O Estouro da Boiada

Por Jô Drumond

Imagem: Edson Abreu

Tumultos envolvendo multidões, como o da boate Kiss, em Santa Maria (RS) que matou 242 pessoas e feriu 636, causam alvoroço em grande escala, com resultados nefastos. O pânico instalado em aglomerações humanas pode provocar uma reação descontrolada, tal qual o “estouro da boiada”, literariamente retratado por Euclides da Cunha e Rui Barbosa: um alvoroço geral se instala por motivo real ou presumido, às vezes por coisa banal, como o ruflar de asas de um pássaro. Os bois desembestam em disparada sem saber que rumo tomar. Os que têm o infortúnio de cair são pisoteados pelo tropel em derribada.

O estouro da boiada é tema de dois textos, que valem a pena ser revistos, pois o que é belo deve ser apreciado e compartilhado. Destarte, compartilho excertos de Euclides da Cunha e de Rui Barbosa, que abordam tal fenômeno:

Uma rês se espanta e o contágio, uma descarga nervosa subitânea, transfunde o espanto sobre o rebanho inteiro. É um solavanco único, assombroso, atirando, de pancada, por diante, revoltos, misturando-os embolados, em vertiginosos disparos, aqueles maciços corpos tão normalmente tardos e morosos.
E lá se vão: não há mais contê-los ou alcançá-los. Acamam-se as caatingas, árvores dobradas, partidas, estalando em lascas e gravetos; desbordam de repente as baixadas num marulho de chifres; estrepitam, britando e esfarelando as pedras, torrentes de cascos pelos tombadores; rola surdamente pelos tabuleiros ruído soturno e longo de trovão longínquo [...] milhares de corpos que são um corpo único, monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico, precipitado na carreira doida. E sobre este tumulto, arrodeando-o, ou arremessando-se impetuoso na esteira de destroços, que deixa após si aquela avalancha viva, largado numa disparada estupenda sobre barrancas, e valos, e cerros, e galhadas [...] até que o boiadão, não já pelo trabalho dos que o encalçam e rebatem pelos flancos senão pelo cansaço, a pouco e pouco afrouxe e estaque, inteiramente abombado. (Euclides da Cunha)

Outro primoroso excerto, escrito posteriormente e amplamente conhecido, surgiu incrustado como pedra preciosa, numa conferência feita por Rui Barbosa, Em Juiz de Fora, em 1910. O belo texto foi possivelmente inspirado na obra prima de Euclides da Cunha, publicada anteriormente.

Vai o gado sua estrada mansamente, rota segura e limpa, chã e larga, batida e tranquila (sic), ao tom monótono dos eias! dos vaqueiros. Caem as patas no chão em bulha compassada. Na vaga doçura dos olhos dilatados transluz a inconsciente resignação das alimárias, oscilantes as cabeças, pendente a magrém dos perigalhos, as aspas no ar em silva rasteira por sobre o dorso da manada. Dir-se-ia a paciência em marcha, abstrata de si mesma, ao tintinar dos chocalhos, em pachorrenta andadura, espertada automaticamente pela vara dos boiadeiros. Eis senão quando, não se atina por que, a um acidente mínimo, um bicho inofensivo que passa a fugir, o grito de um pássaro na capoeira, o estalido de uma rama no arvoredo, se sobressalta uma das reses, abala, desfecha a correr, e após ela se arremessa, em doida arrancada, atropeladamente, o gado todo. Nada mais o reprime. Nem brados, nem aguilhadas o detêm, nem tropeços, voltas ou barrancos por davante. E lá vai, incessantemente, o pânico em desfilada, como se os demônios o tangessem, léguas e léguas, até que, exausto o alento, esmorece e cessa, afinal, a carreira, como começou, pela cessação do seu impulso. Eis o estoiro da boiada. (Rui Barbosa)

Euclides descreveu de forma magistral, em Os sertões (1902), um dos quadros mais épicos do sertão brasileiro, após ouvir o relato de um vaqueiro, sem nunca ter presenciado o estouro de uma boiada. Certo dia, ao ler seu texto para um pequeno grupo, um ouvinte boiadeiro, que já havia presenciado diversos estouros, ficou absolutamente perplexo. Segundo ele, para descrever tão bem o fato, Euclides deveria ter visto pelo menos uma centena de estouros de boiada.

O fato relativamente comum no sertão, narrado em ambas as citações, é de importância secundária. Relevante é o registro de ambos os autores em prosa poética, sobretudo a força estilística e a escolha lexical, enfim, a beleza textual que continua encantando as novas gerações de leitores.


Jô Drumond é escritora, tradutora juramentada e artista plástica. Já publicou 18 livros. Pertence a três academias de Letras: Afemil, AEL e Afesl. É colaboradora do Jornal de Patos, da Revista cultural Desleituras e publica no próprio blog.

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7 Comentários

  1. Todo o texto de Euclides da Cunha é mesmo vivo: há, nele, movimento e som ; as palavras, em tropel, num aparente desconcerto , mas bem concertadas , vão reproduzindo a cinética e a fonética próprias de fenômeno assim (estouro de boiada). Já o de Rui Barbosa, talvez pela ortoepia ou por prosódia de viés jurídico, não contém a mesma melopeia , no que Euclides , no trato de tão dura realidade, um mestre, senão doutor, era.

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  2. Escritora exímia, tem uma habilidade incrível com as palavras, faz alusão a outros textos que se seus autores aqui estivessem, se orgulhariam sobremaneira, perfeito!

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  3. Ótima lembrança e homenagem sua, Jô, a dois magníficos textos brasileiros.
    Um nervoso, tenso e ao ritmo da desabalada carreira, como se o autor, Euclides, tivesse tocado até pouco antes e com vaqueiros, a boiada de repente estourada. Outro, Rui, a descrever tranquilamente a correria do gado, como se a observasse com a mesma paciência e com o distanciamento do acontecido.

    Rememorar esses textos e escritores, Jô, é melhor do que muitas aulas de português.
    É uma chamada para a beleza e riqueza de nossa língua.
    Parabéns por sua ideia de acordar belas descrições feitas com palavras que estavam adormecidas!
    Abraço, Chico Brant

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  4. Ótimo texto! Atual!
    Citações oportunas que embelezam a página e retratam fielmente como acontece a insanidade humana diante de um perigo iminente.
    Trabalho de pesquisa onde a autora usa da criatividade para descrever uma fatalidade de um rompante.
    Regina Menezes

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  5. Perfeita comparação entre o tumulto de multidões e o estouro de boiada, os dois são incontroláveis. Parabéns Jô!

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  6. Belíssimo texto, tendo dois grandiosos escritores, os quais, Rui Barbosa transforma o caos no belo, com palavras suaves, e Euclides da Cunha, o qual viveu no Sertão, assimilando o que há de verdadeiro, sem fantasias.
    Sempre com o propósito de exaltar grandes escritores jamais no ostracismo por seletos leitores.
    Parabéns, Jo!

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