Sete Lenços

Por Neto Moreira

Imagem: www.abruxapreta.com.br

Pela terceira noite seguida, brilhava em sua mente, dormente, a mesma cena pintada em tecnicolor agudo: a Benzedeira cavalgava uma nuvem, com seus cabelos compridos e cinzas esbaforidos a vento, com sua mão direita estendida, muda, estática, como se fosse fácil andar nos céus, vinha até ele e tirava sete lenços amarrados em seu pescoço. Era isso. Pouco e tanto, tanto e pouco. Não sabia se a cama estremecia ou se era o sentimento a lhe balançar o corpo trêmulo. Presságio ou devaneio o que veio?

Sabia-se alma mais que gente e talvez por isso o sonho, sente. Místico de patuá, mantra, missa, terreiro e o que Deus dará. Oxalá! Não queria ficar fora do Paraíso prometido por detalhes técnicos e assim o entalhe de tantos credos, credo em cruz não alcançar alguma luz! Presságio ou devaneio o que veio? Pouco importa se, iria ele, fazer a santa hora em que os mistérios são desvendados. Olhos fechados para o sonho em tríade? Nunca passou pela cabeça do crente! Iria até a benzedeira, contar narrativa e pedir explicações. Não há oculto que resista ao culto.

Não conseguiu tecer palavras à mulher amada que passava o café com alguma falta de fé ao ato. Vestiu roupa branca, saiu pela porta como se o tempo lhe faltasse ar, não sem voltar, entrar dentro da casa novamente, fazer um credo e pisar com pé direito na escada de cimento batido, batido pelo compasso dos passos que dele fez uso. Caminhos no escuro? Não. Haveria cuidado até a casa da velha senhora, para criar a santa hora em que os mistérios são desvendados.

Foi cumprimentado pelo fazedor de pães, pelo guarda e o vizinho que colocava água para os cães. Não conseguiu ensaiar retorno. As palavras morriam no pescoço, sem tomar forma na língua seca. Presságio ou devaneio? “Prudente alimentar as pernas” – pensou. E não se demorou até o bairro vizinho que era pobre como um Francisco, mas haviam pipas no céu desfazendo a crença que bonança é bolsa cheia de moedas. Chegou, no fim do morro onde morria a rua, na casa sem números de contar. Já mal conseguia respirar.

Como lhe era difícil chamar pelo nome, bateu sete palmas cabalísticas para anunciar a vinda de quem finda uma procura. Faltavam apenas as respostas, a benção para maldição, o desatar dos nós para quem caminha só sem saber daquela sina. Presságio ou devaneio? Era por isso que veio.

As imagens dos santos à frente da casinha, mudas, não respondiam aos apelos. A fala, na boca seca, traía o movimento do corpo aguado pela espera. Não sabia se entrava ou se acendia vela para o peticionamento da presença da Benzedeira no portão que fosse, havia uma foice na garganta do pedinte, contando o tempo para lavrar à sangue o campo do corpo, em seu ofício de corvo. Foi uma vizinha que disse: - “Dona Elaine morreu, Fio. Três dias atrás, nem tanto tempo faz”.

Sentou ao chão, mas chorou apenas água e sal. Faltavam as palavras, a esperança, o ar para a vida que se esvaia no porquê do entendimento das coisas que não tem o tem. Quando morria pela boca sem respiração, viu sair da casa a Benzedeira, em nuvem, os cabelos místicos de bruxa, a mão levantada... coçou os olhos. Era miragem a parada dos olhos? A imagem sumiu, quem viu, viu. Havia, em seu lugar, uma criança preta, menina de uns nove anos, com sorriso disfarçado em rosto sereno demais para a idade.

Caminhou até ele em pés seguros como se previsse o futuro. Disse em voz de ternura:

- Sou neta de Elaine, fiquei aqui quando ela se foi, mas ela nunca me deixa. Me ensinou a benzê os vivente e os morridos. Tô vendo aqui amarrado, Ah, meu filho, esse é Vento Virado, um perigo danado!

Virou o resto de gente afogado em palavras em direção ao Sol, colocou-o com os braços abertos nas pilastras do portão escancarado, ele de fora, ela de dentro. A viu fechar os olhos e a acompanhou no gesto não se antes ter a impressão de ver uma velha atrás dela, mas não forçou a vista, porque agora só lhe importava apenas o crer. Ouviu como canção:

- “Grande Nome de Jesus, Maria e José, São Romão, Três Reis Santos em comunhão

Compadece de quem virou do avesso no vento

Do ar, do sol, da lua, das estrela, do tempo

Quando Cristo andou pelo mundo ele fez o primeiro milagre

Curou o cego, o aleijado, o paralítico, o surdo e fez o morto andá

Quem há de duvidá?

Santa Iria tinha três filha: Uma lavava, outra cosia e outra pela fonte ia.

Perguntou à Santa Maria: Vento Virado, com que curaria?

Com um Padre Nosso e sete Ave-Maria”

- Reza agora comigo, filho. Padre Nosso...

Enquanto rezava as sete aves marias, puxou da garganta do moço, sete lenços materializados, o último, com sangue. E ele então inspirou com força de nascituro vindo ao mundo, como se não respirasse fizesse tempo, aos berros.

- Vento Virado sopra dentro da gente, fazendo, sem achar saída, vendaval na vida. Embaralha os pensamento, deixa a gente mudo de contentamento. Sopra tanto que pode te levar para o céu, do jeito errado. Mas veja você, foi curado. Não agradeça a quem não fez nada por si. O caminhar já seguro, só não ande pelo escuro. Eu fico aqui, não porque escolhi, porque fui escolhida. Vai, filho...

Agora, já não disse uma palavra, porque não lhe cabia, não porque lhe minguava à língua. Desceu a rua no mesmo silêncio que se fazia por dentro. Inspirava, o ar, inspirava-o toda aquela situação, respirava a reflexão. Crendice ou tolice, presságio ou devaneio? Não importava, porque veio.


Neto Moreira é um poeta fajutinho, contista e compositor de rocks rurais.

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