Aleijadinho e os viajantes estrangeiros

Por José Eduardo de Oliveira

Para Elias Layon, o mestre

Congonhas, os profetas...as cúpulas brancas dos passos...Bíblia de pedra...
Profeta Abdias – Foto do Autor - 2014.

No anfiteatro de montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem

As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu

Bíblia de pedra sabão
Banhada no ouro das minas

Oswald de Andrade, PAU BRASIL, 1925

QUEM FORAM ESTES VIAJANTES ESTRANGEIROS?
Desde 1500 com o que ficou conhecido como “a descoberta do Brasil”, dezenas e dezenas, talvez centenas de estrangeiros visitaram e passearam ou pelo menos estiveram no Brasil e deixaram algum tipo de registro sobre essa terra tão paradisíaca e fabulosa. E rica.

Assim, como escrevi em meu opúsculo, “Bento Rodrigues: trajetória e tragédia de um distrito do ouro”,

“A partir do início do século XIX, mesmo o Brasil ainda vivendo dentro do estatuto colonial, um fato histórico de grande relevância iria trazer para o País e a Capitania de Minas uma novidade até então praticamente inconcebível nos quadros do Antigo Sistema Colonial português: a visita, porque não dizer a invasão de viajantes estrangeiros que iriam, como novos bandeirantes, devassar novamente o território das Minas, só que agora quase exangues do ouro aluvional e dos diamantes. O fato histórico que mudaria doravante o destino da Colônia ainda que de forma lenta, foi a fuga da família real para o Brasil e o seu estabelecimento no rio de Janeiro em 1808 e ‘a abertura dos portos às nações amigas’. Com uma canetada em 28 de janeiro de 1808, de fato o pacto colonial fora rompido e agora não só mercadorias e capitais circulariam livremente em todo o território, mas também homens e ideias – desde que tivessem autorização, por suposto.

Alguns destes novos ‘emboabas’ ou estrangeiros, que vieram d’além-mar, vieram de vários países, inclusive de Portugal e foram movidos por interesses diversos, mas todos possuíam em comum, a curiosidade, curiosidade principalmente, pela região menos conhecida que eram as Minas Gerais, e uns lugarzinhos que tinham certos nomes como Vila Rica, Distrito Diamantino, mina de Gongo Soco, Ouro Fino, Ouro Preto, Ouro Branco...

Dentre eles vieram comerciantes, naturalistas - não nos esqueçamos, alguns deles foram contemporâneos de Charles Darwin (1809-1882), que se não esteve em Minas, pelo menos esteve no Brasil (em 1832 e 1836) e não gostou muito -, cartógrafos, mineralogistas, comerciantes, religiosos, engenheiros, artistas ou aventureiros simplesmente. Outros provavelmente vieram apenas espionar. E todos escreveram uma ou inúmeras obras, como Auguste de Saint-Hilaire e Eschwege, sobre essa exótica e misteriosa paragem tão movediça, com uma, geologia, flora e uma fauna tão exuberantes, onde ainda tinha índios, escravos, riquezas e paradoxalmente, talvez por isso mesmo, muita pobreza e ignorância.” (OLIVEIRA, 2018, p. 18-9).

Mesmo hoje não é fácil contabilizar quantos desses viajantes estrangeiros estiveram aqui desde o ano de 1500 até ao século XX e que deixaram suas impressões eurocêntricas, diga-se de passagem, mas importantes, desde Pero Vaz de Caminha, e sua Carta. Esse corpo bibliográfico modernamente tem sido chamado de “xenobibliografia”. Apenas para se ter uma ideia aproximada, possuo aqui em minha biblioteca, 63 livros impressos desses relatos, fora os PDFs, que estes viajantes que estiveram no Brasil no século XIX escreveram - apenas uma mulher, Maria Graham -, sendo que 39 deles, mais da metade, escreveram ou registraram sobre Minas Gerais em livros de narrativas ou de ilustrações. E selecionei aqui 11 relatos oitocentistas, que registraram alguma coisa sobre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho ou os lugares religiosos onde ele deixou suas obras. Sem contar que outros tantos escreveram sobre estes viajantes estrangeiros ou usaram seus relatos e registros como fontes históricas e matérias de estudos em vastas áreas do conhecimento. E os que ainda não mereceram uma tradução.

Estes relatos que selecionei se referem a obras do Aleijadinho nas seguintes localidades mineiras: Congonhas (Eschwege, Freireyss, Luccock, Saint-Hilaire, Casal, Weech, Hasenclever, Burton, Wells); Sabará (Castelnau, Burton); Ouro Preto (Burton) e São João del Rei (Burton), onde estão localizadas a maioria de suas obras, atribuídas ou autenticadas como dele.

E é importante ressaltar que, o primeiro viajante estrangeiro a visitar Minas após 1808, foi o comerciante inglês John Mawe (1764-1829), em 1809, mas nada registrou sobre o Aleijadinho.

QUEM PRIMEIRO ESCREVEU SOBRE OS VIAJANTES?
Como sempre tenho que ressalvar o seguinte: quem já possui algum conhecimento desse escultor e arquiteto ouro-pretano, Antonio Francisco Lisboa - o Aleijadinho, provavelmente não encontrará neste relato grandes novidades e talvez até, diga: “Mais um que choveu no molhado neste assunto Aleijadinho.”.

De fato, não trago nada inédito, talvez apenas as citações na íntegra ou quase, do que escreveu cada viajante sobre esse escultor que de quando em quando retiramos de seu tumultuado descanso - desde 18 de novembro de 1814 -, sob o altar de Nossa Senhora da Boa Morte na Igreja Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias em Ouro Preto.

E pode ser que os que já sabem se lembrem novamente e os que não sabem tenham a curiosidade de aprender.

Mas quem primeiro escreveu sobre os viajantes que escreveram sobre o Aleijadinho durante o século XIX? Certeza absoluta neste assunto, ninguém tem, mas seguiremos algumas pistas. Apenas algumas porque elas são muitas do século XIX ao XXI.

Xavier da Veiga foi o fundador e primeiro diretor do Arquivo Público Mineiro
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Em 1897, José Pedro Xavier da Veiga (1846-1900) organizou e publicou em quatro volumes, uma das mais importantes obras sobre o passado e a História de Minas Gerais, “Ephemérides mineiras - 1664-1897.” No livro os fatos, eventos e documentos notáveis de nossa História são dispostos em uma cronologia, ou seja, em forma de efemérides através dos dias, meses, anos...

Assim, a data, 18 de novembro de 1814, é dedicada inteiramente ao “falecimento do ‘Aleijadinho’”, e além de trazer na íntegra, a primeira biografia de Aleijadinho, “Traços biographicos relativos ao finado Antonio Francisco Lisboa; distincto esculptor mineiro, mais conhecido pelo appellido de Aleijadinho.”, de Rodrigo José Ferreira Bretas (1815-1866), que havia sido publicada em 1858, trás a seguinte observação:

“...Quem há aí, na verdade, em toda a vastidão do território mineiro, que não tenha ouvido falar no Aleijadinho, o grande artista que delineou e esculpiu esplêndidos e extraordinários trabalhos em muitos dos antigos e melhores templos de nossa terra, que pode orgulhar-se, e orgulha-se efetivamente, de ter-lhe sido berço?...

Nem admira que a tradição ininterrupta circunde-lhe o nome de palmas imarcessíveis na voz glorificadora do povo, de cujo seio ele surgiu e em cujo anonimato viveria e morreria obscuro se as criações de seu talento artístico não lhe erguessem pedestal assaz elevado para assomar às vistas da posteridade. Não admira essa tradição popular, homenagem renovada de geração em geração, ditada pela justiça e que se vai dilatando com o tempo, quando já no primeiro quartel deste século e pouco depois da morte de Antônio Francisco Lisboa (o Aleijadinho) um viajante ilustre, estrangeiro e parcimonioso em louvores, reconhecia- lhe o mérito e registrava num dos seus livros esplêndidos as impressões recebidas à vista de trabalhos do distinto artista mineiro. E os trabalhos a que se referem as palavras de Saint-Hilaire que vamos citar são, por certo, dos menos perfeitos de quantos se devem à surpreendente habilidade do famoso escultor, que foi também arquiteto notável para o tempo e para o meio em que viveu.

Narrando a sua passagem por Congonhas do Campo, escreveu Saint-Hilaire: -‘Está visto que eu não deixaria Congonhas sem ir visitar a igreja de N. S. Bom Jesus de Matosinhos, que é, para esta região, como observa Luccock o que é para a Itália a N. Sª de Loreto. Essa igreja foi construída no cume de um morro, no meio de um terraço pavimentado de largas pedras e circundado por um muro de arrimo. Diante dela colocaram sobre os muros da escadaria e sobre os do terraço, estátuas de pedras representando os profetas. Essas estátuas não são obras primas, sem dúvida; mas observa-se no modo pelo qual foram esculpidas qualquer cousa de grandioso, o que prova no artista um talento natural muito pronunciado.’” (VEIGA, 1897, p. 229-30 – a ortografia foi atualizada e os grifos são meus).

É bom esclarecer que essa nota de Saint-Hilaire aparece no texto de Veiga no original em francês e mais abaixo quando falar dos viajantes voltarei a este estrangeiro e a este trecho.

Bom, infelizmente, antes de prosseguir, uma digressão:

Apesar de Rodrigo José Ferreira Bretas ter publicado em 1858 a biografia “Traços biographicos relativos ao finado Antonio Francisco Lisboa; distincto esculptor mineiro, mais conhecido pelo appellido de Aleijadinho.”, ela não era muito conhecida de muita gente boa, talvez porque tenha sido publicada num periódico ouro-pretano, “Correio Oficial de Minas” e os jornais são muitas vezes descartáveis. No entanto, como vimos, Xavier da Veiga, havia também publicado na íntegra em suas “Efemérides”, mesmo assim poucos a conheciam, aliás, poucos conheciam o Aleijadinho.

Pensa nessa situação. Em 19 de janeiro de1927, o genial poeta e ensaísta paulista, Mário de Andrade (1893-1945), escreve aflito para o poeta mineiro, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “Tenho um favor pra pedir pra você. Você vai fazer o impossível pra ver se me arranja aí um livro ou folheto sobre o ‘Aleijadinho’ dum fulano chamado Rodrigo José Ferreira Bretas, aparecido talvez por 1858...”. Carlos, rapidamente, que mineiro não perde o trem, faz o impossível e em 7 de fevereiro responde, que não era livro e nem folheto, mas um artigo de jornal publicado em 1858 e depois nas “Efemérides”, e como não encontrou nenhum exemplar para mandar, o itabirano, respondeu que “Mas pra que você não ficasse esperando, resolvi copiar o tal artigo na Biblioteca, e a cópia vai aí. É a lápis porque não tive tempo de passar a limpo.” Pode? (CARLOS & MÁRIO, 2002, p. 267-70). Assim, doravante, como veremos, todos passarão a citar o “fulano” Bretas.

Bretas autor da primeira e polêmica biografia do Aleijadinho
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E de volta à nossa picada, provavelmente, a segunda menção a um viajante que cita Aleijadinho, foi a que fez o poeta pernambucano, Manuel Bandeira (1886-1968) na Revista, “Ilustração Brasileira”, em Julho de 1928:

Foi um estrangeiro, Saint-Hilaire, quem primeiro, creio, chamou a atenção sobre ele, no seu livro de viagens pela Capitania das Minas Gerais. É que o grande naturalista, de passagem por Congonhas do Campo, teve ocasião de ver as estátuas dos profetas, doze estupendas figuras esculpidas em pedra sabão, dos poiais da escadaria do famoso templo do Senhor Bom Jesus, dominam a encosta que leva ao santuário, e as cenas dos Passos da Paixão, um total de sessenta e seis figuras de tamanho natural, talhadas em madeira, tudo obra de Antônio Francisco. Saint-Hilaire ficou surpreso de encontrar tamanho vigor aliado a tanta ciência de expressão em artista nascido e formado em sertão remoto, tão apartado dos centros de cultura.

Depois de Saint-Hilaire, só uma pessoa, que ao que me consta, ocupou-se de tão extraordinário artista, dando-se ao trabalho de indagações e pesquisas de primeira mão sobre a sua vida e obra. Foi o publicista mineiro Rodrigo José Ferreira Bretas...” (BANDEIRA,1928- a ortografia foi atualizada e os grifos são meus).

No mesmo ano, no dia 28 de outubro, Manuel Bandeira, escreveria um longo artigo sobre o mesmo viajante, só que agora exaltando-o, “O ‘nosso’ Saint-Hilaire”..., “Teve, porém, bastante sentimento plástico para se comover diante das rudes estátuas dos profetas de Congonhas do Campo. Pode-se dizer que foi ele que descobriu o Aleijadinho nessas páginas em que comentou as figuras que emprestam tanta grandiosidade ao adro do Santuário de Bom Jesus...” E repete a mesa citação anterior, só que agora traduzida e que veremos depois. (BANDEIRA,1928b).

Entretanto, no mesmo ano de 1928, Mário de Andrade escreveria, “O Aleijadinho - (1928)”, que ao que parece só seria publicado no ano seguinte, como, “Aleijadinho; posição histórica”, no “O Jornal” do Rio de Janeiro, do dia 24 de junho de 1929, em um “Número especial do Estado de Minas Gerais”.

Neste pequeno artigo, talvez o que é o mais paradigmático e importante, não só o que Mário de Andrade escreveu, mas de tudo do que foi escrito sobre o Aleijadinho, Mário, depois de ler Bretas, nos revela muita coisa inclusive sobre os viajantes estrangeiros e o escultor ouro-pretano:

“Pelo contrário, o Aleijadinho ainda está sem uma exegese completa. E os estrangeiros que nos visitaram, no geral se esqueceram dele, o que inda mais assusta a nossa timidez. Manuel Bandeira já se queixou disso, quando lembrou que foi Saint-Hilaire, o primeiro estranho ‘a se referir em letra impressa, ao Aleijadinho’. (...) - Ora, infelizmente os viajantes que se referem a Antônio Francisco Lisboa são duma desprezível insuficiência. Spix e Martius, nem pio. Rugendas, idem. Saint-Hilaire se refere a ele na ‘Voyage dans le District des Diamants’ [Viagem pelo Distrito dos Diamantes – que veremos abaixo], diz Manuel Bandeira. Mas na ‘Voyage dans les Provinces de Rio de Janeiro e Minas Gerais’, moita. No entanto passou duas semanas em Vila Rica, descreve bastante e pormenoriza as arquiteturas. (...) - Já o capitão Burton [Richard Burton que veremos abaixo], cuja universalidade de espírito é admirável, e cuja perfeição de observador mereceu os elogios de Tylor, a gente percebe que ficou muito preocupado com o Aleijadinho. Mas não o compreendeu minimamente, além de dar algumas ratas boas. (...). - Quem talvez milhor percebeu o valor do gênio, creio que foi Von Weech, no segundo escrito que publicou sobre o Brasil, a relação da viagem (NOTA DE M. de Andrade: Há um pequeno engano em Manuel Bandeira ao afirmar que Saint-Hilaire foi o primeiro estranho se referir ao Aleijadinho em livro. A obra citada de Saint-Hilaire é de 1833, ao passo que o livro de Von Weech foi publicado em 1831.). - É verdade que passando em Ouro Preto, elogia as fontes da cidade, distingue uma igreja sem janelas e do Aleijadinho e suas obras, nem pio. Mas diante dos profetas da escadaria de Congonhas, aos quais o protestante chama de apóstolos, percebe o homem. ‘As estátuas dos doze apóstolos, em tamanho natural e pedra-sabão, foram esculpidas por um homem sem mãos; embora não sejam obras-primas, os trabalhos deste curioso artista, completamente autodidata, trazem o cunho dum talento insigne’.” (ANDRADE, 1975, p. 28-30; ANDRADE, 1929 – ortografia original, grifos meus). Retornaremos a esta citação na hora adequada.

Mário de Andrade em sua casa - 1935- images.(IEB)/USP

E apenas para constar, Manuel Bandeira, juntamente com Mário de Andrade e vários estudiosos das coisas mineiras, também publicou no “O Jornal”, do dia 24 de junho de 1929, o texto, “De Villa Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos Estudantes”.

Neste interessante artigo ele cita os seguintes viajantes estrangeiros que foram a Ouro Preto: Mawe, Saint-Hilaire, Luccock, Rev. Walsh, Castelnau, Gardner e Burton. E não menciona que qualquer um deles tenha se referido a alguma obra do Aleijadinho na Cidade. Posteriormente, em 1938, Bandeira usaria parte deste artigo e de outros sobre o Aleijadinho em seu livro, “Guia de Ouro Preto”, que Guiomar de Grammont, menciona como “...o clássico Guia de Ouro Preto de Manuel Bandeira, em um gênero de turismo poético: saudade dessa Ouro Preto que parece nunca ter existido.” (BANDEIRA, 1928a; GRAMMONT, 2008, p. 177). Em tempo: Guiomar de Grammont, em seu livro, “O Aleijadinho e o aeroplano”, no primoroso capítulo, “O Aleijadinho dos viajantes e o Aleijadinho modernista”, nos apresenta os seguintes viajantes e os seus depoimentos sobre o Aleijadinho: Eschwege, Luccock, Saint-Hilaire, Weech, Castelnau e Burton (Idem, P. 130-186).

Em 1933, foi publicado um curioso livro, “O Aleijadinho de Villa Rica”, organizado por Gastão Penalva (1887-1944), que alguém sem ter lido, chamou de romance. Além de textos do próprio organizador ele também arrola, de forma inusitada, “Os Traços biográficos relativos ao Aleijadinho.”, de Bretas, o “Triunfo Eucarístico” de 1733 e o “Áureo Trono Episcopal”, de 1748. No livro também constam depoimentos de vários médicos sobre a doença ou as doenças do Aleijadinho, dentre os depoentes estão: Nicolau Ciancio, Floriano Lemos, Américo Valério, Agrippa Vasconcellos e Renê Laclette. E o mais interessante, duas citações do mesmo trecho também em francês, de Saint-Hilaire que outros autores já haviam feito sobre o Aleijadinho em Congonhas (PENALVA, 1933, P. 171 e 396).

Saint-Hilaire foi um dos mais importes estrangeiros que
visitaram Minas no século XIX -¬ images.fineartamerica

Em 1939, a questão dos viajantes estrangeiros reaparece em um artigo na então nova e promissora publicação, “Revista do Serviço Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”, escrito por Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990), “O primeiro depoimento estrangeiro sobre o Aleijadinho”.

No artigo, Franco, quer mostrar que Xavier da Veiga, em suas “Efemérides”, que citamos a cima e que serviu de referências para praticamente todos que escreveram sobre o Aleijadinho, equivocou-se em dizer que foi o primeiro, senão o único depoimento estrangeiro sobre o escultor tinha sido o de Saint-Hilaire, para ele, depois de citar trechos do livro de Eschwege, “Esta rápida passagem do francês se difundiu, com as ‘Efemérides’, e, para alguns representava o único depoimento que os viajantes estrangeiros nos legaram sobre o maior vulto da arte colonial brasileira. Respondendo a alguém que participava desta errônea convicção pude alinhar outras referências, coevas do mestre ou a ele posteriores, como as de Luccock, Burton e Castelnau, as quais mostram que a lenda e a obra do Aleijadinho não passaram tão despercebidas aos observadores estrangeiros das Minas. - Há pouco, porém, deparou-se-me um trecho de Eschwege, que creio ser o primeiro depoimento estrangeiro sobre o Aleijadinho. (...)” No livro, “Jornal” [Jornal do Brasil] - “Pois foi nele que encontrei a página alusiva a Antonio Francisco.” (...) “Assim fica fora de dúvida a precedência de Eschwege sobre todos, A sua viagem é de 1811, anterior às de Luccock e Saint-Hilaire, e o seu livro é de 1818, mais velho, também, do que as relações do inglês e do francês.”. (FRANCO, 1939, 173-4, 176- grifos meus).

E também, nesta mesma publicação, está o artigo da indispensável pesquisadora Judith Martins (1903-2000), “Apontamentos para a bibliografia de Antônio Francisco Lisboa.” Onde, obviamente após citar Afonso Arinos de Melo Franco, cita seis outros livros de viajantes estrangeiros que até então seriam os únicos que escreveram sobre o Aleijadinho durante o século XIX: W. C. von Eschwege, John Luccock, Friedrich von Weech, Auguste de Saint-Hilaire, Francis de Castelnau e Richard F. Burton. Todos eles em seus idiomas de seus países, ou seja, alemão, inglês e francês. (MARTINS, 1939, P. 139-205). Posteriormente, em 1977, ela publicaria o imprescindível, “Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais”.

Depois disso e na sequencia, inúmeros médicos e ou estudiosos das doenças do Aleijadinho irão se valer sobejamente dos relatos desses viajantes para fazer seus diagnósticos retrospectivos sobre que teria causado a deformação ou as deformações de nosso Aleijadinho, dentre eles: René Laclette, “O Aleijadinho e suas doenças”; Alípio Corrêa Netto, “A doença do Aleijadinho”; Tancredo Furtado, “O Aleijadinho e a medicina” e Geraldo Barroso Carvalho, “Doenças e mistérios do mestre Aleijadinho”. Ressaltando que, José Marianno Filho (1881-1946), médico e historiador da arte, em seu livro “Antonio Francisco Lisboa”, nos deixou um dos mais completos estudos sobre os viajantes estrangeiros no capítulo “A lenda de que o Aleijadinho era maneta ou paralítico das mãos.” (MARIANNO FILHO, 1945, 41-53).

Para encerrar esta parte, citarei três “viajantes estrangeiros” do século XX, dentre os mais de uma centena que escreveram sobre o Aleijadinho e os viajantes estrangeiros.

Bury um dos primeiros viajantes estrangeiros do
século XX a citar Aleijadinho - Foto de 1991 – (BURY, 2006)

O primeiro deles, o britânico John Bury (1917-2017), morou no Brasil de 1947 a 1949 e visitou Minas inúmeras vezes, o que resultou de diversos trabalhos sobre arte, arquitetura e o Aleijadinho, sobretudo em dois artigos “O Aleijadinho” e “Os doze profetas de Congonhas do Campo”, ambos de 1949, do livro, “Arquitetura e arte no Brasil colonial”, onde nos relata resumidamente, que:

“As primeiras descrições impressas de Congonhas do Campo e sua igreja figuram nas publicações dos livros de viagem dos visitantes europeus que excursionaram por Minas Gerais no século XIX. O Barão von Eschwege visitou Congonhas em 1811, precedendo Auguste de Saint-Hilaire e John Luccock, em 1818, Friedrich von Weech, em 1827 e Sir Richard Burton, em 1867. Os mesmos temas se repetem em todas as referências desses viajantes aos doze profetas. Primeiro, seu escultor tinha as mãos deformadas. Segundo, tratava-se de um ‘primitivo’. Terceiro, os elogios à obra são um tanto reticentes, pois, ao que tudo indica, os visitantes não conseguiam acreditar que obras de arte genuínas pudessem existir num local tão remoto e rústico. Saint-Hilaire e Von Weech tiveram o cuidado de proteger-se da possível zombaria de seus leitores novecentistas, destacando que ‘essas estátuas não são obras-primas’.” (BURY, 2006, P. 39 – grifos meus)

O segundo “viajante estrangeiro” do século XX é o francês Germain Bazin (1901-1990), historiador da arte que esteve no Brasil e também em Minas Gerais na década de 40 e escreveu dois livros fundamentais sobre nossa arquitetura e escultura, “A arquitetura religiosa barroca no Brasil” (1956) e “O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil”, (1963), onde nos apresenta um esquema, baseado em José Marianno Filho, em ordem cronológica dos viajantes e suas impressões sobre o Aleijadinho:

“Em 1811 - Wilhelm Eschwege: ‘Ele tinha as mãos paralisadas e era preciso que lhe prendessem o cinzel’.

Entre 1808 e 1811 - John Luccock: ‘Ele não tinha mais mão e era preciso prender o martelo e o cinzel no seu punho’.

Em 1818 - A. de Saint-Hilaire: ‘Ele perdeu o uso das extremidades e fazia-se amarrar os ferros à extremidades do antebraço.’

Em 1831 - Friedrich von Weech: ‘As estátuas de Congonhas foram esculpidas por um homem sem mãos’.

Em 1850 - Francis de Castelnau: ‘A porta da igreja principal de Sabará foi executada por um homem sem mãos’.

Em 1868 - Richard Francis Burton: ‘As esculturas de S. Francisco de Assis, de S. João del Rei, são frutos da habilidade manual de um homem que não tinha mãos’.” (BAZIN, 1971, P. 105 – grifos meus)

O terceiro é o norte-americano, Robert C. Smith (1912-1975), dos três é o que provavelmente o que mais escreveu sobre a arte e a arquitetura colonial brasileira desde 1937 quando veio ao Brasil pela primeira vez.

Em um de seus últimos livros, “Congonhas do Campo” (1973), Smith também nos deixa uma síntese da avalição que os viajantes fizeram das obras do Aleijadinho em Congonhas:

“Logo começaram a aparecer descrições das estátuas dos profetas e das figuras das capelas, feitas por viajantes estrangeiros, sendo estas as únicas notas críticas que receberam durante a primeira metade do século XIX. - A primeira foi escrita pelo Barão Wilhelm Ludwig von Eschwege, que visitou Congonhas em 1811 e registrou o início das capelas votivas. Por outro lado, as estátuas de pedra-sabão, que Eschwege chamou erradamente de “santos”, estavam todas prontas. Estas provocaram nele o comentário, típico do neoclassicismo corrente, de serem ‘de mau gosto e desproporcionadas’. John Luccock, um inglês que viu Congonhas em 1818, teve opinião diferente das ‘doze estátuas, de cerca de oito pés de altura, que pretendem representar os profetas da Igreja Israelita’. Achou-os ‘bem realizados, seus trajes apropriados, suas atitudes variadas...’ Auguste de Saint-Hilaire, que esteve em Congonhas no mesmo ano, encontrou apenas uma das capelas inteiramente terminada. As estátuas dos profetas, declarou, ‘não são certamente obras-primas, mas sente-se nelas uma liberdade de tratamento que demonstra ter o escultor uma boa dose de talento’. - Estes pensamentos encontraram eco no bávaro J. Friedrich von Weech, que viajou pelo Brasil em 1823 e 1827. As estátuas dos profetas do Aleijadinho, que chamou por engano de ‘os doze apóstolos’, apresentam sinais, considerou, ‘de um talento extraordinário’. Em 1869, Sir Richard Francis Burton, que, como Luccock, denominou Congonhas ‘a Loretto brasileira’, publicou um relato um tanto condescendente das ‘doze gigantescas figuras dos quatro profetas maiores; vários dos doze qualificados arbitrariamente como menores não estando presentes’.” (SMITH, 1973, P. 16 – grifos meus) Ao final deste livro existe uma coisa interessante e curiosa: os textos ou fragmentos dos textos destes viajantes aparecem não traduzidos, ou seja, em alemão, francês e inglês.

OS VIAJANTES ESTRANGEIROS E O ALEIJADINHO
Agora, e até que enfim, trarei aqui os relatos, ou fragmentos dos relatos que os viajantes do século XIX em Minas nos deixaram. Seus relatos se referem a obras do Aleijadinho nas seguintes localidades mineiras: Congonhas (Eschwege, Freireyss, Luccock, Saint-Hilaire, Casal, Weech, Hasenclever, Burton, Wells); Sabará (Castelnau, Burton); Ouro Preto (Burton) e São João del Rei (Burton), onde estão localizadas a maioria de suas obras, atribuídas ou autenticadas como deles.

Aparecerão, dentro do possível, de acordo com a data em que estiveram em Minas, porque a data de publicação de seus livros às vezes demoravam décadas. Como veremos, com exceção de Friedrich von Weech todos os outros autores já foram traduzidos no Brasil.

E como nove dos onze viajantes passaram por Congonhas, que aparece aqui também como Congonhas do Campo, e nem todo mundo sabe se isso é só um chá ou é uma cidade, farei aqui um breve relato de suas origens. Breve mesmo.

O português e minerador na região do povoado de Congonhas do Campo, Feliciano Mendes, havia prometido que se curasse de uma grave enfermidade que o acometeu, construiria um templo em louvor ao Senhor Bom Jesus do Matosinhos. Curado, em 1757, deu início ao cumprimento de sua promessa iniciando a construção de um orago que em breve se transformaria no Santuário Senhor Bom Jesus do Matosinhos, atraindo romeiros de todos os lugares da Capitania de Minas. Assim para concluir a construção da igreja e do santuário vieram artistas consagrados de todas as vilas mineiras, até que de 1796 a 1799, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho de Vila Rica (atual Ouro Preto), executaria as figuras das Capelas dos Passos da Paixão em cedro e depois, de 1800 a 1805, na fatura dos 12 profetas em pedra-sabão. Ele já havia se consagrado como arquiteto e escultor em Vila Rica, São João del Rei, Sabará etc., e agora executaria suas últimas obras-primas naquele santuário. É importante ressaltar que os profetas ficaram prontos em 1805, e as figuras dos passos em 1799, no entanto se as capelas onde seriam colocados os passos da paixão de Cristo, começaram a ser construídas neste mesmo ano, só seriam totalmente terminadas na segunda metade do século XIX. (OLIVEIRA, 1984, P. 28)

WILHELM LUDWIG VON ESCHWEGE
O primeiro viajante estrangeiro que passou por Congonhas em 1811 e deixou seu depoimento sobre o Aleijadinho foi o “alemão”, Wilhelm Ludwig von Eschwege (1777-1855), conhecido como Barão de Eschwege, era engenheiro, geólogo, mineralogista dentre outras coisas. Permaneceu no Brasil, sobretudo em Minas, de 1810 a 1821 e escreveu mais de 20 obras sobre essa terra. A que cita o nosso escultor e entalhador é, “Jornal do Brasil, 1811-1817; ou relatos do Brasil, coletados durante expedições científicas”. E só para aumentar a curiosidade de uns e outros, esteve na região da Galena, perto de um lugar chamado “os Patos”, bem no oeste de Minas, onde foi malsucedido em uma extração de chumbo e prata.

Jornal do Brasil, primeiro livro de um viajante
onde Aleijadinho é citado. Foto do Autor.

Este livro, “Jornal do Brasil” foi publicado na cidade de Weimar na futura Alemanha em 1818, entretanto, só foi traduzido na íntegra em 2002.

1811
“Congonhas fica a 1 légua de Redondo, e o caminho até lá é bom. Chega-se primeiro à Igreja do Nosso Senhor do Matosinho, erigida no planalto acima de Congonhas, famosa em toda a região pela imagem milagrosa de Nossa. (Nota dos Editores: No original está Nossa Senhora do Matosinho, retificado na corrigenda de 1824 para Nosso Senhor; a imagem milagrosa é do Senhor Morto) Muitas doações, presentes e esmolas tornaram a igreja muito rica, e grandes somas são gastas em sua ornamentação. Ela é simples e limpa, escadaria da entrada principal é ornada com muitas estátuas de santos, (Nota dos Editores: Na realidade, são os famosos profetas esculpidos por Aleijadinho) esculpidas em pedra em tamanho natural. Tem em sua volta um adro calçado com pedras de cantaria. Atrás da igreja tem um gracioso jardim florido, também enfeitado com estátuas, e repuxos e cactos muito crescidos. Existe um plano, cuja execução já foi iniciada, de representar a Paixão de Cristo em esculturas de tamanho natural, em forma escalonada. - Ao lado da igreja fica um prédio comprido, destinado aos romeiros, que se reúnem aos pés de Nosso Senhor. Os presbíteros da igreja oferecem nesse dia um banquete. - Todas as estátuas foram esculpidas em pedra-sabão, que se encontra na vizinhança em grandes quantidades. O mais hábil escultor que aqui se distinguiu é um homem aleijado, de mãos estropiadas. Amarram-lhe o cinzel nas mãos, e assim ele executa as obras mais artísticas. Só que, de vez em quando, as esculturas e as suas vestimentas parecem desproporcionais e de mau gosto. Porém, não se deve menosprezar o grande talento de um homem que se formou por si próprio e nada viu.” (ESCHWEGE, 2002, P. 255)

GEORG WILHELM FREIREYSS
Georg Wilhelm Freireyss (1789-1825), este viajante alemão foi o que chamavam e ainda chamam de “naturalista”, ou estudante da flora e da fauna de alguma região. Em 1814 inicia sua viagem para Minas, onde percorre regiões de mineração de ouro e diamantes, e além de descrever a flora e a fauna de Minas, descreve meio que perplexo uma região que convivia com índios e a escravidão. De sua viagem de 1814 a 1815, resultou o livro, “Viagem ao interior do Brasil”. Em agosto de 1814, passa por Congonhas e seu breve relato do lugar, não diferencia de outras localidades por onde passou. Seu livro foi publicado em 1824.

1814
“Antes de Congonhas do Campo chegamos à igreja de Nosso Senhor de Matozinhos, que dizem fazer milagres admiráveis e a quem todos os portugueses de Minas trazem as suas promessas em produtos tristíssimos. Diante da entrada para esta igreja, que se acha num morro, estão os doze apóstolos em tamanho natural.” [Nota e grifos meus: Chama os profetas de apóstolos.] (FREIREYSS, 1982, P. 42)

MANUEL AIRES DE CASAL
O viajante português Padre Manuel Aires de Casal (1754?-1821?), com o seu livro “Corografia Brasílica ou Relação Histórico-Geográfica do Reino do Brasil”, publicado em 1817, deixou um verdadeiro “tratado”, ou uma verdadeira enciclopédia “histórico-geográfica” do Brasil até 1817. Não é possível dizer quando esteve em Congonhas, mas foi antes de 1817, data da publicação do livro no Rio de Janeiro.

1817
“Quatro léguas ao noroeste de Queluz está a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Congonhas do Campo, situada junto ao rio do mesmo nome, da outra banda do qual fica a magnífica Capela do Senhor de Bom Jesus de Matozinhos, sobre um monte, em cuja subida há vários passos da paixão do Salvador em figuras de pedra sabão, [Nota minha, os passos são de cedro, de pedra-sabão são os profetas. Grifos meus] com assentos para diminuir a fadiga, e fonte para recrear a vista, e refrigerar a sede dos romeiros.” (CASAL, 1976, P. 173)

JOHN LUCCOCK
O viajante e comerciante inglês, John Luccock (1770-1826), foi um dos primeiros a aproveitar a “Abertura dos Portos” em 1808 e viajou para o Brasil e foi também um dos primeiros a visitar Minas, entre os anos de 1808 a 1818, em 1820 publicou em Londres o livro “Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil”, que só seria traduzido pela primeira vez no Brasil em 1942.

1818
Caancunha, [ou Congonhas] situada sobre as íngremes barrancas do rio, apresenta agradável aspecto, quando contemplada pelo norte. Contém cerca de duzentas casas e algumas igrejas. Uma delas, posto que diminuta em tamanho, rivaliza por seus esplêndidos ornatos com os mais admirados dos edifícios eclesiásticos do Brasil. Constituiu ela o objetivo principal da minha visita à localidade, ocupando-me quase a totalidade da permanência ali. Sob mais de um ponto-de-vista, merece considerar-se como a Loretto deste país. [citado, como veremos, por SAINT-HILAIRE, p. 92] - Não pelo exterior que essa igreja faz jus a tais pretensões, enquanto digna seja sua aparência. A pedra usada em sua construção é dura, de contextura xistosa e colorido esverdeado e as massas que compõem as paredes e pavimentos, grandes e bem talhadas. Situada que fica no cume de elevação considerável, forma-lhe o acesso um lance duplo de amplos degraus, que convergem num patamar ligado a espaçosa área calçada, por cuja frente corre um belo balaústre de pedra. No interior da área acham-se doze estátuas, de cerca de oito pés de altura, que pretendem representar os Profetas da Igreja Judaica. São bem esculpidos, com trajes adequados e atitudes variadas, trazendo cada qual uma folha enrolada em que está gravada em latim e com caracteres antigos uma passagem notável de seus próprios escritos. Dizem ser obra de um artista que não tinha mãos, sendo o martelo e o cinzel fixados em seus pulsos por um ajudante e dessa maneira executados os mais delicados trabalhos. Há uma circunstância que de certo modo faz mais crível essa história, a saber, o fato de serem essas estátuas feitas com uma pedra saponácea muito mole que abunda nas pedreiras das cercanias e parece endurecer com a exposição ao ar.” (LUCCOCK, 1975, P. 346 - grifos meus)

AUGUSTE DE SAINT-HILAIRE


Os 12 profetas, a mesma visão que teve
Saint-Hilaire e os outros - Foto do Autor - 2018

Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), foi um viajante francês que ficou no Brasil de 1816 a 1822. Aqui percorreu os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás, São Paulo, dentre outros. E foi por assim dizer, um naturalista completo. Além de estudar, descrever e catalogar a fauna, a flora, os acidentes geográficos e o reino mineral, Saint-Hilaire, nos seus inúmeros livros, não se descuidou das obras humanas, onde fez o mesmo com a agricultura, pecuárias, “as belas artes”, as instituições e a sociedade mineira.

No mesmo ano que chega ao Brasil, 1816, parte para Minas, onde viaja praticamente por todas as comarcas inclusive pelo Triângulo Mineiro. Mas será em um de seus livros, que aliás, muitos pensavam ser o primeiro e único a citar o Aleijadinho, “Viagem Pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil”, é que narra sua visita Congonhas, escrito em 1818, mas somente publicado em 1833, e seguramente atualizado, onde inclusive como veremos, cita o inglês John Luccock.

1818
“Está visto que eu não deixaria Congonhas sem ir visitar a igreja de N. S. Bom Jesus de Matosinhos, que é, para esta região. como observa Luccock (Nota de Saint-Hilaire: “Notas sobre o Rio de Janeiro...” p. 346.) o que é para a Itália a N. Sª de Loreto. Essa igreja foi construída no cume de um morro, no meio de um terraço pavimentado de largas pedras e circundado por um muro de arrimo. Diante dela colocaram sobre os muros da escadaria e sobre os do terraço, estátuas de pedras representando os profetas. (Nota de Saint-Hilaire: O Sr. Eschwege acha que a pedra com que foram feitas essas estátuas seja a esteatita. Luccock dissera, antes de mim, que elas representavam os profetas, sendo que Pizarro pretende que elas representam cenas da paixão.) Essas estátuas não são obras primas, sem dúvida; mas observa-se no modo pelo qual foram esculpidas qualquer cousa de grandioso, o que prova no artista um talento natural muito pronunciado. Elas são devidas a um homem que residia em Vila Rica e que demonstrou desde sua infância, uma grande vocação pela escultura. Muito jovem ainda, disseram-me, ele resolveu tomar não sei que espécie de bebida, com a intenção de dar mais vivacidade e elevação a seu espírito; mas perdeu o uso de suas extremidades. Entretanto prosseguiu no exercício de sua arte; ele fazia prender as ferramentas na extremidade do antebraço e foi assim que fez as estátuas da igreja de Matosinhos. (...) - Quando de minha viagem tencionavam construir um pouco abaixo da igreja de Matosinhos, na vertente do morro em que ela se acha, sete capelas representando os principais mistérios da paixão de Jesus Cristo. Três dessas capelas haviam, já sido construídas; são quadradas e terminam por um pequeno zimbório cercado por uma balaustrada. No começo de 1818 apenas uma delas estava terminada internamente e aí se via a cena representada por imagens de madeira, pintadas, e de tamanho natural. Essas imagens são muito mal feitas; mas, como são obra de um homem da região, que nunca viajou e nunca teve um modelo com que se guiasse, elas devem ser julgadas com certa indulgência.” (SAINT-HILAIRE, 1974, P. 92)

Para Saint-Hilaire, “Essas imagens são muito mal feitas”
Foto do Autor - 2013

FRIEDRICH VON WEECH
Joseph Friedrich von Weech (1792-1837), este viajante alemão veio para o Brasil para ser agricultor, mas não foi bem sucedido, entretanto, escreveu dois livros, e o que nos interessa aqui e que “cita” o Aleijadinho é, Reise über England und Portugal nach Brasilien und den vereigten Staaten des La-Plata-Stromes während den Jahren 1823 bis 1827, em três volumes, publicado na Alemanha em 1831 e que, até ontem de tarde, ainda não havia sido traduzido para nós.

Parece que o primeiro a citá-lo, como vimos supra, foi Mário de Andrade, em seu, “O Aleijadinho - (1928)”, onde todos beberam e ainda bebem:

“As estátuas dos doze apóstolos, em tamanho natural e pedra-sabão, foram esculpidas por um homem sem mãos; embora não sejam obras-primas, os trabalhos deste curioso artista, completamente autodidata, trazem o cunho dum talento insigne”. (WEECH, 1831, p. 191) [Nota e grifos meus: Também chama os profetas de apóstolos…]

RAIMUNDO JOSE DA CUNHA DE MATOS
O português, Raimundo Jose da Cunha de Matos (1776-1839), veio para o Brasil em 1817 como militar a serviço do governo Imperial. Em 1823, foi nomeado governador de Goiás, quando escreve “Itinerário do Rio de Janeiro a Goiás”. E mais tarde, em 1837, escreveu sua principal obra “Corografia histórica da Província de Minas Gerais”

1837
“IGREJAS FILIAIS DE CONGONHAS DO CAMPO - Capela do Bom Jesus de Matozinhos, fundada por Feliciano Mendes no ano de 1759, com licença régia de 9 de janeiro de 1758. É templo pequeno, mas bem construído no alto de um monte em cuja subida existem vários passos da paixão de Jesus Cristo, representados em elegantes estátuas feitas de pedra saponácia. Esta capela fica fronteira ao Arraial de Congonhas.” (MATOS, 1981, P. 136)

ERNEST HASENCLEVER
Ernest Hasenclever (1814-1869), foi um comerciante alemão que morou e trabalhou no Rio de Janeiro de 1837 a 1844. E da viagem que fez do Rio de Janeiro a Minas Gerais de julho a outubro de 1839, nos deixou alguns cadernos de relatos, que resultaram neste livro, “Viagem às províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais”. O notável é que pela primeira vez em um relato sobre Congonhas aparece o dia, o mês e o ano. E o mais interessante que este autor só agora foi publicado e diretamente traduzido do manuscrito em alemão. Ele também era desenhista, pena que ele como tantos artistas que passaram por Minas não deixaram um só rascunho especificamente e identificando como obras do Aleijadinho...

1839
“3 de outubro de 1839 - Contudo o dia amanheceu claro e, após alguns preparativos e uma despedida calorosa de meus novos amigos, segui meu caminho para Congonhas do Campo, onde queria fazer meu primeiro pernoite. (...)- Perto de Congonhas armou-se de novo um temporal que me fez apressar o passo, embora ressaltasse no morro as belas igrejas brancas e suas torres contra o fundo escuro. A alguma distância do arraial precisamos atravessar diversas vezes o rio Congonhas, que estava muito cheio e nos fez perder tanto tempo que, como as bruxas de Macbeth, chegamos em nossa estalagem sob relâmpagos, trovões e chuva torrencial. Congonhas do Campo é um arraial bem bonito, mas as ruas são incomodamente íngremes e o calçamento péssimo. O lugar merece seu nome, pois não é possível imaginar uma paisagem mais perfeita de uma região de campos como aquela de Congonhas. Sua localização na encosta do morro tem a vantagem de permitir que se possa avistar dali toda a região. Além do colégio, o arraial tem ainda a qualidade de oferecer uma boa taberna, o que é realmente muito oportuno para uma região mineradora. A igreja principal (Nota dos Editores: Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, erguida em 1757) é famosa e, durante um mês ao ano, torna-se o local de romaria mais famoso no Brasil. Defronte dessa igreja estão bem colocados os 12 apóstolos, (Nota da Organizadora: Trata-se dos 12 profetas, esculturas em pedra sabão, realizadas entre 1795 e 1805 por Antônio Francisco). [Na verdade, como já vimos, os profetas foram esculpidos entre 1800 e 1805 e as figuras dos passos de 1796-1799] entalhados em pedra, em tamanho maior que o real, e tão bonitos que podem ser considerados uma obra notável no Brasil, ainda mais que foram esculpidas por um brasileiro. É um verdadeiro prazer ouvir com quanto orgulho os cidadãos falam sobre o seu tesouro. (HASENCLEVER, 2015, P. 205-7 - grifos meus)

Profeta Daniel – Hasenclever achou os profetas bonitos
Foto do Autor - 2013

FRANCIS CASTELNAU
Talvez por uma daquelas ironias do destino, apesar do nome, Francis Castelnau (1810-1880), este naturalista nasceu em Londres, mas acabaria escrevendo seus livros em francês. E o que nos interessa aqui é “Expedição às regiões centrais da América do Sul”, publicado em 1850. Depois de chegar ao Rio de Janeiro em 1843, viaja para Minas e posteriormente em outras províncias brasileiras e outros países da América do Sul. Seu relato, como veremos se destaca por seu “depoimento” sobre o Aleijadinho não em Congonhas como os anteriores, mas em Sabará.

Aqui sem querer querendo, cabe um comentário, que também de certa forma foi feito sobre os passos e os profetas de Congonhas. Que “esculturas indígenas” seriam essas na Igreja carmelitana da Cidade? Provavelmente, pelo “olhar preconceituoso” do apressado viajante, pelo lusco-fusco da luz do lampião e pelo formato barroco das esculturas, poderia até se tratar dos atlantes que sustentam o coro de ambos os lados da nave e que são atribuídos a Aleijadinho e executados entre 1781 e 1783. Ou nestes termos, poderia incluir aí, São Simão Stock e São João da Cruz da mesma época? (JARDIM, Márcio, 2006, P. 90-1; 96.)


Atlantes - Imagens – Aleijadinho por Elias Layon - https://aleijadinho.com/aleijadinho-acervos-publicos/


São João da Cruz e São Simão Stoc - Imagens – Aleijadinho por Elias Layon

1843
A 27 [de dezembro de 1843] (...) “A cidade de Sabará, da primeira à última casa, tem quase uma légua de comprimento, com uma população de cerca de 4.500 almas. Visitamos a principal Igreja da cidade [Nossa Senhora do Carmo]. Ornam-lhe a portada, por fora e em cima, boas esculturas feitas por um homem aleijado. O interior, que só nos foi possível ver à luz do lampião, é enfeitado de pinturas e esculturas indígenas, muitas das quais não fariam má figura numa igreja europeia. Várias igrejas inacabadas veem-se esparsas nas praças da cidade.” (CASTELNAU, 2000, P. 105-6 - grifos meus)

Igreja N. S. do Carmo de Sabará - Foto do Autor - 2015

RICHARD BURTON
Sir Richard Francis Burton (1821-1890), não foi botânico, nem zoólogo, nem mineralogista, nem médico, nem engenheiro. Este inglês, sim foi um explorador das antigas, viajante de verdade e antes de viajar e percorrer o Brasil, como diplomata, estivera na Índia, como militar, na Arábia (foi um dos primeiros ocidentais a peregrinar por Meca), Egito e inúmeros lugares da África - onde junto com John Speke (1827-1864), descobriu as nascentes do Nilo -, Estados Unidos, Brasil e Paraguai, Uruguai, Argentina e Peru. E não resisti e indico, o espetacular filme “As montanhas da Lua”, dirigido por Bob Rafelson (1990), sobre o episódio da descoberta das nascentes do Nilo.

Poliglota, tradutor e autor de vários livros. Sobre o Brasil, onde em 1867, percorreu mais de 2.000 quilômetros, escreveu “Exploration of the highlands of the Brazil”, publicado na Inglaterra em 1869 e traduzido aqui em dois volumes: “Viagem de canoa de Sabará ao oceano Atlântico” e “Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho”, sobre sua viagem em praticamente todas as vilas do ouro e depois de canoa até o oceano Atlântico descendo o Rio São Francisco. Neste último é que, Burton, de todos os viajantes foi o que mais comentou sobre o Aleijadinho, inclusive nomeando-o como tal, além de descrever suas obras em São João del Rei, Congonhas, Ouro Preto e Sabará. Preparem-se para a viagem, será longa, mas prazerosa:

1867
São João del Rei:
“Já que estamos na iminência de visitar a igreja mais famosa de São João, se não de Minas Gerais, será aconselhável uma ligeira digressão sobre a arquitetura eclesiástica nessa parte do Brasil. (...) O estilo, em sua maior parte introduzido pelos jesuítas, é pesado e desgracioso; tenta combinar as linhas verticais do gótico com a linha horizontal da arquitetura clássica, e falha visivelmente. (...)

A Igreja da Ordem Terceira de São Francisco (...) O templo está construído na parte mais alta da praça, e uma bela escadaria de pedra conduz ao adro ou plataforma. Há um chafariz de duas bocas, alimentado por água vinda das montanhas do sul da cidade, e a simetria exige um chafariz correspondente do outro lado. O Cemitério da Irmandade fica atrás da igreja, e um modesto Hospício dos Irmãos da Terra Santa destoa um tanto do conjunto.

Igreja São Francisco de Assis, Burton não gostou...
Foto do Autor - 2019

Tem-se dito que o escultor da Igreja de São Francisco não usava régua, mas compasso; não há uma única linha reta, a não ser a vertical; o formato escolhido foi o oval, a divisão é em naves e mesmo os telhados são curvos. As dimensões são 53 metros por 14, e a alvenaria é tão sólida que as paredes sustentam os degraus do púlpito, que têm cerca de 70 centímetros de largura. Uma inscrição sobre a porta principal dá a data da inauguração, 1774. A tradição local conta que a igreja foi construída sobre uma humilde capela (...) A fachada tem duas janelas, o frontão é encimado pela cruz grega de dois braços, ou cruz do Sepulcro, e o tímpano apresenta Jesus Crucificado, São Francisco recebendo os Estigmas e alguns acompanhamentos. Sobre a entrada principal, estão os instrumentos da Paixão e os ‘braços’, literal e metaforicamente, do Orago ou Santo Padroeiro; a pirâmide sustenta uma Nossa Sra. da Conceição com nuvens de pedra, entre querubins gorduchos (...)

O material de construção é excelente, uma bela esteatita azulada e, às vezes, de um verde maçã, que, quando são raros os fragmentos de ferro octaédrico, recebe um belo polimento. A escultura faz lembrar os trabalhos em madeira, com laboriosíssimos altos-relevos; é o trabalho - Hibernice - de um homem sem mão, cujas obras encontraremos espalhadas em toda aquela parte da Província. Esse homem é, geralmente, conhecido como o Aleijado ou Aleijadinho; (Nota de Burton: O Aleijadinho era, segundo acredito, o apelido de um pintor, José Gonçalves, que viveu no Rio de Janeiro...Há uma biografia desse artista, mas não consegui encontrá-la.) [Seria a biografia escrita por Bretas em 1858?] alguns o chamam de O Inacinho, outros de Antônio Francisco. Seu trabalho foi feito com as ferramentas amarradas por um ajudante aos cotos que representavam os braços, e seu caso não é o único de surpreendente atividade de um tronco de homem ou de mulher. Prova-o a falecida Miss Biffin. (...). (p. 115-117)

O fim de nossa peregrinação foi a Igreja de Nossa Sra. do Carmo, administrada pela Ordem Terceira daquela padroeira; seus principais benfeitores eram o Barão do Itambé e o falecido João da Silva Pereira Gomes. Os ornamentos da fachada, de esteatita cortada, com iniciais caprichosas e os querubins do Aleijadinho, as torres redondas-quadradas com pilares compósitos e os consolos e colunas internas são como as de São Francisco. (p. 123)

Congonhas do Campo:
“Mas de 11 a 14 de setembro, Congonhas tem a sua Romaria, ou peregrinação. Cerca de 7.000 pessoas, então, hospedam-se nas casas que ficam vazias o resto do ano, e os donativos de muitas moedas de cobre e algumas notas elevam-se a cerca de £ 2.000 por ano, o que aqui equivale a £20.000. A Irmandade de Bom Jesus de Matosinhos distribui as esmolas entre os habitantes da povoação santificada. (...) o Rev. Padre Antônio José da Costa, (...) pegando a sua penca de chaves, tratou de nos mostrar as curiosidades.

Começamos pelo princípio. A íngreme e mal pavimentada calçada que havíamos descido na véspera tem ‘um ramo à sua direita; este coloca o visitante na base de uma alta colina, em cujo tope situa-se o Santuário, em linda posição. Em frente, fica a igreja; à direita ou oeste, fica uma longa fila de casas de dois pavimentos, brancas na parte de cima e amarelas-ocre na de baixo. O terceiro lado, o oriental, da praça da colina é formado por casas mais pobres, de “porta e janela”, pousos dos romeiros. (p.153)

Subindo a colina exemplo típico, presumo, do “caminho áspero e estreito” - e cortando a praça pelo meio, há uma avenida de construções anãs, chamadas os Sete Passos. Os dois mais baixos são antigos, o par seguinte é modesto e os três outros ainda serão construídos, quando forem suficientes as contribuições dos piedosos: estas últimas contêm duas dos quatorze normais “passos de Roma”, e, quando terminadas (...)

Burton não gostou da Última Ceia...- Foto do Autor – 2019

Os oratórios são pequenas capelinhas baixas, de alvenaria, caiadas de branco com arremates nos quatro cantos e encimados por pequenas cúpulas de ‘meia laranja’. Não têm janelas, mas uma simples porta (...). O inferior, de número 7, não tem inscrição e representa a Última Ceia. Estátuas de madeira, em sua maior parte simples máscaras, sem entranhas nem espinha dorsal, vestidas como o turco tradicional do Mediterrâneo cristão, estão sentadas em torno de uma mesa, ricamente provida de bules de chá (ou mate), copos, bebidas e travessas. Nosso Senhor está dizendo: ‘Um de vós me trairá’. Todos olham com expressão de horror e surpresa, exceto Judas, que está sentado perto da porta, hediondo no aspecto e mostrando tão pouco cuidado em disfarçar sua vilania quanto Iago nos palcos ingleses. Minha mulher, [Isabel Burton (1831-1896)] seguindo o costume do lugar, tirou a faca do prato de Judas e cravou-a em seu olho, ou melhor no profundo corte que atravessa seu osso malar, e ainda lhe golpeou o ombro. Pobre Judas, que, de acordo com os princípios israelitas, devidamente aplicados, merece a gratidão afeiçoada da Raça Redimida!

O passo seguinte, a Agonia no Horto, apresenta uma inscrição peculiar, que se supõe, não sei por que mistério, ser grego. (...)

Burton não gostou da Agonia no Horto – Foto do Autor – 2019

O primeiro dos novos passos mostra o agitado e um tanto irlandês São Pedro cortando a orelha a um soldado, enquanto o Salvador se prepara para curar o ferimento. A inscrição “Tanquam ad latronem”, etc. não merece comentário; os soldados pagãos o merecem. Certamente, jamais houve guerreiros romanos tão narigudos, a não ser que eles usassem suas probóscides como os elefantes usam as trombas. Mas, grotescos como são, e de todo desvaliosos como obra de arte, aquelas caricaturas de pau servem, não tenho dúvida, para fixar firmemente sua intenção no espírito público e manter viva uma certa espécie de devoção. (...)

Chega-se à igreja por quatro degraus semicirculares, protegidos por uma grade de ferro; aqui uma inscrição comemora a origem da peregrinação.(...) (p.154)

No começo, era apenas um cruzeiro de madeira preta junto à estrada, com uma grosseira imagem de Nosso Senhor e dedicada ao Bom Jesus de Matosinhos. Lá pelo ano de 1700, [na verdade, 1757] a imagem começou a fazer milagres; o terreno foi consagrado, e construiu-se uma capelinha, germe da atual igreja e do seminário.

Antes de se chegar à entrada do templo, dois lances de largos degraus afastam-se um do outro, depois se juntam no adro, formando a habitual área espaçosa e calçada, que, nesse caso, tem na frente uma bela balaustrada de pedra, da qual se divisa uma linda paisagem. Nos ângulos dos lances da escadaria e nos intervalos em frente do adro, há doze estátuas gigantescas* dos quatro maiores profetas, que têm de ser alguns dos doze arbitrariamente escolhidos, pois não se sabe onde estão os menores. Cada estátua está metida em vestes convencionais do Oriente, segurando um rolo de papel trazendo uma passagem de seus livros, em latim e em letras grandes, do velho estilo. O material é esteatita, encontrada nos arredores da cidade, e o artífice foi o ubíquo Aleijadinho, que de novo aparece na fachada. O grupo tem um belo efeito à distância e, no Brasil, a ideia é original; compara-se, porém, de maneira desfavorável com a Igreja de Bom Jesus de Braga, perto do Porto e com o mais humilde dos santuários italianos. (p.154)

* (Nota de Burton: A altura é quase dois metros e meio. À direita, estão Jeremias, Ezequiel, Oseas, Joel, Nahum e Habacuc, tendo em frente Isaias, Daniel, Amós, Obadias [Abdias], Jonas e Baruc. Assim, os quatro “grandes profetas” não estão na ordem de precedência. Todos concordam que as estátuas são doze, no entanto, em uma relação que me foi fornecida, encontrei-as assim descritas: à direita, Ezequiel, Habacuc, Oseas, Joel e Nahum à esquerda Baruc, Daniel, Jonas, Amós e Obadias [Abdias].

Igreja São Francisco de Assis – Ouro Preto -2013 – Foto do Autor.

Ouro Preto:
“À direita (da casa de Gonzaga) está a Casa do Mercado, com muares amarrados diante de um grande telheiro, de paredes amarelas. Em frente, ficava o Pelourinho, que, há cerca de trinta anos, foi demolido por alguns jovens, por pândega. Para o sul pequeno largo, fica a Igreja São Francisco. O exterior é bonito, mas a fachada saliente apresenta duas colunas jônicas desgraciosamente convertidas em pilastras. Na entrada, há esculturas de esteatita pelo indefectível Aleijadinho, mostrando a visão do Padroeiro e, acima, uma cruz sepulcral. As portas amareladas são de madeira de lei, com as habituais saliências em alto-relevo. O interior tem os seis altares laterais de praxe, uma profusão de quadros pendurados nas paredes caiadas; um balcão para o coro, de madeira, um tanto excêntrico; um grande afresco no teto, de Santa Maria cercada pelos anjos, e a Trindade com figuras em tamanho natural de madeira pintada. Os púlpitos, na entrada da sacristia, são de pedra-sabão, bem cortada e fazendo lembrar o famoso ‘Braço de Aprendiz’”. (p. 306)

Sabará:
“Abaixo da praça, passamos pela bonita casa do Desembargador José Lopes da Silva Viana, que morreu há cerca de dois anos. (...). Em uma elevação atrás, vê-se a Igreja do Carmo, tendo em sua frente os carneiros, separados do templo; a fachada é ornamentada com esteatita esculpida pelo Aleijadinho. (p. 355)

Fachada da Igreja N. S. do Carmo de Sabará - 2015 - Foto do Autor

JAMES W. WELLS
James Willian Wells (? - ?) inglês e engenheiro civil veio para o Brasil, provavelmente entre os anos de 1868 e 1869, e em 1873 já se encontrava em Minas, permanecendo aqui até 1886. Fez várias viagens pelo interior do Brasil, algumas delas descritas e ilustradas no livro “Explorando de viajando três mil milhas através do Brasil do Rio de Janeiro ao Maranhão”, publicado em dois volumes em Londres em 1886. Entretanto, sua biografia narrada neste livro, não informa nem onde nasceu ou onde morreu. Passou por Congonhas em 1873:

Wells achou os soldados romanos caricatos –quase entendeu
Foto do Autor - 2013.

1873
“Um dia de cavalgada sem incidentes, (...) levou-nos as proximidades da muito pitoresca cidade de Congonhas do Campo. (...) O Rio Maranhão, um curso de aguas claras no fundo do vale, meandra sobre cascalho e matacões, por entre margens de relva verde; além dele, na elevação, ficam as casas da vila e a igreja de Matozinhos, acima da qual estão os renques serrilhados da Serra da Boa Morte, elevando-se em picos, cones e cristas, um atrás do outro. (...) Ora, esta Congonhas do Campo é não apenas uma localidade muito pitoresca e atraente, mas é também cheia de prédios curiosos com coisas curiosas dentro. Infelizmente, estou de novo em uma área que o Capitão Burton já cobriu - e ele o fez tão bem e tão completamente que não tenho mais nada a coligir, ou mesmo acrescentar, e gostaria aqui de inserir um extrato de seu Planaltos do Brasil, pois sua descrição do cenário em 1868 é aplicável a 1873 (...)

Fizemos uma caminhada muito interessante em volta do curioso lugarejo; e sacristão nos mostrou as capelas, convento e colégio da igreja. A beleza arquitetônica está totalmente ausente em qualquer forma, os detalhes são grosseiros, desajeitados e mal-acabados, no entanto o todo combina bem com as casas simples e sólidas da cidade. Na longa subida pavimentada que leva a igreja, uma dúzia de capelinhas [Nota minha: Na verdade são apenas seis capelinhas representando sete passos da Paixão de Cristo: Ceia, Horto, Flagelação e Coroação de Espinhos, Cruz-às-Costas e a Crucificação.] contem cada uma um grupo de figuras de madeira em tamanho natural, representando cenas da Paixão; as figuras são representadas em estranhas vestimentas, os soldados romanos calçam botas hessianas; mas o extraordinário desenvolvimento dos narizes e outras feições nas figuras e a visão mais engraçada que se possa imaginar e arranca um sorriso mesmo do mais devoto dos viajantes. (WELLS, 1995, p. 97-9)

PARA NÃO CONCLUIR

Daniel e Oséias - Imagem crepuscular do que já foi aurora
Foto do Autor – 2019

Como escreveu o poeta português Fernando Pessoa, “Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer.” (Lisbon Revisited, 1923).

Então para não concluir, continuo minha jornada. Amo essas cidades do passado, ou melhor, que nasceram no século XVIII. Mas elas me perturbam os sentidos. Tudo nelas me deixam atordoado, inebriado, como num constante estado onírico e ao mesmo tempo numa voraz e incompreensível realidade em meio a pedras, campanários, becos, casarios, paisagens, aromas, sons e sabores. À noite... prefiro não descrever. E as madrugadas? Parece anoitecer quando elas surgem. E os seres humanos por mais humanos que sejam, nelas, exceto os que estão ao meu lado, ou pelo menos estiveram, são apenas sombras descartáveis.

Estive diversas vezes nelas, desde o final de minha adolescência e agora quando a natural “velhescência” chegou ainda quero voltar a elas.

E seja em Congonhas, Ouro Preto, Mariana, Tiradentes, São João del Rei etc., e mesmo na ignota Paracatu, os crepúsculos mesmo sendo belos, poéticos e mágicos, são o que há de mais sombrios e perturbadores. Como se não existisse o amanhã? Não o medo de perder o hoje...

Mas chega de viajar e vamos novamente e rapidamente aos viajantes, aos intrépidos estrangeiros que enfrentaram o mar oceano, as estradas intransitáveis, os animais peçonhentos e diversos tipos de outros animais com bafo de cachaça ordinária e para cá vieram e nos deixaram seus preciosos relatos. Mesmo sendo eles algumas vezes tão fúteis, agressivos e ingênuos. Mas preciosos, muito preciosos.

Queria apenas dizer mais uma coisa. É apenas uma pergunta. Odeio especular, mas ela está há muito tempo em mim. Talvez alguém já tenha respondido. E não sei se quero resposta, ou se penso que sei a resposta, é apenas uma pergunta:

Rodrigo José Ferreira Bretas leu os viajantes estrangeiros da primeira metade do século XIX?

Sis Felix.

REFERÊNCIAS

ALEIJADINHO POR ELIAS LAYON - https://aleijadinho.com/aleijadinho-acervos-publicos/ - Atlantes da Igreja do Carmo de Sabará.

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Viajante estragado do século XXI - Foto de uma Alma penada - 2014


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1 Comentários

  1. Meu caro pesquisador, Professor José Eduardo
    Em “Aleijadinho e os viajantes estrangeiros”, você diz que, para alguns, talvez “chovesse no molhado” sobre o tema. Para mim, ao contrário, seu texto trouxe muitas novidades. Obrigada pela excelente “aula”, referente ao olhar estrangeiro sobre a obra de Aleijadinho.
    O “anfiteatro de montanhas”, em Congonhas, onde Aleijadinho esculpiu sua monumental obra , é realmente um recanto ímpar da Arte colonial, que deve ser visitado por todos aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de conhecer o que Oswald de Andrade chamou de “Bíblia de pedra sabão, banhada no ouro de Minas”.
    Sou grande apreciadora do Barroco mineiro. Já visitei as cidades históricas inúmeras vezes, e tenho um “xodó” especial por Ouro Preto, onde tive o privilégio de morar durante algum tempo e, portanto, de conviver com os fantasmas e sombras do passado que ainda rondam ruelas e becos nas brumas da antiga Vila Rica.
    Parabéns pelo excelente trabalho e pelo substancial suporte bibliográfico utilizado durante a pesquisa.
    Jô Drumond

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