Cais

Por Kerolayne Aíssa

Imagem: Paul Brennan

Haviam seis de nós no cais esperando o barco para seguirmos viagem. Os dias tão cheios de cinzas que queimavam no céu. O céu pegou fogo naquela noite e tudo que restou foi aquela cinza úmida de cemitério. Seus olhos estavam quentes naquele dia. Seu corpo inteiro estava. Eu não pude suportar, me perdoe. Tive que fugir e levar as tulipas que dei a você na mesma manhã antes de tudo. Não pude deixar resquícios meus. Só pude deixar cinzas. Você arrancou a própria vida do seio com meu punhal de caça, antes de queimar por completo. Meus olhos oscilavam, meu coração também junto aos nossos desejos. Eu continuei tentando. Continuei, mas seu corpo jamais pegaria fogo a não ser com verdadeiras chamas. E queimei você, mas dessa vez não foi de amor. As gotas caíram naquele dia quente. Seu corpo ainda me aquecia. Agora o céu está cinza como você depois do fim, e você ficou cinza como o céu antes do fim. Eu guardei algumas cinzas de você, mas não posso guardar algumas cinzas do céu. A não ser é claro numa fotografia, mas sem você comigo não quero eternizar mais nada, não quero imaginar o dia seguinte ou o que irei fazer no próximo final de semana. Não quero saber se minhas economias pagam um salmão grande no Villa's Restaurante. Não quero saber se esse barco vai chegar mesmo, talvez ele nem chegue. Na verdade não sei se isso é de fato um cais e muito menos se estou aqui. Acho que me queimei junto de você naquele dia, mas não consegui te seguir até os céus onde você provavelmente está com nossos filhos. Nós os amávamos muito não é mesmo, querida? Nós tentamos fazer o melhor possível para que eles aprendessem a subir em árvores. E eles subiram. Subiram até junto do Senhor na grande árvore da vida e se juntaram ao todo. A árvore também é cinza agora. Nunca poderei me conter ao dizer que te amei mesmo, que os dias com você foram inimagináveis e que nossos filhos eram dois pestinhas muito dóceis, não sei se é permitido dizer isso na mesma frase, afinal de contas você era a escritora e não eu. Aprendi a ler, com uma professorinha em Jaú muito simpática por sinal, tenho lembranças de alguns alunos na sala, algumas crianças, o que me fez sentir mais saudade de você e de nossos filhos, e de como queria vê-los na escola. Talvez se ainda estivessem vivos não me importaria com estudo, você sabe, sempre fui um bruto, nunca entendi nada dos quadros que você olhava e dizia que valiam milhões. Eu era um pequeno leigo, me perdoe. Eu só sabia contar números e mais números e dizer que qualidades de peixes haviam em cada lugar do oceano. Isso nos deixou mais ricos que seus poemas e nos deixou mais afastados também. Não sei o que dizer mais, acho que não pode me ouvir, acho que mortos não rezam.

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