Doisdediprosa

Por Mércia Marques

Imagem: tatiana_bralnina


Enquanto ouvia a cantadeira do carro de boi descer a bocaina
minerim picava seu fumo, a paia já estava pronta

E lá ia o carrero:
Vem jeitoso
Vem dengoso
Rolete
Faceiro

Sô Osvaldo, o novo vizim tava ali
para mode assunta dois dediprosa,
sobre as tradição e costume do lugá,
caso de que ele era moço de fora
e tava querendo inturma Minerim

já tava por dentro das novidades da vizinhança
e aí num foi difícil começá a prosa sem disconfiança
ele puxô a memória bem divagá,
foi pra lá do arco da véia buscá o começo do comecim
é que ele num gostava da ideia de taiá os trem do meio pro fim

Minerim falô da escravidão
do minéro do ouro
da miséra do povo
do controle duns sobre otos
da farta de respeito
do excesso de preconceito
da judiação que os home faz com as muié
das crianças abandonada, dos véi jogado, praqui... prali... pra lá...

Ele também falô da pandemia
que cuidado é preciso ter
que é bom dá exemplo
pra mode dispois num se arrependê.

Ele falô dos amigos que tinha perdido
das tristeza do isolamento
da falta de direção política
Como pode o governo não priorizar a vida?
E ainda fazer tanta vacaição com a medicina?

Ele tava mesmo ingasgado
rudiado de revolta
caso de que muito já tinha chorado
por causa dessa "gripizinha" cabulosa.

Ele também tava gasturado com a corrupção
disso tudo
ele disse que pouco sabia
mas sabia bem o que fazia a farta do pão

Ele também falô dele dos
seus sonho de um mundo mió
minerim era um preto véio
sua bagage num era pequena não
ele carregava um tanto de trem no peito
e muito calo na mão

Foi inté bunito ouví o minerim falá
Senti um troço na garganta
uma vontade de chorá
bichim tava ali, inrolando a paia com zóio nadano n’água

Mas vamo dexa pra lá, minerim num tava ali pra fazer ninguém chorá.

Dito e feito!
Minerim redô pro lado
consertô a cacunda
cuspiu no chão
mudô as feição
e pulô de assunto;

Era hora de falá da devoção
Do congado
Das festas de Santos Reis
Dos domingo na capelinha
Do santo padroeiro e das comemoração junina.

Porque também não fala da umbanda,
do candomblé e outras mais?
Quem é quem, pra falá da fé?

Minerim falô de tudo que é trem
trem que ia...
trem que vinha...
trem disso...
trem daquilo... trem de trem e por aí.

Pior que essa trenhera de trem é o furdunço de uai
Uai pra aqui... uai prali...

Só que trem mês, sô Osvaldo não viu nenhum
Mas ele não era bobo de falá
vai que dava uma manota?
A prosa ia longe e o carro de boi também

Nesse tempo, minerim convidô o amigo pra comê um trem
Sô Osvaldo tava disconfiadim... disconfiadim...
e óia dum lado... óia dodô...
E o medo de cometê uma desfeita num era pouco

É... a mesa tava arrumadinha!
Nóssinhora quanta fartura
Sô Osvaldo não sabia onde pô o zóio,
era tudo de lamber os beiço.
Tinha inté rapadura!!!
Hummm...
O café tava fresquim.
O pão de queijo quintim.

Sô Osvaldo comeu, bebeu e agradeceu satisfeito!
Agradeceu também o agrado que o minerim deu pra ele levá
um queijo saído da forma e uma goiabada boa, feito por dona Inhá

Já de barriga impaturrada minerim aproveitô pra mostrá alguns
artesanato feitos pela filha, alguns inté feito da paia do mi.
Cesta, boneca, sombrero, balaim... inté presépio e anjim.

É... o carrero tava demorano
e lá vai minerim conta prosa
nessa ele explicava pro amigo
como chega logo alí, depois de lá,
sem se perder no camim da roça

minerim foi logo explicando
Oia só, dispois que ocê passá a ponte do grande ri
na segunda vorta da estrada
ocê entra na tercera portera dobrano à direita
chegano perto dum pé de Ipê ocê
entra num camizim e vai indo até um monte de trem
dispois disso ocê entra nôta istrada e entrano na incruziada segue reto
retim... inté chegá num monte
chegô no monte né lá não
ocê sobe nele, lá dicima ocê vai vê uma cruiz dotô lado
chegô lá
cê passa ela um cadim
dali lá é logo alí, é só um pulim
é trem duns minutim, num tem como errá

Sô Osvaldo coçô a cabeça pensativo
mas prifiriu continuá todo ouvido

Condefé alguém grita
O Carrero invem cá!
É... pois é, dava pra escutá direito;
Vem estrangeiro
Vem mimoso
Rochedo
Florão

Minerim saiu apressado, sorriso largo!
Êita, trem bão!
O carro de boi tava ali arroiado de mi, virdim!
Dali ia saí um mundo véio de imbondo:
Pamonha, bolo, curau, broa, pudim...
Mas mió mês era a reunião da famia com os vizim.

Mas pode fica tranquilo, ali tava tudo vacinado,
água e sabão tinha pra todo lado,
tinha inté máscara
Nó, quanta alegria tava na cara do minerim!

Sô Osvaldo tava bubim... bubim!
Caso de que nunca tinha visto tanto mi
reunido do tanto que tava ali.

Sô, foi nada não!
Nem te conto;
Enquanto ceis tava redano os trem pá pô o mi... vei um pé de vento
Dona Inhá num sabia o que cudí
e punha um trem cá
e punha um trem ali
inté escutá o “aí, aí, aí” do marido

Nisso ela saiu nas carrera já perguntando o que foi
minerim tava aflito
Uai sá, caiu um trem no meu oi!
Uai sô, né qué mês!
Uai sá, tô te falano que tem um trem aí!

Sô Osvaldo reparô o acontecido e soltou em voz alta
Uai sô, agora entendi tudim, minerim fala trem quando
não lembra do trem que tem que falar ou quando
num pode falá o nome do trem
Uai é quando ele é surpreendido e precisa dum cadim
de tempo no comecim da fala.

Ali danô todo mundo ri
Sô Osvaldo invermeiô, mas entendeu o recado:
Ali num tinha como ficá zangado

Minerim é assim:
Ele num perde oportunidade
um oi dorme e deixa o oto ele deixa acordado
ele chega divagá, mas num fica pra tráis
a percepção é mesmo o seu pulo do gato
pra ele se num tá ruim, tá bom demais

Minerim sabe que tem muito trem esquisito nesse mundo
mas ele também sabe que eles não tão em todo lugar
e pra esses trem que num dá pra redá dês,
minerim faz vassora de paia e varre pra lá

Minerim né bobo não
ele sabe que os trem da vida tudo passa
os bão... os ruim...
E aqueles que ingripa e fica, minerim fais artesanato
e transforma em dinherim.

Minerim é assim:
Ês tem uma trenhera de trem para carregá... mas é feliz.


Mércia Marques é um escritora nascida em março de 1970. Natural de Patos de Minas, viveu toda sua infância na fazenda, de onde tira - até hoje - inspiração para suas criações. Publicou seu primeiro livro intitulado “Rimando com a emoção” em 2009. Depois da estreia, decidiu respirar novos ares e mudou-se para a Bélgica, onde viveu durante alguns anos. A experiência acabou sendo um divisor de águas em sua vida. Ao retornar para o Brasil experimentou um breve hiato e então voltou a dedicar-se novamente à escrita, dividindo sua atenção artística entre poesias e romances.

🦆

Apoie o jornalismo independente colaborando com doações mensais de a partir de R$5 no nosso financiamento coletivo do Catarse: http://catarse.me/jornaldepatos. Considere também doar qualquer quantia pelo PIX com a chave jornaldepatoscontato@gmail.com.

Postar um comentário

2 Comentários

  1. Parabens aos vencedores do festival de artes do unipam diz: Consuelo Nepo

    ResponderExcluir
  2. Ô trem bão esse texto!!!! Parabéns Mércia!!! 👏👏👏👏

    ResponderExcluir

Obrigado por comentar!