Ode à Cachaça

Por Jô Drumond

Imagem Ilustrativa: Freepik

Os camponeses Marli e Mário, casados havia décadas, não foram brindados pela natureza nem pelo Todo-Poderoso com o dom da procriação. Viviam os dois num terreno de poucos hectares, herdado dos antepassados de um deles. Ela cuidava da casa, da cozinha, do terreiro, da horta, da pocilga e do galinheiro. Ele, para manter o preceito de bom provedor, se encarregava do minguado gado leiteiro, da lavoura e de alguns biscates, que lhes garantiam o sustento. À tardinha, tendo lavorado o dia todo, ele se dava o luxo de ir a uma birosca de beira de estrada, para biritas e lorotas. Aos poucos, o eventual tornou-se habitual. As biritas tornaram-se “porres”. Mário passou a voltar cada vez mais tarde, tropeçando nas sombras da noite e caindo aqui, ali, acolá. Dependendo do teor etílico do sangue, visualiza figuras fantasmagóricas na escuridão da Lua nova e, eventualmente, ao chegar a casa, enchia sua meiga mulher de porradas, sem motivo algum, talvez para simples descarrego de energias ou então para mostrar quem cantava de galo.

O teto da birosca era de zinco; o piso, de chão batido; os arremedos de paredes eram improvisados com telas de arame. Dentro do pretenso bar, via-se apenas uma velha mesa de sinuca, caindo aos pedaços, um freezer todo enferrujado, duas mesinhas da Brahma e poucas cadeiras, sucateadas em algum ferro velho. Situava-se num cruzamento de duas estradinhas de terra, sem movimento algum. Recebeu, talvez por esse motivo, talvez por ironia, o pomposo nome francês de Carrefour, que pode significar cruzamento de ruas, encruzilhada e também ponto de encontro. Marli habituou-se a passar o dia todo sozinha. Não tendo vizinhos nas proximidades, conversava com os animais domésticos para aliviar o peso da solidão. À noite, não contava mais com a presença do marido. Ele preferia a companhia dos cachaceiros. Substituía a janta, preparada por ela, pelo néctar “nosso de cada dia”. Tristonha, desgostosa do marido e da vida, Marli não sabia o que fazer. Estava cansada de lhe pedir que chegasse mais cedo e, sobretudo, que voltasse sóbrio para um dedo de prosa, um jantarzinho romântico à luz de lamparina, como nos velhos tempos, e, quiçá, um pouco de chamego, cada vez mais escasso. Pensou em escafeder-se, ganhar o mundo botar o pé na estrada... Para onde ir? Como sobreviver sem profissão e sem dinheiro? Devia existir algum meio de mudar de vida, ou melhor, de se livrar daquele tipo de vida. Ser empregada doméstica em casa de estranhos? Nem pensar!

Certa noite, enquanto esperava o marido e matutava sobre o futuro incerto, resolveu provar um gole de cachaça, pela primeira vez. O líquido ardente desceu queimando-lhe a boca e a garganta. Esconjurou.

- Cruzes! que coisa horrível! Não é por acaso que isso se chama “água-ardente” - disse a seu cão de estimação. – Sendo tão ruim, por que tanta gente se afeiçoa à maldita “água que passarinho não bebe”?

Como o cão nada respondia, ela continuou a conversar consigo mesma.

- Os passarinhos não são bobos. Como poderiam gostar de algo tão ruim? No entanto deve existir alguma razão para a existência de tantos viciados neste mundão de Deus. Vou descobrir o “x” da questão. Claro que vou! Ou então não me chamo Marli.

Tomou outra dose, e outra, e outra... começou a sentir uma leveza, uma espécie de bem-aventurança, que desconhecia até então. Passou a ver beleza nas coisas mais banais diante de si. Cheia de contentamento, sentia-se quase feliz. Logo após, o profundo e regenerador sono dos ébrios apagou-lhe as tristezas da jornada anterior, mas a lembrança do bem-estar etílico perdurou.

Enfrentou a labuta do dia seguinte com o firme propósito de testar o efeito da véspera com outra marca de aguardente. Teria sido casual ou não? Ela sabia que Mário malocava seu estoque de pingas no cômodo de despejo. Encontrou lá uma grande caixa, repleta de garrafas de diferentes marcas. Pegou uma qualquer para o teste. Após diversos goles, sentiu novamente um bem-estar agradável, uma espécie de bonança, de relaxamento prazeroso.

Já que nada havia a fazer enquanto aguardava o retardatário compulsivo, aprovou a doce companhia da bebida, embora ardente, para amenizar o tédio. A cada dia testava uma caninha diferente. Desistiu de reclamar das ausências de Mário. - Que se danasse com seus amigos cachaceiros. Que fossem todos pros quintos dos infernos...

Marli já não era a mesma. Sua meiguice foi, aos poucos, se transformando em matreirice. Certa noite, Mário chegou mais ébrio que um gambá, cambaleando, com olhos vidrados, resmungando palavrões, e se pôs a espancá-la, sem motivo aparente. Ela também havia bebido, porém bem menos que ele. O álcool lhe aqueceu as veias, ferveu-lhe o sangue, subiu-lhe à cabeça e lhe deu coragem para enfrentar o agressor. O antigo “saco de pancadas” revidou inesperadamente com força total, complementada por porretadas e cadeiradas. A sova foi tamanha, que o pobre ébrio passou o resto da noite prostrado no assoalho. No dia seguinte, procurou o posto de saúde do arraial mais próximo, cheio de hematomas e com algumas fraturas. Alegou ter sido atropelado, na estrada. Jamais contou a quem quer que fosse como se deu o atropelamento. Jamais levantou a mão contra a meiga Marli... e foram infelizes para sempre.


Jô Drumond é escritora e tradutora e já publicou 17 livros. Colabora com o portal Acontecendo Agora, com a Folha Patense e publica com frequência no próprio blog.

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10 Comentários

  1. Que bom bater de vez em quando em quem espanca! E que bom ler essa história pelo texto sublime de Jô.

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  2. Achei que, toda a coragem dada pela "amardiçoada", a faria desistir dessa vida infeliz...

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  3. Parabéns para a Marli do conto e para todas as "Marlis" que conseguem se defender e mostrar que não são saco de pancadas.
    Este conto trás a tona o vício pelo álcool que já mudou a vida de muitas famílias. A história do conto é remota, mas o contexto sempre atual.
    Parabéns Jô!

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  4. Parabéns Jô!!! Vc consegue nos fazer enxergar uma vida sofrida e infernal, de uma forma leve e poética.

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  5. É assim a vida, até os mais mansos um dia reagem, de espancador, virou saco de pancadas, só bastou Marli provar do néctar tão apreciado por Mário pra ter a mesma coragem e revidar as covardias que sofria. Parabéns Jô, seus textos são preciosidades!

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  6. No ponto de encontro do Mário ou na encruzilhada da Marli, a “marvada” entrega resultados inopinados. Transforma fracos em fortes e, no caso da Marli, estabelece novos limites de convivência, embora o caminho da infelicidade juntos se permeie pelo desamor. Primor de narrativa desta cronista da vida, sábia Jô Drumond. Obrigado. Grande abraço!

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  7. Pois a Marli usou o único recurso disponível. Com doido, tem que ser doido e meio. Belo causo, primor de escrito da prima Jô Drumond. Parabéns!

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  8. Jo e seus apreciados causos. Gostei da reação de Marli, sofrer esses abusos eternamente é inaceitável. Ela poderia tentar a vida lá fora. Porém, resolveu ao modo, pois deixar suas terras para um futuro dividoso?
    Resolveu com dignidade. Apanhar, nunca mais.
    Denise Moraes

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  9. Jo e seus apreciados causos. Gostei da reação de Marli, sofrer esses abusos eternamente é inaceitável. Ela poderia tentar a vida lá fora. Porém, resolveu ao modo, pois deixar suas terras para um futuro dividoso?
    Resolveu com dignidade. Apanhar, nunca mais.
    Denise Moraes

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  10. A vida da pobre Marli,não era nada facil.Ter um marido cachaceiro,em casa toda noite ,não tinha solução. O sujeito não mudaria nunca.Ela se viu numa encruzilhada. Fazer o que?
    Experimentou,aprendeu a beber e ficaram dos bêbados juntos,dado e levando porradas,mas infelizes ou quem sabe,nao?

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