Manuel Bandeira e o Guia de Ouro Preto 1938-2018

Por José Eduardo de Oliveira

O pernambucano, quase mineiro, Manuel Bandeira - Divulgação

“Em Ouro Preto só quem não bebe é sino, porque está de boca para baixo...” Antigo ditado popular da cidade

“Se perguntarem: Que mais queres,
Além de versos e mulheres?...
- Vinho! ...o vinho que é o meu fraco!..
Evoé Baco!”
Manuel Bandeira – Bacanal.

“Para os fantasmas de Villa Rica que ainda habitam lá e para um fantasma que rondou aquelas ruas, becos, adros, bares e templos espectrais e incensados de êxtases e que lá ainda permanece ali, ora como uma doce corrubiana e às vezes como uma terrível maldição.” Jaeroa

Entre 2015 e 2016, decidi colocar em prática um projeto de quase uma década anterior: comentar com inúmeras notas o Guia de Ouro Preto de Manuel Bandeira de 1938, que completaria 80 anos em 2018, inclusive comparando os desenhos do livro com fotografias da atual Ouro Preto.

O que mudou naquelas imagens de 1938 desenhadas por Luís Jardim e Joanita Blank e nos relatos de Bandeira, se comparar os desenhos com as fotografias das ruas e casas e monumentos de hoje, oitenta anos depois? E na formação e no desenvolvimento da cidade nestas oito décadas? Em que circunstâncias e em que contexto histórico foi gestado e escrito o Guia? Por que Manuel Bandeira, um pernambucano, escreveu o Guia, se haviam tantos mineiros à sua volta e talvez com a mesma competência? Como por exemplo Carlos Drummond de Andrade? E que fortuna crítica acumulou o Guia nestes oitenta anos e nas suas nove edições?

Infelizmente por uma série de razões, algumas particulares e outras alheias à minha vontade, o projeto não vingou. Depois, mesmo assim, publicaria um rascunho do que seria a introdução da coisa toda no Blog: PROJETO- Guia de Ouro Preto 80 anos: http://eduardotouca.blogspot.com/

Antes, porém, farei uma apresentação do autor Manuel Bandeira e para encerrar, abaixo, anexo o que já tinha concluído que seriam os desenhos feitos para o livro de Luís Jardim e Joanita Blank em 1938 em comparação com as fotografias da cidade atualmente. Todas as fotografias foram feitas por mim entre 2015 e 2019 e a legenda e os números que aparecem nelas são as que constam na primeira edição de 1938.

MANUEL BANDEIRA E O GUIA DE OURO PRETO - 1938

Manuel Bandeira nasceu em Recife-PE, no dia 19 de abril de 1886 e morreu no Rio de Janeiro-RJ, no dia 13 de outubro de 1968. Estudou em várias escolas e não concluiu seus estudos superiores, sendo quase um arquiteto. Morou depois em vários lugares até a sua morte aos 82 anos.

Ressalto sua longevidade, não muito comum aos velhos poetas brasileiros, sobretudo os do século XIX e muitos outros do século seguinte, porque o próprio Bandeira não acreditava que iria viver muito. Já disseram também que não se casou, porque já tinha uma noiva ciumenta, a morte. Mas nem por isso deixou de cometer alguns adultérios, comuns também em poetas, com algumas musas também mortais de carne e ossos, e “Durante uma parte da vida, Bandeira amou três mulheres ao mesmo tempo, embora não vivesse com nenhuma delas: a holandesa Frédy Blank [Frederika], que era casada, a pernambucana Dulce Pontes, que também escrevia poesia, e a mineira Maria de Lourdes de Souza. (...) Uma passagem até hoje desconhecida da vida de Bandeira foi sua relação com a alemã Gertrud Bühler, com quem manteve um romance de maturidade na década de 1960. (...)”. Entretanto, foi com Frédy Blank , que Bandeira teve um relacionamento mais duradouro, de cinco décadas. (BORTOLOTI, 2015.)

Bandeira nunca esqueceria Frederika, isso ficou claro, na carta que ele escreveu para Alphonsus de Guimaraens Filho (1918-2008), datada de 13 de junho de 1964 - aliás ano da morte dela -, “Continuo muito abafado com as saudades de minha amiga Mme. Blank. Sei, pelas cartas da filha Joanita, que ela está passando bem na Holanda, sem memória, ou melhor, com a memória muito confusa, vive num mundo de sonho, feito de pedaços de mundos que não existem mais. Eu apreendia muito que ela fosse sofrer afastando-se de mim e do ambiente em que ela sempre viveu, cercada das bonitas coisas holandesas que trouxera para cá. Felizmente tal não se deu. Dia de meus anos Joanita foi visita-la e perguntou: ‘Sabe que dia é hoje? 19 de abril?’ Ela pensou um momento e respondeu: ‘Aniversário de Manuel’. Então Joanita indagou: ‘Você escreveu a ele?’ e sabe o que ela respondeu? – ‘Não, por que? Eu vejo ele todos os dias’.” (GUIMARAENS FILHO, 1974, P. 132). Apesar disso, seu poema mais conhecido é uma exaltação exaltada da vida e dos prazeres: “Vou-me embora pra Pasárgada”.

Desde 1904, diagnosticado com tuberculose e até ao resto de seus longos dias, as sombras dessa doença e da morte o seguiriam por todos os lugares e escritos. Inclusive, viajou para várias cidades brasileiras procurando tratamento chegando até a internar-se numa clínica em Clavadel na Suíça entre 1913 e 1914, com eclosão da Primeira Guerra em 1914, retorna ao Brasil. Seu primeiro livro de poesia impresso, “A cinza da horas”, data de 1917.

Apenas para resumir, um pouco do poeta e o que inspirava sua poesia, que isso daqui não é uma resenha de toda sua poesia e sim uma breve nota do autor de um Guia Turístico, segundo Murilo Marcondes de Moura:

“No caso específico de A Cinza das Horas, seria possível atá-lo aos livros de maturidade com base no levantamento de vários elementos: a contiguidade entre dor, solidão, morte e doença (que persistirá, embora matizada pela ironia); a predileção pelos ‘noturnos’, em que se exploram a atmosfera mágica e os sons da noite; a infância perdida que se tenta recompor pela poesia; o sentimento delicado dos contrastes, (...); em que o ‘fervor dos carinhos’ da juventude contrasta com o ‘fogo já frio’ da velhice; a presença forte do erotismo e da lírica amorosa, a arte como possibilidade de salvação (...) a natureza como presença benfazeja e portadora de um aprendizado para a cura ou para a superação dos limites individuais (...) também o ‘sentimento de família.’...” (MOURA, 2001, 24-5)

Sua evocação mais sublime e ao mesmo tempo realista e bem humorada de sua doença foi expressa no poema de seu terceiro livro “Libertinagem” de 1930:

“PNEUMOTÓXAX

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.

..................................................................

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”
(BANDEIRA, 2009, P. 101)

Talvez para sublimar e vencer a sombra da morte, Manuel Bandeira foi poeta e escritor prolífico. Apesar de se intitular como poeta ele foi muito mais.

Além de escrever inúmeros livros de poesia, foi cronista, prefaciador, ensaísta, contista, crítico de arte e literatura, organizador de antologias suas e de outros escritores, sem contar que se correspondeu por cartas praticamente com todos os grandes intelectuais de sua geração. Também foi tradutor, traduzindo, por exemplo, de Shakespeare (Macbeth), passando, Omar Khayyan (Rubaiyt), Schiller (Maria Stuart), Bertolt Brecht (O círculo de giz caucasiano) e, pasmem, Edgar Rice Burroughs (O tesouro de Tarzan). Ele foi o que denominavam antigamente de beletrista e vivia por assim dizer de sua pena, hoje provavelmente viveria de seu notebook. Foi traduzido e retraduzido em vários idiomas e países. Foi também professor de literatura e membro da Academia Brasileira de Letras, acrescentando ainda que, seria várias vezes premiado em concursos literários. Quero ressaltar ainda que na década de 1920, foi um dos primeiros a redescobrir e a escrever sobre Antônio Francisco Lisboa, O Aleijadinho. Logicamente fazia isso, e não necessariamente nessa ordem, em primeiro lugar porque gostava, em segundo porque recebia para isso e em terceiro, era praticamente sua única fonte de renda. Eu precisava fazer isso também, sobretudo no quesito, receber para isso.

E para mim, se não fosse o poeta itabirano, seu amigo e contemporâneo, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), talvez eu o considerasse sem exagerar e sem errar, o maior poeta do Brasil de todos os tempos. Seus poemas de amor ainda esperam uma antologia.

Poesia completa e prosa - 1500 páginas de um lirismo ardente e sublime

O GUIA DE OURO PRETO

Começo com uma pergunta e já advirto, sem uma resposta conclusiva.

Por que um pernambucano do Recife que morava no Rio de Janeiro foi quem escreveu um Guia de Ouro Preto encomendado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN, uma publicação do Ministério da Educação e Saúde, cujo ministro era o mineiro, Gustavo Capanema (1900-1985), do Governo de Getúlio Vargas, neste período de 1937 a 1945, uma ditadura? Além disso, ele e outros intelectuais da época prestariam inúmeros serviços a esse ministério. (M ICELI, 2001, P. 273).

Vasculhei, não muito, jornais da época e alguma correspondência de Manuel Bandeira e não achei a resposta exata. Entretanto, baseando-me em algumas evidências, usarei um instrumental de análise teórico-metodológico, muito comum das ciências humanas chamado “especulação” ou “conjectura”, ou a metodologia sherloquiana e suas mirabolantes pistas. Ou menos um pouco, que mesmo não sendo um paradigma indiciário, me valerei de alguns indícios, umas pistas do próprio Bandeira e seus antecedentes e dotes intelectuais que o levariam ao Guia.

Umas das obras ou fontes mais importantes para a reconstituição biográfica de Manuel Bandeira entre os anos de 1922 a 1944, são os livros de correspondências entre, principalmente dois escritores: o recifense Gilberto Freyre (1900-1987) e o paulistano Mário de Andrade (1893-1945).

Nessas correspondências, a primeira notícia do Guia, foi em carta datada de 2 de julho de 1937, de Manuel Bandeira para Mário de Andrade: “Agora vou me atirar ao Guia de Ouro Preto. Estou com preguiça e com medo. Mas com amor também. Amor e medo.” Em nota do organizador dessas correspondência e ele escreve o seguinte: “Com ilustrações de Luís Jardim e Joanita Blank, o Guia de Ouro Preto teve a primeira edição sob a chancela do Ministério da Educação e Saúde, Rio de Janeiro, 1938. MB elaborou o livro atendendo ao convite de Rodrigo M. F. de Andrade, diretor do SPHAN.” (MORAES, 2000, P. 638, 639n.)”

Depois em 1954, em sua autobiografia precoce, “Itinerário de Pasárgada”, Bandeira escreveu o seguinte: “Só no chão da poesia piso com alguma segurança. No entanto fui aceitando tarefas em outros campos. Em 1938 Rodrigo M. F. de Andrade, como diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, me convenceu a escrever um Guia de Ouro Preto...” (BANDEIRA, 2009, P. 101)

Em outro livro, Manuel Bandeira em carta datada de 8 de agosto de 1938 enviada para Gilberto Freire, escreveu o seguinte sobre o Guia: “Tenho andado em grandes trabalhos. Não há meio de pôr um paradeiro nessa dobadoura. (...). O que vai ficar uma beleza é o Guia de Ouro Preto, graças à colaboração do nosso Jardim, que fez ótimo trabalho: 21 bors-texte e 24 ilustrações no texto. Os desenhos foram reproduzidos em litofotogravura e ficaram exatamente iguais aos originais. Anteontem eu e o Rodrigo estivemos fazendo a paginação. Dentro de dois meses sairá.” (DIAS, 2017, P.113-4), Abaixo, falarei desse Jardim, e o Rodrigo a que se refere Bandeira é o mineiro, Rodrigo Mello Franco de Andrade (1898-1969), que comandou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde a sua criação em 1937 até 1967, e como vimos, foi o responsável pela edição do Guia.

E no mesmo livro de cartas, Bandeira escreveu para Freire, em carta datada e 23 de março 1939 - esta data está equivocada provavelmente ao transcrever, o certo seria 1938 -, escreveu o seguinte: “De volta de São Lourenço e Petrópolis, vi-me de novo envolvido numa porção de trabalhos: (...) - o Guia de Ouro Preto! Eu tinha vindo adiando o início desse guia, porque não sabia em que parariam as coisas na política. Afinal todo o trabalho preparatório estava pronto - 20 desenhos ótimos do Jardim, planta de Ouro Preto etc. Tive que vencer a preguiça e começar. O meu plano é dar primeiro os dados geográficos, em seguida um histórico, depois impressões de viajantes estrangeiros; passo então às minhas impressões de Ouro Preto atual, passeios a pé [lá] pela parte central, chamando aqui e ali atenção do turista distraído para um detalhe interessante; depois lista dos monumentos, com informações precisas. Penso também juntar uma bibliografia. Creio que ficará um livrinho útil para quem for viajar por lá.” (DIAS, 2017, P.115).

E aqui volto àquela pergunta: por que tinha de ser o pernambucano Manuel Bandeira e não o mineiro Drummond de Andrade ou outro que lá no Ministério da Educação e no SPHAN, como dizem aqui em Minas tinha carradas de intelectuais mineiros ou não, e todos competentes?

Em primeiro lugar o talento e a competência comprovada em tudo o que fazia. E em segundo e o mais importante, Manuel Bandeira já havia visitado Minas e a velha Villa Rica e escrito e muito bem escrito sobre aquela cidade do ouro, Aleijadinho e as coisas de Minas. Esta viagem a Minas aconteceu entre 23 de fevereiro a 15 de março de 1928, visitou Belo Horizonte, Ouro Preto, Congonhas e São João Del Rei etc. (MORAES, 2000, P. 381).

Aquela que foi a segunda vila criada na Capitania – a primeira foi Mariana -, a segunda capital – a primeira também foi Mariana, entretanto, Ouro Preto seria capital até 1897, quando Belo Horizonte seria inaugurada e assumiria o título. E o patrimônio histórico e cultural daquela cidade agora recém descobertos e protegidos pelo Estado merecia um novo guia. Novo, porque já existiam inúmeros livros sobre a cidade, ainda que não aparecessem como Guia.

Na verdade, Ouro Preto, Mariana, Congonhas etc., começaram de fato serem redescobertas e desvelada com a visita e alguns modernistas – com destaque para Mário de Andrade -, na região em 1924. Depois com a chegada de Getúlio Vargas ao poder em 1930, que em 1933, por decreto, declara como “Monumento Nacional a Cidade de Ouro Preto”. Na sequência em 1937, cria o SPHAN, e em 1945, foi a vez de Mariana tornar-se Monumento Nacional. E em 1980, a UNESCO, reconhece Ouro Preto como “Patrimônio Mundial da Humanidade”. E por falar em Mariana, Bandeira não se esqueceu dela, nem dela e nem de Congonhas e dedicou deliciosas páginas informativas sobre essas urbes irmãs de destino de Villa Rica.

O primeiro escrito de Manuel Bandeira sobre Ouro Preto e região, aliás, um soneto, “Ouro Preto”, talvez o mais poderoso e emblemático sobre a cidade, foi escrito e publicado na Revista Ilustração Brasileira de Junho de 1928, e trás uma foto do século XIX:


“OURO PRETO

Ouro Branco! Ouro preto! Ouro podre! De cada
Ribeirão trepidante e de cada recosto
De montanha o metal rolou na cascalhada
Para o fausto d’el-Rei, para a glória do imposto.

Que resta do esplendor de outrora? Quase nada:
Pedras... templos que são fantasmas ao sol-posto...
Esta agência postal era a Casa de Entrada...
Este escombro foi um solar... . Cinza e desgosto!

O bandeirante decaiu - é funcionário.
Ultimo sabedor da crônica estupenda,
Chico Diogo escarnece o último visionário.

E avulta apenas, quando a noite de mansinho
Vem, na pedra-sabão lavrada como renda,
- Sombra descomunal, a mão do Aleijadinho!”
(BANDEIRA, 1928.) (BANDEIRA, 2009, P. 145)

E em julho de 1928, também na “Ilustração Brasileira”, aparecerá o artigo “O Aleijadinho”. E no mês seguinte, Setembro, na mesma publicação, com o artigo, “Defesa de Ouro Preto”. (BANDEIRA, 1928.)

E depois, no mesmo ano, no Jornal “A Província” do dia 28 de Junho, com o artigo, “O ‘nosso’ Saint-Hilaire, onde faz críticas, infundadas eu creio ao viajante, que não se importou muito com os monumentos de Ouro Preto, segundo ele “As suas faculdades artísticas não eram nem fortes nem incomuns, tanto que de passagem por Ouro Preto apenas assinalou as matrizes de Conceição de Antônio Dias e do Fundo de Ouro Preto, não dizendo umas palavras de S. Francisco de Assis e Carmo as igrejas do Aleijadinho, incomparavelmente mais interessantes...” (BANDEIRA, 1928a.)

Em 24 de Junho de 1929, Bandeira publicou o texto “De Villa Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos Estudantes”, que junto, com o que havia escrito anteriormente, o qualificariam de fato para ser o autor do Guia de Ouro Preto. (O Jornal, 1929). Este texto foi praticamente um rascunho ou um esboço do Guia.

Entretanto, tal a qualidade dos textos, eles foram publicados em 1937, juntamente com outros do mesmo teor como: “Crônicas da Província do Brasil.” (BANDEIRA, 1937. p. 9-32; 55-68; 219-233.) Tivesse nascido, dois minutos mais tarde, seguramente, Bandeira não seria poeta e sim historiador...

O livro seria lançado em fins de 1938, e Manuel Bandeira, em seus agradecimentos ressalta que “Joanita Blank desenhou alguns croquis, que serviram de base a admiráveis ilustrações de Luís Jardim - aquelas que vão assinadas J. e Luís Jardim.” As ilustrações e/ou as fotografias são de vital importância, sobretudo em um guia turístico, se não fossem por elas eu não teria escrito esses comentários. Entretanto, como podem perceber, apesar dos agradecimentos a Joanita Blank, na capa só aparece o nome de Luís Jardim como ilustrador.

Capa da primeira edição do Guia de Ouro Preto - 1938

Luís Jardim, registrado como Luís Inácio de Miranda Jardim, nasceu em Garanhuns-PE., e morreu no Rio de Janeiro-RJ, em 1987. Desenhista e escritor. Ganhador de vários prêmios literários, com os livros, “O Boi Aruá”, “O Tatu e o Macaco”, “Maria Perigosa” etc. Ilustrou também inúmeros livros, dentre os quais, “Guia prático e sentimental da Cidade do Recife” (1934), de Gilberto Freire, “Guia de Ouro Preto” (1938), de Manuel Bandeira e “Aparência do Rio de Janeiro” (1949), de Gastão Cruls e outros. (PONTUAL,1969, P. 276-7.).

Duas outras coisas sobre o ilustrador do Guia de Ouro Preto. A primeira coisa é uma curiosidade.

Em 1938, o concurso literário, “Humberto de Campos” premiou Luís Jardim em primeiro lugar com o livro de contos “Maria Perigosa”, deve ter merecido, apesar de que a obra permanece até hoje praticamente desconhecida. Mas o mais curioso de tudo é que entre os perdedores está João Guimarães Rosa (1908-1967), que seria desclassificado com contos que em 1946, fariam parte nada mais nada menos do livro “Sagarana”. E outra curiosidade, um dos jurados que ajudaram a desclassificar Guimarães Rosa foi, Graciliano Ramos (1892-1953). (BORTOLOTI, 2013)

A segunda coisa é uma especulação e que não deixa de ser também uma curiosidade. Luís Jardim teria vindo a Minas e feitos seus desenhos para o Guia de Ouro Preto in loco? Advirto, entretanto que gosto dos desenhos e isso não tem a mínima importância, mas não deixa também ser uma curiosidade. Apesar de ter pesquisado as mesmas fonte e nada encontrei de Jardim em Minas.

Um fato me deixou curioso. De tanto folhear o Guia acabei por memorizar quase todas as ilustrações e em determinado momento, folheando outro livro, bem anterior ao Guia me deparei com uma fotografia onde ele copiou e fez o seu desenho.

O livro é “Villa-Rica”, de Alcibíades Delamare, de 1935, e a foto é a da Capela de São João:

Capela de São João – a mais antiga de Ouro-Preto.


E a Blank de que fala Bandeira: “Joanita Blank desenhou alguns croquis, que serviram de base a admiráveis ilustrações de Luís Jardim”?

Joanita van Ittersum, filha do único amor de Manuel Bandeira
Cândido Portinari, 1937 - Fonte CORREIOIMS.

Joanita Blank, ou Joanita van Ittersum (1909-1990), desenhista de moda, articulista do mesmo assunto e ilustradora de livros, também assinou alguns desenhos do Guia junto com Luís Jardim, nasceu no Rio de Janeiro-RJ, e era filha da holandesa Frederika Blank e do brasileiro Carlos Blank. Foi por assim dizer como a mãe uma amiga e uma discípula de Manuel Bandeira.

Entretanto, hoje, não é mais segredo para ninguém, Frederika foi o grande amor de Manuel Bandeira. Mas o Guia de Ouro Preto, não é um guia para o amor - não existe este tipo de guia -, quando muito para alguns devaneios tresloucados no meio daquelas brumas e ladeiras íngremes, e no máximo, na ponte dos suspiros, e no Bar Dirceu, ouvir os lamentos de Marília distante de Dirceu que está lá longe, na escaldante e asfixiante África...amores perdidos nas neblinas dos tempos, mas que ficaram como pátinas indeléveis e corrosivas.

OS CAMINHOS DO GUIA DE 1938

A 2018 O Jornal Diário de Notícias, do Rio de Janeiro do dia 18 dezembro de 1938 trouxe a seguinte matéria: “GUIA DE OURO PRETO. O livro do sr. Manuel Bandeira, ilustrado pelo sr. Luís Jardim, em edição do S.P.H.A.N. – A iniciativa do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de editar um “Guia de Ouro Preto’ era já de si uma providência de um mérito que dispensava demonstração. A maneira por que se efetivou a iniciativa multiplicou-lhe o valor. ‘O Guia’, que acaba de sair das oficinas gráficas do Ministério da Educação, não é um simples manual para orientação dos turistas que em número casa dia maior, procuram a cidade-monumento de Minas, tão cheia de tradições e de preciosidades artísticas. É também um livro dos mais belos, mais primorosos já produzidos pela nossa indústria gráfica.” (Diário de Notícias, 1938)

Capa da última edição do Guia de 2015 - Foto do Autor

Em 1948, o Guia seria traduzido para o francês por Michel Simon, “Guide d’ Ouro Preto”. Teria o mesmo projeto e a mesma apresentação gráfica, com as mesmas ilustrações e mapas, entretanto enriquecido sobremaneira com o acréscimo de alguns anexos e uma substanciosa bibliografia. A edição do livro também foi custeada pelos cofres públicos.

Assim desde 1938 o livro teve as seguintes edições:

1.ed. - 1938 - BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Ministério da Educação e Saúde: Rio de Janeiro, 1938. [Publicação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional N. 2]

2.ed
1948. - SIMON, Michel. Guide d’Ouro Preto. 2.ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. Tradução, introdução e notas de Michel Simon; Ilustrações de Luís Jardim – Joanita Blank - c/mapas. E mapa, “bibliografia sumária” e “apêndice” que não constam na edição de 1938.

3.ed. -1957 - BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. 3.ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, [1957]. ilustr. Luís Jardim – Joanita Blank - c/mapas originais. 1 mapa da ed. em francês.

4.ed. -
1958 - BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro. In: Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958. P. 805-888. V. 2. Com fotos de Germaine Krull [esta edição não é computada oficialmente..]

5.ed. - 1963 - BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes, 1963. 4.ed. Edição revista e atualizada. Com 4 ilustr. Luís Jardim – Joanita Blank -. c/ 2 fotos e apenas uma ilustração de Luís Jardim servindo de vinhetas. Com mapas originais de 1938 em escala reduzida.

6.ed. - 1967 - BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1967. Edição revista e atualizada. ilustr. Luís Jardim – Joanita Blank -. Com mapas originais de 1938 em escala reduzida.

7.ed. Sd . BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Ediouro, sd. ilustr. Luís Jardim – Joanita Blank - com fotos atuais coloridas e mapas 168 p.

8.ed. - 2000 - BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. Fotos em preto e branco de Luís Augusto Bartolomei. Prefácios Jorge Moutinho; Simon Michel. Sem os desenhos de L. Jardim – Joanita Blank - sem os mapas originais de 1938.

9.ed. - 2015 - BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. 8. ed. São Paulo: Global, 2015. coordenação André Seffrin; apresentação Ângelo Oswaldo de Araújo Santos. C/ilustr. Luís Jardim – Joanita Blank - c/mapas originais reduzidos.

Impossível neste momento, fazer um apanhado ainda que geral onde este Guia foi citado desde então, por historiadores, sociólogos, escritores e poetas em geral e logicamente por turistas. Nestas décadas de idas e vindas em Ouro Preto, vi muitas vezes turistas nacionais e importados folheando o Guia e conferindo os monumentos. Entretanto mencionarei apenas um estrangeiro, o francês Germain Bazin (1901-1990), que em breve escreverei mais sobre ele, que o citou em duas de suas mais importantes e imprescindíveis obras: “A arquitetura religiosa barroca no Brasil”, publicado em 1956 na França e traduzido somente em 1983, e a citação que ele faz e do livro traduzido em 1945, “Guide d´Ouro Preto”. Em seu segundo livro sobre o Brasil, mais especificamente sobre o Aleijadinho, “O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil.”, também publicado em 1963 na França, e traduzido somente em 1971, e a citação que ele faz também e do livro traduzido em 1945, “Guide d´Ouro Preto”.

Para não concluir, o poema de Manuel Bandeira, publicado no livro, “Opus 10”, em 1952, que infelizmente, nunca se desatualiza:

“MINHA GENTE, SALVEMOS OURO PRETO

As chuvas de verão ameaçaram derruir Ouro Preto.
Ouro Preto, a avozinha vacila.
Meus amigos, meus inimigos,
Salvemos Ouro Preto.

Bem sei que os monumentos veneráveis
Não correm perigo.
Mas Ouro Preto não é só o Palácio dos Governadores,
A Casa dos Contos,
A Casa da Câmara,
Os templos,
Os chafarizes,
Os nobres sobrados da Rua Direita.

Ouro Preto são também os casebres de taipa de sopapo
Aguentando-se uns aos outro ladeira abaixo,
O casario do Vira-Saia,
Que está vira-não-vira enxurro,
E é a isso que precisamos acudir urgentemente!

Meus amigos, meus inimigos,
Salvemos Ouro Preto.

Homens ricos do Brasil
Que dais quinhentos contos por um puro-sangue de corridas,
Está certo,
Mas dai dinheiro também para Ouro preto.

Grãs-finas cariocas e paulistas
Que pagais dez contos por um modelo de Christian Dior
e meio conto por uma permanente no Baldini,
está tudo muito centro,
Mas mandai também dez contos para consolidar umas quatro casinhas de Ouro Preto.
(Nossa Senhora do Carmo de Ouro Preto vos acrescentará...)

Gentes de minha terra!
Em Ouro Preto alvoreceu a nossa vontade de autonomia nos sonhos frustrados dos Inconfidentes.
Em Ouro Preto alvoreceu a nossa arte nas igrejas e esculturas do Aleijadinho.
Em Ouro Preto alvoreceu a nossa poesia nos versinhos do Desembargador.

Minha gente,
Salvemos Ouro Preto.
Meus amigos, meus inimigos,
Salvemos Ouro Preto.”
(BANDEIRA, 2009, P. 204-5.)

ILUSTRAÇÕES DE 1938 E FOTOS DE 2018


Capa e frontispício - Rua da Gloria, vendo-se ao fundo o Itocolomi



Página 7 - Fundos da casa da Rua Tiradentes - atual Rua São José



Página 11 - Brasão da cidade de Ouro Preto



Página 12 - Capela de S. João



Página 15 - Matriz do Pilar vista da Rua da Glória - Atual Rua Antônio de Albuquerque




Página 17 - Capela do Taquaral



Página 18 - Capela de S. Sebastião



Página 20 - Palácio dos Governadores, hoje Museu da Ciência e Técnica



Página 21 - Ponte Seca, vendo-se ao alto as torres da Igreja do Rosário



Página 30 - Rua do Aleijadinho



Página 31 - Caminho para Água Limpa - Atual Rua Domingos Vidal com Thomé Afonso



Página 33 - Ponte da Barra



Página 35 - Antigo Paço Municipal ex-penitenciária - Atual Museu dos Inconfidentes


Página 38 - Nicho na esquina da ladeira do Vira-saia com a Rua Barão do Ouro Branco - atual Rua Santa Efigênia



Página 43 - S. Franciso de Assis


Página 45 - Detalhe da balaustrada da escada exterior da Penitenciária - Atual Museu dos Inconfidentes



Página 51 - Rua Tiradentes, vendo-se no primeiro plano a ponte dos Contos e ao fundo S. Francisco de Paula - Atual Rua São José


Página 55 - Sobrados da Rua da Glória - Atual Rua Antônio de Albuquerque



Página 63 - Rua do Pilar



Página 65 - Sobrados do largo do Rosário, vendo-se no primeiro plano à direita, o chafariz do Rosário


Pagina 70 - Mercês do Cima - Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia


Página 71 - Fundos de casas dando para a Rua do Aleijadinho


Página 73 - Rua do Carmo - na verdade, atual Rua do Pilar, ex-Caldeireiros


Página 75 - Casa N.o 28 da Praça Antônio Dias



Página 76 - Chafariz do Passo de Antônio Dias


Página 81 - O Castelo dos Nobres


Página 83 - Portada da Sé de Mariana


Página 85 - Aljube de Mariana, hoje Arquivo da Cúria - Atualmente Museu Arquidiocesano


Página 89 - Profetas de Congonhas - Daniel e Oséias


Página 95 - Capela de N. S. do Bonfim


Página 99 - Matriz de N. Senhora do Pilar


Página 105 - Rua Paracatu, vendo-se no primeiro plano, à esquerda, o Passo de S. José


Página 109 - Largo de Antônio Dias, vendo-se ao fundo a Igreja de Santa Efigênia



Página 113 - Vista lateral da Igreja de S. Francisco de Assis



Página 117 - Igreja de S. Franciso de Paula, vista da Rua de S. José


Página 121 - Rua Teixeira do Amaral, vendo-se ao fundo a torre de S. José


Página 125 - Passo de Antônio Dias


Página 128 - Sino da Capela do Padre Faria



Página 133 - Ponte de Marília, vendo-se ao fundo a ladeira do Vira-Saia - Atual Rua Santa Efigênia


Página 137 - Ponte Seca, vendo-se um Passo à esquerda e ao fundo o Itacolomi


Página 142 - Escadaria da Casa dos Contos



Página 146 - Cemitério de S. Francisco de Assis


Página 156 - Coroamento da portada de S. Miguel e Almas (Bom Jesus de Matozinhos)

REFERÊNCIAS

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BANDEIRA, Manuel. O “nosso” Saint-Hilaire. In: A Província. Rio de Janeiro, 28 de junho de 1928a.

BANDEIRA, Manuel. Ouro Preto. In: Ilustração Brasileira. Rio de Janeiro, Junho, Julho, Setembro de 1928.

BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009.

BAZIN, Germain. O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1971. (Ed. Francesa 1963)

BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, [1983] (Ed. Francesa 1956).

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BORTOLOTI, Marcelo. Um gênio reprovado. In: Revista Época, 02/07/2013.

DELAMARE, Alcibíades. Villa-Rica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935. Ilustr. fotos c/ planta.

DIAS, Silvana Moreli Vicente. Cartas provincianas: correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. São Paulo: Global, 2017.

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 1938.

GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de. Itinerários: cartas a Alphonsus de Guimarães Filho [de] Mário de Andrade e Manuel Bandeira. São Paulo: Duas Cidades, 1974,


MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

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MOURA, Murilo Marcondes de. Manuel Bandeira. São Paulo: Publifolha, 2001. Série Folha explica.

PONTUAL, Roberto. Dicionário das artes plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

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3 Comentários

  1. Texto excelente!!!! Parabéns!!!!! 👏👏👏👏

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  2. Creio que o cemitério não é de S. Francisco de Assis; é de S. Francisco de Paula.

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    1. Fábio, confira novamente, este Cemitério é o de S. Francisco de Assis, inclusive, se observar, a tarja do portal dele são os atributos do Santo, ou seja os estigmas das chagas de Cristo e São Francisco.

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