Texto e imagem por Juliana Canhestro
“Encosta teu rosto no travesseiro e tente dormir, o mês já acabou”, escuto longe a doce voz daquela menina. Tento repousar ludibriando minha mente inquieta.
Julho se foi...
Lentamente, como as intermináveis noites de inverno, porém a palidez em minhas unhas, denuncia que ele ainda está aqui.
Uma paleta de tons frios tinge o céu no silêncio do amanhecer. O vento cortante esgueira-se pelas frestas da janela, que ainda fechadas, tocam na minha pele como se quisesse me lembrar que o inverno ainda permanece bem aqui dentro. Saio. É hora de partir para o trabalho. A mesma rotina, os mesmos passos, o mesmo peso. Caminho pela praça, onde o sereno me acompanha como uma sombra cúmplice. Sigo adiante pela manhã indiferente, tão relutante quanto eu. Aquelas palavras... Elas ainda vagueiam por minha mente, como espectros que se recusam a partir.
Percebo que tenho errado toda vez, em buscar o amargo em meu coração. Talvez aquela garotinha ainda esteja lá, sozinha em seu quarto, temendo a escuridão como eu temo a mim mesma. Suas dores não gritam, mas sussurram baixinho, quase em segredo, no pé do ouvido quando a casa está silenciosa demais. De tempos em tempos, me encontro com ela de mãos dadas com a minha sombra. Talvez estamos bailando na penumbra dos cômodos, numa tentativa sutil de ludibriar qualquer receio.
Volto a falar sobre julho, pois é, nada parece ser suficiente para ele. Nem meus delírios mais febris, nem o silêncio que engulo a seco para não arruinar ainda mais o dia. Julho só enxerga a própria dor, como se o seu frio fosse o único legítimo. Faz-me duvidar, noite após noite, da convicção que tenho de mim mesma, e me escancara, sem piedade, minha incapacidade de manter o controle quando estou ferida. Olho adiante, cabisbaixa, interrogo as lástimas em minhas lágrimas, qual é o sentido de tanta frieza? Insisto indagando, mesmo sabendo que isso dilacera minha mente. Insisto, pois, dentro do meu coração, o que habita é apenas o desejo por um abraço sincero, e um “eu te vejo novamente na próxima estação”, sem egos, sem distâncias, sem essa geada que insiste em permanecer entre nós.
Nesta ilusão, busco a tênue e sutil compreensão do que são as coisas e por que insistem em ser como devem ser. É nessa sedutora vontade de fuga que sigo perecendo a cada vento dentro do meu próprio ato de insistir a existir nesta estação, onde tudo permanece, quase sem existência. Queria voltar a entender o caminho dos céus percorrido pelos pássaros, mas sei que o tempo irá se refazer, do mesmo modo ano que vem. E voltamos ao inverno, onde o desejo de voar, é tragado pelo vento frio que se insinua pela fresta, aquela que, mais uma vez, voltei a fechar.
O tempo passa, julho vai e vem, o mundo segue, mas eu permaneço. Olho para o canto do meu quarto, meu reflexo no espelho ainda está ali, parece seguro, repousa firme, como se espiasse meus segredos. Compartilhamos apenas o silêncio da manhã pós julho, um céu tingido de cinza, um sol ofuscado pela neblina, e pássaros que insistem em cantar cedo. Pobres demais, como se não soubessem que ainda é inverno.
Mas, de certo modo, o cantar leva quase tudo embora.
Só não leva a dormência nos meus dedos gelados.
Ainda há cura nessa dimensão?
Entrego todo o meu ser, e então, me deparo com a garotinha que ainda teme julho. Abro os braços, num sussurro, pergunto: Por que temes? Se foi com tua força que aprendi a crescer? Fica comigo neste quarto, bailando em nosso silêncio cintilante, minhas olheiras cansadas, tua voz tão doce. Encosta tuas mãos quentes em meu rosto pálido e faz-me lembrar que não posso permitir que a mente, a ira ou o medo dominem meu coração.
Acordei, e nesta manhã, voltei a ver passarinhos voando para bem longe de julho. Senti então, que talvez seja hora de me reerguer e acreditar que podemos ser sim semeadura florescendo ao fim do inverno, começando a colorir o jardim da nova estação. Sobreponho a vida, e desperto minha solitude, reconheço que as lágrimas que caíram em julho podem, enfim, virar um mero texto. Desta vez, este mês não irá me engolir, e no próximo ano, quando julho retornar, hei de lembrar que mesmo dentro das feridas, há espaço para cura.
Encosto novamente a cabeça no travesseiro, tentando não ouvir, mais uma vez, as palavras antigas que ainda inquietam a noite. Talvez, ao invés de dormir, eu apenas me permita lembrar daquilo que me faz bem, e sem que eu perceba, um sorriso ameno se insinua, por um breve instante. É quando me reencontro com o olhar daquela garotinha. Apesar das estações que vieram e se foram, o brilho em seus olhos permanece o mesmo, genuíno, sereno, intacto. Eu a abraço, um momento de luz que se arquiva suavemente neste cômodo vazio, como se soubesse o exato lugar de repouso entre as sombras.
E ela volta sempre, com o mesmo carinho silencioso, toda vez que nos reencontramos.
No fim de mais um inverno.
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