Inocência Sacrílega

Por Jô Drumond


Monsenhor Manoel Fleury Curado, da diocese de Patos de Minas, era encarregado de atender a várias paróquias na zona rural para ministrar os sacramentos e para dar suporte espiritual aos fiéis. Convivia com os mais variados tipos humanos e, às vezes, via-se em situações absolutamente inusitadas.

Conta-se que um belo dia, ao abrir o sacrário de uma igrejinha interiorana, encontrou nada menos que uma garrafa de cachaça. As hóstias consagradas, desaparecidas, certamente tinham valido como tira-gosto ao cachaceiro.

Monsenhor Fleury gostava de contar e recontar um fato sucedido na capela do Pântano, durante uma cerimônia de batismo. O padrinho do bebê era um capanga, afamado pelas façanhas jagunceiras. Contavam-se, à boca pequena, as maldades e as mortes, supostamente passadas pelo fio de seu facão. Todos o respeitavam e o reverenciavam, tementes de sua brabeza.

Estando a cerimônia prestes a começar, e os fiéis reunidos próximos ao batistério, adentrou-se no recinto, o dito, arrastando ruidosamente suas esporas. O sacripanta não se deu o trabalho de tirar o chapéu, nem as armas, em flagrante ultraje ao local sagrado. Ninguém se manifestou contra tal disparate. Continuaram naturalmente como se nada de anormal houvesse. Sem cumprimentar ninguém, a matuto abancou-se, desembainhou o facão da cintura e pôs-se a alisar palhas de milho tiradas do bolso para, supostamente, preparar um pito de palha. Monsenhor teve um ímpeto de indignação, mas conteve-se. A prudência é a mãe da sabedoria – pensou.

A cerimônia desenrolou-se sem tropeços, visto que todos se esforçavam para demonstrar serenidade, sobretudo o padre. Quando acenderam a vela, importante símbolo litúrgico em cuja chama se encontra a pureza espiritual, o finório cavalheiro aproximou-se sem escusas nem cortesias e acendeu seu pito na flama batismal. Pôs-se a fumar sem seca, dentro da igreja, baforando nuvens de fumaça numa incensação tabagística nada convencional.

A cena era tão inusitada que a inicial indignação do padre se transformou em derrisão. Achou graça nas ações do catrumano, nas quais nada havia de sacrílego, uma vez que agia inocentemente, em conformidade com seus hábitos cotidianos.

Após a cerimônia, Monsenhor Fleury aproximou-se dele com ar sereno e perguntou.

- O senhor não é da região?

- Não senhor, sou de Mundo Novo*.

- Ah, pois bem, pois bem, com certeza do nosso “mundo velho”, vê-se que o senhor não é!


* Mundo Novo: cidade próxima à divisa de Goiás, a noroeste de MG


Jô Drumond é escritora, tradutora juramentada e artista plástica. Já publicou 18 livros. Pertence a três academias de Letras: Afemil, AEL e Afesl. É colaboradora do Jornal de Patos, da Revista cultural Desleituras e publica no próprio blog.

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16 Comentários

  1. Gostei demais!...Adoro esse s contos.

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  2. Adorei Jô!!!
    Como sempre, seus contos são maravilhosos, escritos com maestria e zelo. Amo!
    Estamos cercados por sacripantas… desembainhado varas armas contra nós…precisamos mais do que nunca da sabedoria do Monsenhor.
    Adriana Dadalto - Vitória ES

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  3. Parabéns pelo belo trabalho tia Jô como sempre criativa .Bjo

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  4. Parabéns minha ilustre , linda poetisa, que sempre nos trás verdaeiros acontecidos que nos deixam plenos de satisfação.Na cidade do meu pai aconteceram histórias bem parecidas .

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  5. Kkkkk kkkk gostei! Você é uma joia, sempre escrevendo acontecimentos interessantes!

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  6. Soube que Monsenhor Fleury, com quem convivi, na infância, está em processo de beatificação e/ou santificação.
    Ele se hospedava na casa de minha irmã, no Pântano, onde eu gostava de passar minhas férias escolares.
    Havia um quarto, sempre fechado, que lhe era reservado. Os adultos diziam que aquele cômodo era mal assombrado. Hoje me dou conta de que diziam aquilo para que a gente não brincasse lá dentro.

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    1. Rsrs. Verdade, o medo da assombração manteve vcs longe do quarto do pároco.
      Que Monsenhor Fleury seja beatificado/santificado.

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  7. Parabéns Jô!!! Mais um bonito conto e como sempre, nos transporta para a situação narrada.

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  8. Que situação inusitada! Monsenhor Fleury soube sair desta com bom humor e sabedoria. Valeu por mais uma história contada com maestria. Parabéns!!!

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  9. Vc conta com tanta maestria que me vi assistindo tal fato. Parabéns!!!!

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  10. A sabedoria do mundo velho salva.
    Parabéns pela crônica muito convincente.

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  11. Imaginei toda a cena... Causo mineiro dos bons. Abraço, Jô.

    JC Mattedi

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  12. Que situação delicada, mas Monsenhor Fleury foi prudente e sábio, contornou com serenidade a postura desonrosa do padrinho.
    Seus relatos me transportam, me senti presente na cerimônia da Capela do Pântano.
    Parabéns Mestra Jô!
    Neusa - Vitória-ES.

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  13. O mais interessante foi o pessoal continuar a cerimônia como se nada estivesse acontecendo. Pior, casos assim, no matão, são muito bem exequíveis. Pobre monsenhor.

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