Tratado do Tempo

Por Neto Moreira

Campo de trigos com ciprestes por Vincente Van Gogh/1890

Era por dever de ser em sendo, qualquer coisa sendo. Sendo sozinho, deslinguado, trancou-se em cadeado no meio do nada. Pôs palha e do barro fez paredes contra o mundo. Diziam-na tumba, ele, de casa. A companhia só do riacho que não sabia se corria para cima ou para baixo. O tempo ali não fez morada. Não que se saiba. Não que quisesse saber-se dele ou de si mesmo. O seu próprio nome esquecera ou o matara. A estranha inconsciência de não saber-se, nem dos pares em suas vidas ímpares.

Dizem que se foi quando ainda semente de gente. Lhe inquietava as melhores perguntas: as que não tem respostas fáceis. E estas nunca lhe apresentavam ou apareciam disfarçadas da razão que não lhes vestia bem. Deixou a colmeia humana com propósito, depósito de fé. De encontrar, a pé, a caminhada para trecho de vida que lhe pertencia.

Não parecia estar ali, entre os homens. Prescindia silêncio. E estava disposto a pagar o preço para asserenar as trovoadas que viviam a reverberar em sua cabeça... os raios que não o deixavam dormir... filosofia da insônia que quem sonha acordado. Sim, partir era comando. Queria ser mestre de si.

Procurou santificação nos mosteiros, ritualizou-se, mas pouco divinou-se. Pagou para ser pagão e nem os bêbados com óculos de intelectuais socorreram-no do sangramento interior. Um hemofílico da dor da procura, sem cura. Sem cura...

Putas tristes e pecadores nada disseram.

Estatísticas e o acaso, casos perdidos.

Mendigos e Catedráticos, patéticos em forma e conteúdo.

Um dia, de sentir, desistiu, e anoiteceu calado neste casulo que construiu nos confins do mundo. Não mais sabia quem e quando e todo ponto de interrogação foi se tornando reticência. O silêncio, um bom professor e já pouco importava para qual lado o riacho corria. Era água, tal qual água da barriga que faz gente. Dava vida. E isso num carecia de maiores minhocamentos da mente. Dele não exigia qualquer explicação.

Vivia de dia. À noite asserenava com o sereno, na cadeira improvisada entre as raízes de árvore, contemplando, por um formigueiro de anos, a mesma paisagem, que sempre parecia lhe mostrar algo diferente. Entrava para casebre e contava os passos até o feno no chão, colocava seus sonhos para dormir e, no escuro, via para além de si.

Acordou de sobressalto. Seria um trovão? Não. Pela primeira vez desde que não se sabe quando, alguém batia na porta improvisada de pedaços de madeira. Na verdade, quem quer que fosse, poderia abri-la ainda que descalço de músculo. Mas queria, do dono, algum tipo de benção para se fazer visita.

- Quem chama?

- Sou o Tempo.

- Tem quanto tempo que estás aí fora?

- Desde que chegastes aqui.

- Porque nunca lhe vi?

- Porque não era hora.

- Vá se embora, não conto contigo.

- Vou-me num momento, mas deixo encomenda.

- Faça como quiser, mas não sou dado à prendas.

O Tempo se foi, e, só no outro dia, abriu com cuidado a porta de tiras e viu no canto um embrulho. Não que fosse descaso, mas mastigou um tempo ruminando confabulamentos. Abriu sem novidade, como se novidade não fosse. Era um espelho.

Tomou em seus braços magros e na última luz do dia, viu-se como a muito não se via. Havia um velho refletido. Rugas fazendo covas fundas na testa desnuda. Quem seria aquele? O jovem que um dia partiu atrás de respostas? Talvez sim, mas era outro ele. Manso e pacificado e mesmo velho e enferrujado não deixou de sorrir, porque o Tempo é senhor de si. Deixou-o sem muito cuidado e procurou o abrigo do feno, mais vagoroso, em seu termo.

E eis que a noite, que sabe namorar o mistério como ninguém, lhe reservou outra visita. Batendo a porta sete vezes, escutou um voz clemente que chamava por seu nome. O Tempo já havia feito seu trabalho, quem seria, pois, que lhe reclamava assalto?

- Quem és, sendo aqui a esta hora, tarde, como a tarde que já se foi embora?

- Deus.

- Então existes?

- Você quem decide.

- O que queres de mim?

- De ti, nada. E você, o que queres de mim? Alguma resposta sem fim?

Silêncio no tempo. Viagem ao centro de si. Correu a memória de sua trajetória e toda pressa na busca da calma. Agora, enfim, o silêncio no tempo não lhe era um algoz feroz. Era a calmaria que fazia não sem importar para qual lado corria o riacho. Respondeu devagar:

- “De Ti, também nada”.

- Então estás pronto.

E Deus lhe estendeu as mãos. Não olhou para lado, nem para o riacho parado, nem para o espelho e tudo estava calado. Estendeu a mão para Deus, calmo. A estranha consciência de saber-se tudo, a santa certeza do nada.


Neto Moreira é um poeta fajutinho, contista e compositor de rocks rurais


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2 Comentários

  1. Sensacional!!! O tempo não perde tempo!!!!

    👏👏👏👏👏




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  2. Em que mundo, afinal, vivem os poetas?!?!
    Estão dentro ou fora de sí mesmos?
    Que criação! Que mente absolutamente inventiva!

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