Coração de Leão dos Outros

Texto e imagem por Gustavo Oliveira

Para mon vieux Rubim.


She’s the tear that hangs inside my soul forever (Jeff Buckley)


I


Se alguém diz que o Ricardo é um sujeito meio apático, não falta com certa cota de verdade.

Desde que o vi pela primeira vez, sempre foi assim, na dele, meio “tanto faz como tanto fez”… enfim, deve ter lá motivos para ser caladão daquele jeito. Inclusive, aí está uma perigosa inclinação de caráter para se ter, porque costumam meter os calados no saco das moscas-mortas. Bem, hoje, aliás, ao ver a história em perspectiva, percebo nessa tendência ao silêncio algum sentido no rumo que ele deu à vida.

Sempre foi fácil flagrá-lo cofiando as ralas barbas, perdido no ar com a vista aluada de ponto. Tanto que o “acorda, Ricardo” deixava de ter graça lá pela segunda semana de convívio (até para os chatos de galocha). Logo nos primeiros conhecimentos notava-se que não era excesso de displicência ou presunção, nada disso: além de cumprir todas as tarefas com dedicação e capricho, ele espalhava uma simpatia instantânea com o efeito recém-amanhecido de seus lacrimosos olhos castanhos; aliados, claro, ao zelo pela palavra bem esmerilhada, naquela voz de etérea candura.

Essa era a opinião que eu e os outros colegas do curso de licenciatura em Matemática fazíamos dele; já as meninas deviam formular nos recônditos abismos do impronunciável: “bonito-bonito, mesmo, não é, nem rico, nem elegante, nem o sumo da inteligência: mas é tão bom!…”. Assim passava, avoado e tranquilo, tão presente quanto qualquer pedra no meio do cascalho.

Por outro lado, em meio a tanto pedregulho com valor de peso, parecia-me que o brilho interior de Ricardo era propositalmente esbatido pelo atrito com o banal — ele ansiava por não ser notado. Não dava margem para cutucarem sua intimidade, exilava-se no vazio durante as horas de fofoca ou de intriga generalizada, quando abria a boca era de uma delicadeza sem-par e não tinha hora ruim para ser prestativo no que dele precisassem.

*

Sexta-feira, nove da noite, é hora de aula, mas não de ver gente nas salas — se é que você me entende. E eu, como nunca quis como rito de passagem universitário o tão vulgar alcoolismo ocidental, optei pelas igualmente ignóbeis e viciantes doses de Literatura. Naquela sexta estavam uns no boteco, alguns gatos pingados na sala e eu, religiosamente, entre as estantes, preparando a carga de mais um fim de semana.

Devo confessar que tinha um certo despeito nessas rondas noturnas, como que evitando os olhos dos conhecidos naquilo que considerava a maior das minhas contradições: “gente de exatas não devia mexer com humanas, blá-blá”; enfim, todo mundo precisa de um mau hábito, eis o meu.

Se as salas, que eram a obrigação, viviam às moscas, o que dizer da biblioteca às sextas? Os funcionários fulminavam cinco gerações dos que ousavam aparecer àquela altura da hora. Como era um habitué pontualíssimo, desprezavam-me tanto que até tinham desistido de esperdiçar mau-agouro nos meus pobres tataranetos.

Da entrada até o quarto andar (onde ficava meu estoque de narcóticos), através das escadarias abandonadas, ressoava a mistureba de uns vinte ecos de batidões diferentes tocando no “cinturão botequeiro-universitário” — no máximo dava para discernir um acorde aqui ou um agudo ali que emergia da onda vultuosa de forró, funk, pisadinha, trance-techno-house, pagode e sertanejo.

Como sempre acontecia, cheguei lá em cima meio atordoado pela barafunda sonora que abafava as ruas e subia pelas paredes. Enquanto mexia nos russos, indeciso entre revisitar Turguêniev ou Andreiev, ouço um “snif-snif” envergonhado de nariz choroso, perdido lá pelas bandas dos poetas portugueses. E lembro que pensei claramente (ainda hoje concordo com essa ideia): “se um espírito vem até essa seção para derramar as lástimas, é do tipo que se vale a pena conhecer”.

Furtivo, acheguei-me até lá. Sentado no piso frio, com as costas encostadas a uma pilastra que separava duas estantes, numa posição meio esquisita entre bicho-preguiça e gárgula medieval, estava o Ricardo, com as mesmas vistas perdidas de sempre, só que para dentro do livro, indiferente às lágrimas umedecendo o papel.

E naquele exato instante de reconhecimento, neste mesmo mundo tão torpe e mesquinho, acendeu-se o estopim para um companheirismo inestimável.

Nada une duas pessoas como a dependência pela mesma substância.


II

Correram alguns bons meses debaixo da ponte até o dia em que Ricardo me revelou o real motivo das lágrimas que batizaram nossa amizade. Durante esse período, ele desemaranhou do bolso evasivas tão ternas que resolvi esquecer o caso na terceira tentativa de questioná-lo.

Esse meio tempo de reconhecimentos foi o suficiente para nos tornamos íntimos — claro, sob os limites impostos por sua discrição: era órfão de pai e mãe, vivia de favor na casa do tio que o criara e dava um punhado de aulas particulares de reforço. Apesar dessa reserva nos assuntos pessoais, irmanávamos sem rede de segurança nas horas de mergulhos literários, que nos prendiam ou entre cocas geladas e ovos coloridos no balcão do Bar Rala Tripa (ponto onde nossa caminhada pós-aula bifurcava), ou na sarjeta abeirando a placa de parada obrigatória em frente ao bar, até as onze da noite, todo santo dia.

Quando no início do quarto semestre veio a notícia do trabalho que faríamos até dezembro em conjunto com o pessoal do curso de Letras, uma nota de tensão passou a assombrar diariamente os olhos aquosos de Ricardo. A coisa piorou nas primeiras aulas com a turma das línguas (tinha gente do Francês, do Espanhol, do Inglês). Não demorou muito até sortearem os grupos e, nesse dia, deixamos a faculdade só porque os vigias passaram dando a última varredura antes de trancarem os portões: Ricardo me contou a história completa da aflição que o corroía.

Em resumo: seus sofrimentos atendiam pelo nome de Alba Queiroz, a própria que, além de o fazer borrar de pranto alguns sonetos de António Nobre naquela sexta-feira distante, pelo ano e meio anterior, foi quem dedilhou as cordas da angústia no coração de meu amigo. E parece que ela nem sabia da existência dele. “E assim eu prefiro”, disse-me, entre soluços, enquanto saíamos da faculdade esvaziada para nos sentarmos no degrau sob as portas cerradas do Rala Tripa.

Essa confissão demorou um ano de conhecimento e só aconteceu porque na aula, em sorteio, Alba tinha parado no grupo que nós dois formáramos como líderes — por mais querido que Ricardo fosse, sempre sobrávamos no frigir das panelinhas.

“Ela podia cair em outros cinco grupos e ainda faltavam dezesseis nomes para serem tirados da caixa, por que logo no nosso?” E calculamos as probabilidades metafísicas, já que as matemáticas, era um acordo tácito que tínhamos (“como o existente entre a mão esquerda e a direita”), não tratar do mínimo x ou y quando viessem à baila as coisas da vida.

Além disso, como gostávamos de entender cada minúcia do quadro antes de proferir qualquer posição, nossas conversas poderiam ser tudo menos sucintas. Na fatídica confissão, ele primeiro enveredou pelas paixões que cultivava no teatro, desde as leituras iniciais dos textos dramáticos, como Nelson Rodrigues, Brecht, Pirandello, Shakespeare; até as posteriores descobertas de Ibsen, Strindberg e Tchékhov. Em seguida elencou os vários fundamentos da repulsa que alimentava por textos feitos para o público infanto-juvenil e, sobretudo, aos com temática de fantasia: “ninguém finge de bobo melhor do que uma criança. Elas são o cão! Sabem de tudo! Quando puder, repare nos olhinhos espertos percebendo a inteligência ofendida com aquelas bobagens, a cada piscadinha vejo um urro de ‘não é bem assim…’; até que vão se acostumando com a baboseira toda, crescem e veem: ‘é, realmente, os adultos sempre foram tolos como imaginei’ e, se não reproduzem a lambança, esquecem completamente a malícia infantil e viram burocracia antropomorfizada! Apesar disso, perceba o sarcasmo da vida, ria do meu flagelo: veja só quem veio ser a Andrômeda do meu coração!”.

No que consigo desenhar, Alba tinha uma beleza de volúpias subliminares, todas de mucuta, escondidas atrás de uma fúria grega em sobrancelhas pretas de azeviche contornando o magnetismo principal do rosto magro e comprido: os olhos castanho-claros meio esverdeados. Apesar deles magnetizarem toda a atenção, em qualquer risadinha contida a boca se desmanchava num sorriso grande e singelo, donde se percebia que os lábios encarnados pela natureza contrastavam com as bastas mechas de cabelo castanho-garapa, revolvidos em ondulações compridas derramadas sobre os pálidos ombros franzinos.

E era por essa figura que Ricardo trimestralmente ia ao teatro ver uma peça nova, desde os primórdios da faculdade. “Bastou uma ida despretensiosa àquele banheiro que fica no andar da nossa sala. Eu vinha pelo corredor, já no caminho de volta, e ela, surgindo da escada, apareceu com aquele sorrisão entregando panfletos para a primeira estreia do ano. Claro que congelei de encanto”, entalou na recordação do caso, de cabeça baixa, ruminando o dilema lancinante do amor em seu coração de solitário. “Como pode? Um teatro tão… tão… E ela, logo por ela! E tudo fica tão sublime quando ela aparece! Um gesto dela e todo Fausto angustiado vira pó! Arre! Como pode?”, e eu quase ri de nervoso, sabendo tão pouco quanto ele explicar a situação ou apresentar algum motivo razoável para as variantes das lucubrações que, incansavelmente, a partir daquele dia, passou a revisitar em muitas das nossas caminhadas de intervalo e pós-aula.


III

Ah, já ia esquecendo. Nessa mesma noite, ele me contou também da primeira conversa com Alba. Bem, não chegou a ser propriamente uma conversa: logo após o espetáculo divulgado no fatídico panfleto, Ricardo, espremido entre mães e crianças, cotovelou (disse-me que com delicadeza) a torto e a direito até alcançar o centro do foyer.

O motivo da muvuca era que todos ansiavam por alcançar atores e atrizes caracterizados, bajulá-los e, segundo ele, “repetir um besteirol tão-absurdo-mais-tão-absurdo, que cada um dos pentelhos, — pestes do cão! — cheios de olhinhos sardônicos, devolviam, incansáveis: ‘me engana que eu gosto… esse povo fantasiado e de voz esquisita é tudo gente, mas vamos fingir o quanto quiserem’. Até que emergiu Ela do meio da turba, na simplicidade bufônica de algum bicho metamorfoseado noutro pelas metades, abadernando o ambiente junto aos outros 25 companheiros de trupe”.

Ricardo foi abrindo espaço, penso que como um funâmbulo desengonçado (por causa da ampla estrutura óssea que enverga), sempre com as mãos no bolso (como é de praxe nele, “evitando a desagradável forçação de contato físico”), até alcançá-la para derreter-se em ternura: “você estava estupenda”. Depois ficou sorrindo até, como contou-me, “ela abrir a linda arcada dentária” em resposta puramente simpática, acompanhada de um “obrigada” e da imediata sucção dela para dentro da chusma de crianças, mães e monstros fabulosos (a peça tinha um tema fantástico qualquer que não me lembro mais qual era).

Óbvio que além de atordoado Ricardo estava atolado de vez em seu maravilhamento. Naquele tempo éramos uns rapazes extremamente lógicos, mas bastava uma centelha de literatura para refutarmos toda análise combinatória, números irracionais e geometrias. A partir de quando me contou o caso, cada dia mais, comecei a perceber desses arroubos nele; bastava Alba entrar pela porta, entregue pelo selinho do impecável namorado estudante de direito e líder estudantil, para entrever, na agitação exterior de meu amigo, as lutas interiores travadas para manter sua idílica Babel de pé: corrigia a postura, abaixava os olhos, fechava o caderno, coçava o cotovelo. Passavam-se os 50 minutos regulamentares, saíamos da sala e ele custava a esperar que dobrássemos a primeira curva do corredor: “Será que ela percebeu em quem aquela ideia que dei foi inspirada? Será que se lembrará de mim? Que vergonha, meus deus!” E eu colocava doses de sensatez no chope: ‘foi uma ideia banalíssima; aliás, pense bem, Ricardo: quase dois anos platônicos e frase e meia trocada em intimidade pública, convenhamos… é uma carga de insistência pouco provável de gerar lembranças numa mente tão assediada como a de Alba’ — daí ele sossegava e falávamos de literatura enquanto durasse o intervalo ou o caminho até a bifurcação do Rala Tripa.

Lá pelas metades do semestre na tal “disciplina intercursos”, saiu um papo sobre literatura na rodinha de sete do nosso grupo. Papo esse que, em absoluto, nada tinha a ver com as “ações empreendedoras em gestão escolar”, avançando na segunda ou terceira fase daquela maçada administrativa. Com a incredulidade sempre tão charmosa das garotas, Alba e as outras duas moças de Letras do nosso grupo tinham fogueiras de São João luciluzindo nos olhos enquanto citávamos versos, títulos e trechos dos nossos favoritos, elas idem; lembro-me do prazer dobrado que sentimos com a atividade postergada para dever de casa, já que nenhum grupo conseguiu resolver aquela barafunda de problemas burocráticos no tempo determinado. Da porta para fora as três tomaram seus rumos, esquecidas de que existíamos.

“E como ela é graciosa, até falando mal das obras, você viu?” Sim, vi, e abismava cada vez um tanto mais com os arrebatamentos que o empolgavam após aquelas aulas.


IV

Pobre Ricardo, como sofreu duas vezes por semana ao cubo até que viesse dezembro! Quantos elogios não teceu para a “Musa Alba” nas caminhadas de volta rumo à encruzilhada do Rala Tripa! Ele, que já era magro, terminou o ano com as maçãs do rosto cavando mais fundo ainda no rosto de melancólicas feições.

Desconfio, inclusive, que ele tenha até cedido àquilo, ao malfadado “nunca será comigo” mais perigoso de todos, que apelidáramos como a “tentação derradeira” do vício literário: o soneto breguíssimo em louvor à mulher amada. Desconfio porque vez ou outra, como ele era o primeiro a chegar na sala e eu o segundo, surpreendia-o dobrando às pressas para dentro dos bolsos uns pares de estrofes. A troça que tínhamos envolvendo essas produções romântico-ridículas era tão sardônica, que imagino tê-lo afetado algum pudor, por mais liberdade e entrega confessional que dedicávamos em cada segundo de conversa.

Nos derradeiros dias do tempo que Alba fez parte do nosso convívio, lá para fins de novembro ou início de dezembro daquele segundo ano de faculdade, ele me convidou para acompanhá-lo na estreia da nova peça da companhia teatral. Como era hábito entre nós, lembrei, risonho, da contradição intelectual daquele amante do teatro clássico, que admirava os expressionistas, passando pelos gregos, indo até os realistas (e por aí vai) em continuar perdendo tempo com aquela coisa bufa e mambembe: “qué sea, você, que nunca foi, logo entenderá que basta um redemoinho para insuflar uma tempestade tropical inteira…” e subia alguns quilômetros de serra nessa defesa quase culpada.

Fomos.

Assistimos.

Como em quase tudo nos entendíamos pelos olhares, assim que as luzes se acenderam na sala após cinco minutos de esfuziantes aplausos de pé, bastou divisar o raio de êxtase fulminante nas pupilas acastanhadas dele para entender que nenhuma tirada irônica o traria de volta ao mundo dos mortais.

O foyer já estava tomado quando saímos da sala abarrotada. Alba, a estrela mais brilhante da noite, estava cercada por uma dúzia de crianças se embolando nas tiras coloridas da fantasia, como se ela fosse o pau de fita da dança junina.

Ricardo estacou por um segundo, pensei que calculava como alcançá-la. Bastou que eu ficasse outros cinco segundos magnetizado pela atração exercida por Alba para perdê-lo de vista no meio daquela barafunda de paetês e dentes de leite. De repente, um par de largas espáduas se esgueirou no meio da turba amotinada no alto das escadas na saída do teatro, com a delicadeza singular contida no cabeceio de um bailarino bêbado.

Fui achá-lo agachado na sarjeta, suava e tossia desabridamente, sufocado pelo vômito seco, aferroando as unhas nos joelhos, avermelhado pela angústia travando o ar na goela. Peguei-lhe na cabeça e no ombro, e acalmei-o da crise. Ajudei-o a se levantar e fomos até um dos bancos na pracinha em frente.

Não fizemos conta de ninguém saindo do teatro. Abeirava a meia-noite quando caminhamos até a esquina do Rala Tripa sob um silêncio sepulcral, selado pela profunda noite de domingo da nossa solidão.


V

Colamos grau em dezembro do ano seguinte; em janeiro a prefeitura abriu concurso; em meados de julho estávamos contratados: eu fui para a escola do Ipanema, um bairro afastado, e Ricardo, surpreendentemente (ao menos para mim), partiu para o inóspito distrito de Pilar, a 70 km da cidade. Só quem o conheceu saberia quanto “homem urbano” caía como uma luva para explicar a anatomia e os anseios de meu amigo. E, se não bastasse trabalhar no cafundó, ainda decidiu rejeitar o ônibus que fazia o bate-volta diário com os professores: moraria por lá mesmo.

Estávamos sentados no balcão do Rala Tripa, beliscando as cocas e um prato com ovos coloridos. Mesmo completamente embasbacado pela informação entregue entre uma casca e outra, fui bem discreto ao expor minhas opiniões. Logo que terminei de soltar as amenidades envernizadas, ele, de cabeça baixa, bebericou no copo de coca, entrelaçou os dedos das mãos com certa solenidade, desfez, desceu da banqueta, escorou a cacunda no balcão, fechou os punhos para dentro dos bolsos da calça, me fixou nos olhos e rompeu o silêncio que começava a sufocar: “eu só quero sumir dessa cidade”.

A princípio, seria besta pensar em Alba como motivo: no ano e meio separando a estreia em que teve a crise e essa frase peremptória, não citamos novamente o nome da moça e, se porventura cruzávamos com ela nos corredores, meneávamos a cabeça em cumprimento e depois nenhuma palavra emergia entre nós. Afora a coincidência dele estar sempre ocupado nas noites de espetáculos teatrais, de resto o caso virou assunto velado.

Às vezes falava em sair o quanto antes da casa do tio, vez ou outra confessava sentir-se um estorvo, os primos estavam entrando na adolescência e “por mais que digam que posso ficar lá pelo tempo que eu precisar, sei que a vida está aí é para ser encarada, não acomodada”.

Quanta coisa, aliás, serve de cápsula envolvendo uma decisão? São inúmeros fragmentos de vontades, desejos, faltas, desilusões, acasos, pendores inconscientes que nos impulsionam para aqui ou ali, sem contar as influências: do trânsito recente nos intestinos; da temperatura do dia (sejamos justos: pensa-se diferente fazendo 45ºC à sombra de -2ºC ao sol do meio-dia); e da máscara que-cai-não-cai sobre os pensamentos no exato instante de dizer “não” a tudo com um simples “sim” para nada.

Chega de divagar: fosse como fosse, ele se exilou naqueles fins-de-mundo nos melhores anos, os ditos melhores anos, os vinte, da vida como a concebemos.

*

Desde então, 35 anos pousaram poeira sobre esses tempos tão distantes, a aposentadoria está a dias de nos encontrar. Durante as idas e vindas da carreira, mantivemos uma correspondência irregular à moda antiga, cartas foram, faltaram e vieram.

Eu acabei tomando trauma da sala de aula no terceiro ano de docência e fui ser caixeiro-viajante pelas rotas do delírio latino-americano. Já ele ficou no mesmo distrito de Pilar, apertado num puxadinho mínimo na antiga pensão da simpática viúva Aparecida (para quem um dia ele fora a menina dos olhos), não mais comandada pela boa senhorinha, mas pela mão-de-ferro da mulher do neto caçula. Escreveu-me há uns cinco anos: “a pirralha-projetinho-de-mocréia está melando bem os bolsos com o negócio do milagre”: diante da (desde sempre) famosa cachoeira localizada nas cercanias do povoado, uma mãe, após ter salvado sozinha seus gêmeos de seis anos do afogamento, desalentada enquanto olhava-os desacordados sobre as pedras depois de tentar massagens que nunca aprendera, orou com fervor a todos os santos padroeiros das crianças. Diante dos pungentes clamores da mulher desesperada, São Cosme e Damião desceram dos céus, desengasgaram os garotinhos e abriram diversas fendas com um feixe de luz feérico nas pedras que circundam o morro e o fluxo da queda d’água. Dizem que o brilho chegou até Lagamar, a 20 km da cachoeira. Depois disso, parece que toda água minando das fendas abertas nas pedras ganhou propriedades milagrosas. Conta-se que as crianças viveram e a família mudou de lá no dia seguinte.

“E mesmo com tanta gente vindo aqui, ela me despreza completa e abertamente — ainda que adore ver minhas onças e garoupas todo dia 5”, completou, na mesma carta. O puxadinho do Ricardo é separado das novas acomodações, destinadas só aos peregrinos e turistas.

Pouco depois do milagre, quando a referida carta ainda seguia fresca e sem resposta, eu estava indo à Taboca e passei por lá para visitá-lo. O espaço de três por dois e meio era quase todo ocupado pela estante: “estes dez resumem a matemática, estes a filosofia, aqueles ali as línguas, e o resto, você sabe, né, as coisas que nunca saem da gente…”. Contou-me dos planos de continuar ali “lembra da Aposta do Tchékhov, não lembra? Pois é, pois é…”, falou também das desilusões da vida mundana “arreque-tchú [arranhão na garganta e cusparada pela janela] meu catarro para a sociedade… e nem isso ela merece: dou minhas aulas… e basta!” e da inamovível fé no estoicismo “se fosse preciso, viveria de pedra na única refeição do dia… não preciso de mais nada, sabe como eu sou: ‘viver talvez é um pouco mais, um pouco menos, não sei’”. Isso era o Pessoa aos olhos do Ricardo, o bom Ricardo, meio esboroado pelo tempo e com um véu de veinhas vermelhas avançando sobre o sempre triste acastanhado das vistas.

Outro dia veio aqui na cidade para assinar os papéis definitivos na Previdência e ver uma casinha para alugar. Como eu vivia um interlúdio entre viagens, estive com ele o dia todo. Por acaso, depois de cumprida a burocracia, passamos na frente do teatro. Um cartaz pregado na entrada informava ser naquela noite a estreia da temporada de verão.

E com letras tão garrafais quanto as do título, qual era o nome da diretora e autora da peça? Justo, a própria, apresentando a filha, Dandara Queiroz (em letras um bocado menores), como a nova estrela mais brilhante da companhia e outros cinquenta figurantes e músicos citados em fonte 2,5. Trocamos o velho olhar de cumplicidade e passou-me na cabeça uma reprise infinita daqueles dias de juventude, sonho e solidão. A bilheteria estava aberta, então, bem… Combinamos que à noite viríamos espiar as coisas “só por curiosidade empírica”, nas palavras de Ricardo.

Para evitar o enfado do leitor e, principalmente, o meu, pularei outras descrições do teatro provinciano, que venha logo o ponto capital: as caras mudaram e os nomes também. Apesar disso, de resto, era tudo sem-tirar-nem-pôr, um jogo de espelhos refletidos em sutis distorções através de quase quatro décadas desperdiçadas de cá e de lá em nome da suposta “alma”: eles fazendo a arte deles e nós buscando respostas para a dor. Claro que, educadamente, aplaudimos de pé por eternos cinco minutos ao fim do espetáculo, acompanhando as outras furiosamente deslumbradas 198 pessoas presentes.

Saímos do teatro andando à esmo, calados, sob o céu que nalgum lugar estaria repleto de estrelas: ali, no Centro, todas eram ofuscadas pelos fachos de luz da iluminação branquérrimamente pornográfica dos postes. De flanar em vagar, calados, acabamos no balcão do antigo Bar Rala Tripa, hoje Bar do Escóra, e, ainda no automatismo do costume, pedimos o de sempre, a refeição que chegava para nosso dinheiro curto de estudantes: duas cocas geladas e dois pares de ovos coloridos. Como a moda em decoração continua sendo coisa antiga, mesmo sob a sexta ou sétima “nova direção”, o bar continuava mais ou menos a mesma coisa da nossa época de estudos. Afanoso na remoção da casca rosa-choque, Ricardo, pensativo, sem tirar os olhos da tarefa, soltou: “quantos daqueles lá não estarão agora, exatamente agora, encantados como eu estive naquele tempo, quantos?…” e, no meio do gesto de negação da cabeça, arrematou a chapeleta do ovo manchado de corante com o mesmo desalento de quem abocanha todas as vidas que poderiam ter sido numa só mordiscada.

Primavera de 2023


Gustavo Oliveira é um leitor em processo de alfabetização

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