“A linguagem com que fomos ensinadas a nos diminuir e a diminuir nossos sentimentos, considerando-os suspeitos, é a mesma linguagem que usamos para diminuir nossas irmãs e suspeitar umas das outras.” Audre Lorde.
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O Bar Stonewall In em 1969 após a rebelião / Diana Davies |
Contudo em pleno fim do século XX, apesar dos avanços da ciência, da tecnologia e dos costumes, a questão de como a homossexualidade era vista na maioria dos países do mundo não havia se modificado muito.
Assim as pessoas LGBTIQ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersex e queer), até então tinham que viver sem a aceitação das instituições, dos pais, da escola, dos parentes, vizinhos, amigos, em suma do Mundo todo. E o pior é quando não se aceitavam mesmo diante do próprio autoconhecimento e traumáticas experiências. E por que não aceitar o que se é? É simples, as pessoas que você ama e que te amam, não te aceitam, então como te aceitar? Como se alguns seres humanos não fossem criaturas de Deus ou resultado de uma evolução, mas apenas detestáveis e sujos adjetivos: sodomita, veado, lésbica, gay, dike, pederasta, sapatão, bicha, fanchona, travesti, gilete, e que além de serem considerados como, pecadores, anômalos e degenerados a homossexualidade seria, além disso, como um distúrbio mental. As mulheres lésbicas seriam estigmatizadas duplamente, pela lesbofobia e o machismo. E as mulheres negras, triplamente, pela lesbofobia, machismo e racismo. Sem contar, uma misoginia atávica patriarcal que as espreitam como um pesadelo constante. E assim os homossexuais sempre foram condenados a uma vida dupla e sem visibilidade ou então a uma existência underground em seus próprios cotidianos...
E o que herdavam? Além de condenações em prisões sórdidas e/ou à pena de morte, a frustração intelectual e profissional, a solidão, a depressão, as drogas, o alcoolismo e o suicídio, isso se sobrevivessem à violência das pessoas heteronormativas ou “normais”, no trabalho, nas ruas, nas escolas, em casa etc.
Mas na década de 60, talvez a mais pródiga e benéfica de todo o nefasto e sanguinolento século XX, muitos eventos, alguns deles trágicos, trouxeram mudanças revolucionárias.
Um desses eventos seminais por assim dizer, foi a Rebelião de Stonewall, que foi o ápice de uma série de motins e confrontos entre policiais e homossexuais e ativistas em várias cidades americanas.
Stonewall Inn era um dos inúmeros bares noturnos frequentados pela comunidade gay, drag queens, drag kings, travestis, trans, michês e lésbicas de Nova Iorque localizado entre os números 51 e 53 na Rua Christopher, no bairro boêmio de Greenwich Village, em Manhattan, e como os outros eram constantemente tomados por violentas batidas policiais onde além de prisões e maus tratos ocorriam até mortes.
Todo movimento social espontâneo tem seus motivos de acontecer, mas ninguém sabe quando começa e quando e como termina. E foi assim no bar Stonewall, na madrugada do dia 28 de junho de 1969.
A única foto conhecida da primeira noite de rebeliões / Reprodução: Hypeness |
Foto dos dias que se seguiram à rebelião em Stonewall / Reprodução: Hypeness |
E neste ano apesar da pandemia e da intolerância generalizada de muitos, a ausência das paradas nas ruas dependerá da criatividade de cada um para que de alguma forma não haja esquecimento, e Audre Lorde nos admoesta novamente, “...não me tornarei ainda mais vulnerável colocando as armas do silêncio nas mãos dos meus inimigos.” Ou seja, aqueles que se orgulham de serem inimigos e querem silenciar quem não é binário, branco, heterossexual e patriarcal.
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Primeira Parada Gay, um ano depois de Stonewall, 1970 / Reprodução: Hypeness |
Dessa forma, segundo o site ShareAmerica, “O Monumento Nacional de Stonewall abrangerá uma faixa de 3,1 hectares do bairro de Greenwich Village, incluindo a taverna, o pequeno parque adjacente chamado Parque Christopher e as ruas vizinhas onde as pessoas se revoltaram depois que o bar gay foi invadido pela polícia em 1969. Obama disse que o monumento ´contaria a história de nossa luta pelos direitos LGBT´ e de um movimento pelos direitos civis que se tornou parte dos Estados Unidos.”
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Um homem acende velas no lado de fora do Stonewall Inn de Nova Iorque para homenagear vítimas do tiroteio em uma boate gay de Orlando em junho de 2016 / © AP Images |
E aí que, mesmo a despeito dos movimentos e lutas e o apoio de grande parte das sociedades, em várias partes do mundo, os eventos de Stonewall e muitas das reivindicações continuam sendo ignoradas e a homofobia, a lesbofobia e a misoginia ainda discriminam, agridem e até condenam homossexuais à morte, sobretudo os gays.
Entretanto, e partindo do presente para o passado as conquistas LGBTIQ, ainda que insuficientes, estão á caminho e a última delas aconteceu exatamente nos Estados Unidos no último dia 16 de junho: a Suprema Corte estendeu a eles as proteções da legislação de direitos civis de 1964 contra discriminação no trabalho. No Brasil no ano passado, o Supremo Tribunal Federal aprovou que a homofobia e a transfobia são agora considerados crimes.
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Bandeira arco-íris, símbolo do movimento LGBTIQ, com as cores de cima para baixo, vermelho, laranja, amarelo, verde, azul e violeta / Reprodução: Wikipedia |
Uma questão continua recorrente em todos os grupos e ainda está sem resposta: quantos Stonewall´s ainda serão necessários?
DESAFIOS E CONQUISTAS DOS LGBTIS*
A partir dos anos 1950
Surgem as divas trans que se tornam grandes estrelas no Brasil e na Europa, como Rogéria, Jane di Castro, Eloína e Fujika, entre outras
1969
LGBTs de Nova York colocam fim às agressões que sofriam em batidas policiais realizadas num bar da cidade, o Stonewall Inn. O grupo resistiu por três dias em 1969, numa época em que se relacionar com pessoas do mesmo sexo era ilegal em todos os estados americanos.
O movimento estimulou uma marcha sem volta de LGBTs por mais igualdade de direitos em várias partes do mundo e ficou conhecido como a revolta de Stonewall
1978
Início do movimento pelos direitos LGBT no Brasil. É fundado, no Rio de Janeiro, o jornal Lampião na Esquina, voltado para as questões da comunidade. Em São Paulo, surge o Somos.
1982
Ocorre a famosa passeata contra o delegado José Wilson Richetti, que realizava batidas policiais no centro de São Paulo contra travestis, gays e prostitutas sobre o pretexto de moralização social
1983
Em 19 de agosto de 1983, um protesto realizado por lésbicas e apoiado por grupos feministas pôs fim às discriminações sofridas no Ferro’s Bar, centro de SP. O ato ficou conhecido como o "Stonewall brasileiro" [Dia Nacional do Orgulho Lésbico]
Anos 80 e 90
Anos de pânico: o HIV chega ao Brasil e faz estrago conhecido como “peste gay”. Na Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo é organizado o primeiro núcleo de luta anti-Aids. Morrem Darcy Penteado, Caio Fernando Abreu e Cazuza por complicações da doença
1985
O Conselho Federal de Medicina retira a homossexualidade de sua lista de doenças
1990
OMS (Organização Mundial da Saúde) retira a homossexualidade de sua lista de transtornos mentais
1992
No Piauí, Kátia Tapeti é eleita a primeira vereadora trans na história da política brasileira
1995
As primeiras Paradas do Orgulho LGBT são realizadas em Curitiba e no Rio
1997
A cidade de São Paulo sedia sua primeira Parada LGBT. Em 2006, a passeata paulistana entra para o Guinness Book como o maior evento do gênero
2001
O governo de São Paulo promulga a lei 10.948 que penaliza práticas discriminatórias em razão da orientação sexual e identidade de gênero
2002
O processo de redesignação sexual, a chamada cirurgia de “mudança de sexo” do fenótipo masculino para o feminino é autorizada pelo Conselho Federal de Medicina. Em 2008, passa a ser oferecida pelo SUS (Sistema Único de Saúde)
2011
STF (Supremo Tribunal Federal) reconhece a união homoafetiva, um marco na luta pelos direitos LGBT
2018
STF decide que transexuais e transgêneros podem mudar seus nomes de registro civil sem necessidade de cirurgia
2019
STF enquadra a homofobia e a transfobia na lei de crimes de racismo até que o Congresso crie legislação própria sobre o tema
2020
STF declara inconstitucionais as normas que proíbem gays de doar sangue
Fonte: Livro Devassos no Paraíso - João Silvério Trevisan. Editora OBJETIVA (APUD- *Dhiego Maia - Folha de S. Paulo, 16.05.2020 - https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/ha-30-anos-oms-tirou-homossexualidade-de-catalogo-de-disturbios.shtml)
PARA SABER UM POUCO MAIS
LIVROS:
Bruno, BIMBI, O fim do armário; lésbicas, gays, bissexuais e trans no século XXI; Leandro COLLING (Org.), Stonewall 40 + o que no Brasil?; James N. GREEN, Além do carnaval; a homossexualidade masculina no Brasil do século XX; James N. GREEN et. al. História do movimento LGBT no Brasil; Miriam, GROSSI; Anna Paula et. al. Conjugalidades, parentalidades e identidades lésbicas, gays e travestis; Rafael M. Mérida JIMÉNEZ, (Org.) Manifiestos gays, lesbianos y queer; testimonios de uma lucha (1969-1994; Audre LORDE, Irmã Outsider; Luiz MOTT, O lesbianismo no Brasil; Camille PAGLIA, Mulheres livres, homens livres; sexo, género, feminismo; Paul B. PRECIADO, Manifesto contrassexual; REVISTA CULT 235. Os 40 anos do movimento LGBT no Brasil; o desejo de transformação e uma revolução política por fazer; Colins, SPENCER, Homossexualidade: uma história; Amilcar TORRÃO FILHO, Tríades galantes, fanchonos militantes; homossexuais que fizeram história; José Silvério TREVISAN, Devassos no Paraíso; a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade.
DOCUMENTÁRIOS:
Antes de Stonewall, de Greta Schiller (1985) – Amazon Prime
As Revoltas de Stonewall, de Kate Davis (2010) - Youtube
Vida e morte de Marsha P. Johnson, de David France (2017) - Netflix
FILME:
Stonewall – A luta pelo direito de amar, de Nigel Finch (1995) - Youtube
José Eduardo de Oliveira é licenciado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto. É autor de três livros, sendo o último "Bento Rodrigues: Trajetória e Tragédia de Um Distrito do Ouro", lançado em 2018.
2 Comentários
Excelente texto!!!!👏👏👏👏👏
ResponderExcluirÉ outro patamar. Parabéns.
ResponderExcluirObrigado por comentar!