Por Juliana Canhestro
Está quente, mas ainda o tempo anuncia chuva, como se o próprio céu estivesse em consonância com a minha inquietação. Permaneço aqui, junto das plantas, assimilando o peso das nuvens. Sintonizo-me com meus pensamentos como ajustar um rádio antigo, girando lentamente o botão entre chiados persistentes, memórias e pesares, interferências de um passado que se recusa a desaparecer por completo.
Retomei ao velho hábito de me sentar na praça durante o intervalo, por isso este texto está aqui, talvez numa tomada de buscar reflexão, respostas, ou talvez, só uma tentativa de capturar algum resíduo de nostalgia nesse fim de ano que nos resta. Não vinha aqui desde que perdi minha sombra preferida, após cortaram a árvore em frente tal palacete. Com ela, ao ser esvanecida, decretei uma perda de um abrigo íntimo, onde meus pensamentos encontravam repouso.
Caminho pelas irregularidades das pedras dessa praça, permitindo que o corpo dialogue com o chão como quem busca algum tipo de refúgio. Meu olhar se arrasta entre casas desmoronadas e aquelas que ainda insistem em existir, sustentadas mais pela memória, do que pelo que está ali. O ar fresco, mesmo com pouca sombra, atravessa a praça matrizeira, desalojando pensamentos acomodados e impondo-me uma pausa involuntária. Respiro devagar. Penso. Julgo tudo e o nada.
Pergunto-me quem eu era há um, cinco ou sete anos, e reconheço o quanto ainda permaneço tolhida pelo domínio de convicções que não me pertencem, ideias impostas ou simplesmente aceitas pelo cansaço. Lá está a garota que conversa sozinha e, ao mesmo tempo, com todos; dialoga com o passado; interpela o presente e provoca o futuro. Ande você vai? Aonde pretende chegar? Declaro meus desenganos sem cerimônia e acumulo questionamentos que não devem ser engolidos, pois silenciá-los seria permitir que se tornem corrosivos. Não há razão para engasgar diante do que nos invade.
São tantos os pensares amarrados em nós mesmos, que acabamos por não perceber o entrepassar da vida. Percebi que padecia demais em não compreender os sinais inscritos nas margens do abismo... Mas calma garota! Não é necessário decifrá-los, basta perceber que nem toda vertigem precisa converter-se em fardo, e que algumas existem apenas para nos lembrar da profundidade que habitamos, quem somos e como chegamos até aqui.
Quero deixar de habitar esse lugar instável e perecível, naquele quarto que empalidece meus dias, o qual já não me contento com as frestas de luz tímidas e insuficientes, sinto que são concessões mínimas que apenas adiam o escuro. Olho nas pontas dos meus dedos, há farpas cravadas entre minha pele e a unha, vestígios da terra que arei à mão, marcas do esforço silencioso e repetido, e alimento a expectativa de vê-la florir, talvez valha a pena persistir neste gesto de regar.
Apesar de tudo, ainda estou aqui, posta diante de mais um ano que se encerrou, carregando em mim as marcas do que resistiu e do que se perdeu pelo caminho. Não quero postergar, preciso logo aprender a domar a própria ansiedade e aceitar que o tempo não responde a súplicas. Cair logo na real que, imprevistos nos conduzem a lugares inimagináveis.
Com tudo isso, sepulto aqui os rastros das memórias que pesam, resquícios de tantos anos velhos que insistem em sobreviver ao calendário, reconhecendo que fomos e voltamos inúmeras vezes, sempre com o olhar projetado para tão longe, que esquecemos de decidir onde, afinal, permanecer. Entrego-me logo ao prólogo da minha própria história, sem temer para onde a sedução da fuga possa me levar. Nunca é tarde para começar alimentar nossos sonhos, este que me sustentou nos intervalos do cansaço, tudo tem seu momento, seu aguardo para alcançar uma maturidade suficiente para ser real.
Enfim...
É hora de voltar ao trabalho, realmente, o tempo passa rápido quando há hora para voltar.
Feliz ano novo!
Um abraço àqueles que permanecem, se assim desejarem.
Seguimos pela programação do indecifrável, com o corpo aguçado de paixão, um sorriso amarelado de café e a silenciosa esperança de que, desta vez, saberemos para onde ir.
Juliana Canhestro é advogada e encontra refúgio na poesia, na música e no teatro, sua maior paixão. E nesse enlace, se depara no caminho entre a razão e o sentimento, levando humanidade a cada gesto.
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