Hospital Fronteiriço (As Plicas do Oriente Médio)

 Por Jô Drumond

Imagem: Reprodução

No jornal televisivo, em meio a cenas aterrorizantes da guerra entre o grupo terrorista palestino Hamas e judeus, houve algo que me enterneceu profundamente.

Num hospital, situado próximo à fronteira entre os beligerantes, vejo um corre-corre de médicos e enfermeiras palestinos e judeus tentando indiscriminadamente salvar vidas. Feridos e mais feridos chegam a todo momento, para pronto atendimento. Os profissionais da saúde se desdobram para amenizar as dores dos sofrentes, quaisquer que sejam suas concepções políticas ou religiosas. Enquanto, do lado de fora, o Mal tenta acabar com vidas, do lado de dentro o Bem tenta salvá-las.

Vale ressaltar que a guerra de Israel não é contra o povo palestino, que sofre, na pele, as consequências do conflito; é contra o grupo Hamas, desencadeador dos bombardeios e da mortandade.

Questionados por um repórter, os salvadores responderam que, ao entrarem no hospital, para trabalhar, deixavam as concepções políticas e religiosas dentro de uma caixa simbólica, do lado de fora do hospital. Durante a reportagem percebi que tais profissionais também estão muito vulneráveis, na linha de tensão. Subitamente uma sirene indicando a iminência de ataques aéreos começa a soar. Correria nos corredores. Fazer o quê? Como buscar abrigo subterrâneo e deixar os feridos, inclusive muitas crianças à mercê dos bombardeios? Do lado de fora, a guerra contra a vida; do lado de dentro a guerra pela vida. Preferi desligar o televisor.

Nada mais tocante, nessas últimas semanas, que imagens de crianças ensanguentadas com olhar perdido em busca de proteção, ou em busca de familiares que jazem sob escombros. Existe algo que justifique tamanha insensatez?

Sabe-se que a grande maioria dos conflitos bélicos acontecem por disputas territoriais, questões religiosas, interesses econômicos, entre outros motivos. Na atual guerra, no Oriente Médio, cada lado se arroga o direito de representar o Bem na luta contra o Mal. Acontece que o Bem e o Mal estão em ambos os lados, dentro do ser humano. Essa questão entre judeus e muçulmanos tem como “complicador” a mescla da disputa territorial com concepções religiosas. Há que se encontrar uma maneira de contornar o conflito de modo a satisfazer a ambas as partes, para que a tensão não se “desdobre” e se estenda a outros países e continentes.

A “dobra”, também denominada “plica”, deriva etimologicamente do verbo plicare que, em latim, significa “dobrar, enrolar, enroscar”. Explicar é tornar claro ou inteligível o que é obscuro. O inexplicável possui uma plica que não se explica. Algo é complicado, como o conflito no Oriente Médio, quando possui várias plicas. No caso, a plica da disputa territorial, a das concepções religiosas, a do poder econômico, a do poder político.. O conflito entre judeus e grupos terroristas palestinos, na faixa de Gaza vem de longa data. Tal faixa corresponderia à dobra deleuziana*, ou seja, a um ponto nevrálgico de grande tensão, a uma dialética sem síntese. Segundo Deleuze, a síntese seria inviável, pois ela se individualizaria, tornando-se tese, opondo-se a uma nova antítese, o que recomeçaria o processo dialético.

A meu ver, a arte do bem-viver encontra-se na convivência pacífica dos opostos, no imbricamento das polaridades, de modo que cada uma mantenha sua especificidade. Acontece que a procura pela linha reta, pelo caminho mais curto, às vezes é interrompida pelas dobras e redobras da existência.

Coincidentemente li hoje a monografia* do estudioso Mauro Leite sobre as incessantes lutas pela posse de terras entre jagunços e coronéis, no sertão brasileiro, no século passado. Na abordagem da estruturação da sociedade civil, o autor inclui a seguinte citação de Jean Jacques Rousseau: “O primeiro que, tendo cercado um terreno, ousou dizer esse é meu, e encontrou gente suficientemente simples para acreditar nisso, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.”

Bom seria se voltássemos às origens (ao paraíso bíblico): uma terra sem donos, onde os frutos eram de todos.


Jô Drumond é escritora, tradutora juramentada e artista plástica. Já publicou 26 livros. Pertence a três academias de Letras: Afemil, AEL e Afesl. É colaboradora do Jornal de Patos, da Revista cultural Desleituras e publica no próprio blog.

🦆

Apoie o jornalismo independente colaborando com doações mensais de a partir de R$5 no nosso financiamento coletivo do Catarse: http://catarse.me/jornaldepatos. Considere também doar qualquer quantia pelo PIX com a chave jornaldepatoscontato@gmail.com.

Postar um comentário

10 Comentários

  1. Jô,você escreveu sobre esta guerra entre o Hamas e Israel,tão bem divertido queme esclareceu alguns pontos que não entender,o porque de se matar,pelo poder de alguns vitimando pessoas inocentes
    Os muçulmanos na sua maioria tem uma crença religiosa que quanto mais matar o inimigo mais depressa chega até Deus,com atos terroristas
    Parabéns, aprendi e entendi o que me confundia
    Obrigada

    ResponderExcluir
  2. Parabéns, Jô! Sempre escrevendo, sempre tema atual!
    Tristeza deve sentir todos os que de alguma forma são obrigados a conviver com tanta brutalidade, tanta desumanidade.
    Mas… que triste ainda é ver que todo mundo está inseguro!
    Abraços.

    ResponderExcluir
  3. Jo sempre objetiva destrincha a tal da "plica" que enrola Israel e o Hamas (e os conflitos da regiao, que sao milenares). Quanto ao paraiso, o pobre nao vingou, nao ha como retornar.

    ResponderExcluir
  4. Nenhuma leitura sobre o conflito no Oriente Médio soou tão convincente ao meu entendimento quanto esta abordagem da amiga Jô. O desenvolvimento coerente das idéias alia-se à isenção da cronista e à sua reconhecida capacidade de lidar com palavras na busca do convencimento. O discurso narrativo inicial assume o tom investigativo quando ela se apoia na etimologia e na metalinguagem para se posicionar. Assim, as dobras se desdobram em plicas para "explicar" que a luta entre o "Bem" e o "Mal" é a raiz das discórdias. Parabéns, Jô, pela sensibilidade contida nesta leitura que "descomplica"o tenebroso conflito.

    ResponderExcluir
  5. Adoro ler suas crônicas, Jô. Muito obrigada por elas. Os temas são sempre instigante e sua leitura flui de modo que a gente nem quer que acabe. Parabéns!

    ResponderExcluir
  6. Excelente Jô. Uma reflexão admirável e oportuna. Parabéns!

    ResponderExcluir
  7. Caixa simbólica!! Expressão de muita sabedoria!! Parabéns pelo seu belíssimo texto!!

    ResponderExcluir
  8. JÔ sait si bien exprimer par écrit ce que la plupart de nous ressentons au fond de nos cœurs . Ce sont des vérités tellement évidentes. Comment ne sont elles pas entendues par tous ?

    ResponderExcluir
  9. Amada amiga das montanhas, vejo a guerra como uma disputa de poder, de força, e como uma forma de alimentar a fabricação e o comércio de armas, são máfias. Os inocentes são os únicos prejudicados, violentados, agredidos, massacrados, destruídos mesmo. Os mandantes e os seus são protegidos e mantidos bem distantes das explosões. Qq guerra é um ato cruel, de insanidade.
    Muito bem relatado por vc essa situação insana que só causa dor e sofrimento aos povos dos dois lados. Seu texto esclarece e 'explica" com a maestria que lhe é peculiar. Parabéns!
    Beijos querida amiga.
    Saudades!

    ResponderExcluir
  10. Jo, sua crônica retrata essa guerra milenar sem fim, com detalhes instigantes sobre a caixa simbólica.
    Quanto sofrimento pelo poder, crueldade com os inocentes, órfãos vitimados por esses covardes que ficam impunes, só absorvendo as glórias com a calamidade do povo.
    Sua narrativa nos sensibiliza, e imagino como se sente ao transcrever essas cenas devastadoras.
    Parabéns pelos detalhes e sua sensibilidade.
    Denise Moraes.

    ResponderExcluir

Obrigado por comentar!