pequeno e modesto volume da Best Bolso, que ela mal poderia identificar a obra da distância que separava-nos; a capa laranja estampava um homem solitário à beira da praia.

Ainda que seguro de um belo propósito para abrir um diálogo com a moça, que me encantava à distância, pelo aspecto arredondado do rosto, onde pairavam dois olhos castanhos afastados, suavemente contornados por uma sobrancelha quase apagada, como se fossem feitas a pinceladas de Johannes Vermeer¹, mas que ornavam na tela do rosto junto a um nariz pontiagudo e uma boca pequena, de lábios proporcionalmente finos e contornados. Juro que aquela composição me absorvia por inteiro e sentia-me como o leitor que, diante de um belo trecho do livro, quiçá a descrição de Proust das Madeleines², em “Du côté de chez Swann”, distrai-se de um compromisso importante ao qual devia estar a hora marcada, sendo o atraso causa imperdoável ao qual dependia o próprio destino. Assim dependia o meu destino do rota 1, que agora desejava que tardasse o máximo possível, até ser movido pela coragem e romper entre mim e a moça, o silêncio; e, se tivesse sorte, aquele poderia ser também o transportador daquela bela moça.

Ao olhar para o horizonte, tapando com a mão o que de sol ainda pairava no horizonte, avistei o rota 1 cruzar a última esquina da Av. Getúlio Vargas antes de chegar ao ponto. Os traseiros cansados se levantaram do banco e se enfileiraram onde julgavam que o motorista repousaria o veículo próximo ao meio-fio. Por um instante, deixei o rebuliço da gente apressada e fixei novamente o olhar na direção da moça, cuja qual não movimentava nem sequer um fio do cabelo doirado [não cabe aqui descrever a cor precisa daqueles fios que estavam entre um castanho claro e o loiro mais singelo], apenas erguera a vista para identificar por cima das lentes a rota que vinha adiante. Já supunha por aquela inércia feminina que não se tratava da dela. Não sei se petrificado pela beleza que a tranquilidade que a moça me causava ou pela razão que me agarrava aquele ponto de ônibus, resolvi esperar o próximo… por um instante pensei até em me meter no mesmo ônibus que a garota, sem ter em conta o destino para qual me levaria; se o ônibus estivesse vazio, poderia sentar-me em um assento ao lado dela. Desta forma, arrancar as palavras da minha garganta seria algo mais fácil, até com o propósito de vencer a monotonia da viagem.

Em poucos segundos, vi o plano arquitetado com doçura em minha mente, açucarar, quando ao aproximar do rota 3, abarrotado de gente, observei a garota meter o livro num bolso da mochila e rapidamente se posicionar próximo aos degraus do ônibus. Ainda que o rota 3 não me levasse para distante do meu destino, fui arrebatado pelo desânimo que me causa essa hora do dia, em que o entardecer afeta tudo ao redor [já eram quase 18h40]; a escuridão tomava conta da cidade sem nem me dar conta do fato. Do que adiantaria espremer-me entre aquela gente na esperança morta de que romper o silêncio entre mim e aquela desconhecida?! Antes o nem começar do que a ansiedade do por vir. Frente aquele rosto indiferente a mim, que poderia eu dizer que a impressionasse minimamente. Sempre fui desses seres que proclama discursos antecipados dentro de si, que ensaia como o ator mais dedicado, no entanto, ao entrar em cena, tudo se esvai como a fumaça do cigarro soprada pela boca de um bebum desanimado até pelo álcool que alivia-o o sofrimento da sobriedade.

Esperei até que passasse o rota 1, entreguei o dinheiro ao motorista sem nem identificar-lhe a face. Naquele dia, pouco reti da aula, distraído pelo que não foi e pelo que poderia ter sido. Ainda regressei religiosamente ao ponto, àquela mesma hora, até que terminasse a semana. Fui, hei de confessar!, também ao sábado e ao domingo. Nunca mais a vi!. Também, curiosa constatação, se a visse ou se passe ao meu lado numa calçada qualquer, me julgaria incapaz de decodificar lhe a face. Agora, todas as garotas que tivessem que seja um traço físico daquela leitora, já era suficiente para gelar-me a alma e julgar-me diante daquela que fez-me provocar o único atraso de minha vida; ou talvez nem trate-se de um atraso, mas um ganho de vida, pois fiz daquelas horas, as de um visitante de museu, que passa o tempo a apreciar objetos antigos e imaginar o que teria sido daquilo, para que teriam usado nossas antepassados coisas tão estranhas, que mãos as fabricaram ou mesmo como poderia aquilo ter sido útil para realizar tarefas tão simples em nosso tempo. Ainda continuo a observar os passageiros dos ônibus, com uma concentração mentirosa nas páginas de um livro qualquer; tal qual quem mente ler num banco de praça, com o propósito de observar os casais e as crianças que brincam de espantar os pombos.

FIM

Notas

¹ Johannes Vermeer foi um pintor holandês, que também é conhecido como Vermeer de Delft ou Johannes van der Meer.

² Referência ao trecho das Madeleines, da obra “Du côté de chez Swann”, de Marcel Proust.


Gustavo Rubim, nascido em 1999, jornalista graduado pelo UNIPAM, Mestre em Integração Latam – UNLP, pós-graduado em Ciências Políticas e pós-graduado em Direito Internacional – FOCUS.


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