Depois da porta

Por Júlia Duarte Megale


A pressão fria da maçaneta era suficiente para me estremecer dos pés à cabeça, rezar duas orações completas e embrulhar o estômago. No momento que conseguisse puxá-la o suficiente para cima (pois minha porta tem esse defeito) quebraria meu universo inteiro composto pelas quatro paredes emprestadas que me rodeavam. Cada milímetro da pintura gasta sobre o concreto, cada furo errado e cada quadro já compunham a mais familiar das paisagens. Cada cômodo, com seus móveis meio tortos e decorações de gosto duvidoso, representava o habitat perfeito para minha espécie particular. Cada detalhe. Até o ponto turístico que representava a grande janela com vista para a parede verde do prédio vizinho.

No contexto de permanecer enclausurado naquele ambiente em razão da quarentena (ainda) necessária, meu pequeno universo de três cômodos não poderia ser menos que meu paraíso pessoal. Mesmo com os barulhos externos de reuniões sociais de vizinhos, que mostrava a displicência alheia com a segurança de milhares de seres humanos que, assim como eles, respiram, riem, choram, ganham promoções no trabalho, brincam com seus filhos, escovam os dentes pela manhã, indagam sobre seu propósito no mundo, sonham, amam e são amados com tanta intensidade... Perdão, estou divagando. Pensar sobre a vida é muito belo quando não se considera a possibilidade de perdê-la. Enfim, segue sendo meu paraíso mesmo com as enfadonhas tarefas domésticas para mantê-lo habitável; mesmo com a falta de luz solar; mesmo que não tenha cortinas no quarto; mesmo que os gatos assassinem brutalmente todas as plantas; mesmo que a cama fique rangendo a cada movimento e mesmo que sair dela pela manhã esteja se tornando um desafio cada vez maior.

Ainda com tudo isso, parece melhor do que terminar de abrir a porta pois, depois de tantos dias já impossíveis de se contar, o opressor ambiente exterior ainda é uma ameaça latente. Ainda morre-se depois da esquina. Ou pior, ainda mata-se. Mais brutalmente do que os gatos jamais poderiam. E, além de tudo isso, há o céu. Depois da porta daria para vê-lo. E é tão majestoso, tão pesado, tão incognoscível, tão infinito...

Talvez fechar a porta seja mais seguro, por ora.


Júlia Duarte Megale tem 20 anos, adora escrever, é fã de Virginia Woolf e estuda Biotecnologia na UFU       

🦆

Este conteúdo foi possibilitado por diversos financiadores. Façam como eles e apoiem o jornalismo independente colaborando com doações mensais de a partir de R$5 no nosso financiamento coletivo do Catarse: http://catarse.me/jornaldepatos

Postar um comentário

4 Comentários

Obrigado por comentar!