Causa Mortis

Por Neto Moreira


A confusão do dia a dia, essa senhora dos destinos: Um corpo caído na calçada defronte a um alto edifício. Quebra-cabeça difícil que uma procissão de curiosos como formigas em trabalho, dava-se o trabalho de procurar intento em olhar, com descontentamento e espanto mórbido, o homem que encerrou sua caminhada nas bordas de uma calçada qualquer. Não havia sangue, mas seus olhos, abertos, diziam da tristeza que golpeou o coração e abriu contagem para ver se levantava. Não pôde fazê-lo, com esforço e com zelo, e por isso tinha ali a campa a perder calor. Ao seu lado, uma folha de papel caída. Para toda vida, um fim. Para cada morte, um jardim.

Os corvos que o rodeavam, apressavam seus julgamentos fortes sobre a causa mortis. Um se abaixou, pôs o ouvido no peito e sentenciou: - É falecido, de fato, só o fato não é esclarecido”. As sirenes anunciavam um possível fechar das cortinas para o circo fúnebre. Mas os cochichos quase que incomodavam o morto, “Teria sido infarto”? “Seria alguém farto da vida”? E caravana perante o desconhecido trotava sua marcha até que os homens da lei pudessem dá-lo alguma proteção e dignidade. Do outro lado da rua, uma senhora sentada em cadeira de rodas gritava palavras que se perdiam nos ruídos das avenidas vivas, velando displicentemente o morto.

Chegaram duas ou três autoridades acostumadas com os tristes mistérios da humanidade. Tomaram nota de alguns notáveis que garantiam, todos eles, serem os primeiros a chegar no sítio, mas nada de explícito puderem dizer. À sombra do prédio, um homem morto, uma folha de papel ao seu lado e o séquito que se formara.

Como nada diziam que pudessem esclarecer a situação, já se preparavam para embalar aquilo que nos sobra na hora derradeira e marcada, quando, a custo de uma tempestade de buzinadas, a velha senhora do outro lado da calçada, ignorava a serpente de carros e sua feroz picada, para vir falar aos policiais, sobre os ais e porquês da cena narrada. Chegou afoita e afônica e quase não lhe perguntaram a graça, julgando-a louca desvairada.

- Não se enganem com as pernas de ferro que me trazem aqui agora, com cabelos arredios aos pentes, trajes físicos amarrotado pelo tempo e a aparência desoladora, dessa morte, sou espectadora!

- No que pode ajudar a anciã apressada se essa morte não foi matada?

- Os olhos velhos, que já viram tudo o que o mundo apresenta, senta, senta, que a estória é para os crentes!

Como se não tivessem outra alternativa à pedida, por ofício do compromisso legal, tomaram bloco de notas ainda que sem sinal de vontade para ouvir a fala lenta, mas que rogava propriedade:

- Do lado de lá da calçada, sentada, como todo velho a esperar o passar do tempo que é lento na minha idade, ia vendo a cidade, imaginando as vidas por detrás dos ternos e expressões faciais variadas. Vi o distinto cavaleiro a passos calmos, talvez por caminhar para seu destino, agora findo. Meus olhos se perderam dele por um instante, para ver, navegando pelos ares, uma folha de papel que caia devagar, num valsar constante, lento, leve e de belo gingado, atirado de alguma janela do edifício.

- Minha senhora, a hora nos compromete, pode dar fim à sua exegese?

- Sim! Eis que por espanto, sincronizado entre o tempo e o encanto, deu-se que a folha de papel encerrou a sua bela descida justamente na fronte do vivente que dela não se deu conta. Do encontro, um barulho seco, e como bêbado fosse, cambaleou para vala que vida lhe reservou.

- “Ora, não se brinca com nenhum passamento! Senão é crime é desdém, coisa amarga. Quer dizer a senhora que a folha de papel transformou este homem em alma?

- Eu não sei meu filho, mas foi o que vi-lo. Se minha fala é desafiadora, como dito, sou só a espectadora.

Alguns segundos onde ninguém se falava, ninguém se mexia, engessado pelo assombro, dúvida e pelo raciocínio que colapsava com a fala da senhora. O policial então toma a iniciativa que ninguém até então presumira: Pega a folha e, lendo-a, busca explicação para o que estava vendo. Espantou-se, como se alguma verdade ali morasse. Buscou a velha no olhar afoito e à ela balançou a cabeça afirmativamente, como se desse razão ao mistério, devendando-o, dando nomes aos bois... Era uma das coisas mais pesadas que a vida oferece, uma Carta de Despedida de um Amor que se foi.


Neto Moreira é um poeta fajutinho, contista e compositor de rocks rurais.

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