Anônimos: entre a vida e a bebida, histórias interrompidas pelo álcool - Parte 2

Por Gustavo Rubim*


ASSEMBLEIA I

ESTAVAM TODOS LÁ NAQUELA MANHÃ PARCIALMENTE NUBLADA, rostos que eram apenas interrogações, histórias perdidas, olhos perdidos. Para mim era um ambiente novo, mal me conheciam e eu só levava o meu PREconceito, como os que dizem que ali só existe doido, os que vivem à margem da sociedade – isso em partes é verdade. A maioria, cabisbaixa, repara a cerâmica rajada, em um ato costumeiro por aqui: reparar o chão, ou seria uma forma de fugir da realidade e mergulhar nas profundezas do pensamento? Existem memórias felizes? Param e ali ficam, pêndulos na cadeira de plástico branco, em círculo. Bem, não pode-se dizer que seja um círculo, mas uma tentativa. Apenas um fala, o tempo todo, não cala a boca esse Adriano, que tagarela. Entre comentários relevantes e pura asneiras, pode-se observar algo diferente nele, é maldoso, aqueles olhos são diferentes, possui uma espécie de desejo, malícia ao observar as meninas.

Giro o pescoço em 180 graus e observo o rosto que mais me assusta, talvez por estar ferido. Um rasgo dois centímetros abaixo dos olhos e vai até próximo à boca. Ainda é vermelho, mas sem vestígio de sangue seco. Esse detalhe dá ainda mais medo, para aquela face psicopata, desse tenho medo. Até descobrir que era uma alma inofensiva, Everson.

“Vamos começar a Assembleia”. – disse Maria José ou Dona Zezé, carinhosamente chamada por Adriano.
– A senhora é uma mãe para mim, Dona Zezé. – revela Adriano com aquela voz espalhafatosa, como o jeito e tudo nele.
– Não Adriano, não sou não, sou uma amiga, só isso.

Digo que compreendo o modo rude de Dona Zezé, ela é assim mesmo, ríspida pelo ofício. Foi ela que encontrei no primeiro dia que estive no Caps AD. Me recebeu com aquela cara amarrada, própria dela, não há outra, o cabelo rabo de cavalo e as mãos entrelaçadas na altura do colo. Talvez fosse um método de defesa daquela pobre mulher, não criar laços afetivos com pacientes, não dar esperanças de amor àqueles homens solitários. Muitos imaginam, aquele imóvel, com fachada de grades, muro verde-cana e uma daquelas árvores de calçadas à porta, nº 710, da rua Dona Luíza, como um depósito de almas fracassadas, a Casa Verde, de Machado de Assis.

– Que Assembleia? – Pergunta Alexsandro.
– A reunião que fazemos todas as terças-feiras, seu Alex, para ouvir as sugestões de vocês. – responde calmamente, Flaviana.

Sabe aquela expressão doce de pessoa? Então, cabe perfeitamente a ela, doce não, um pote de mel inteiro. Até seria enxergar- se nela um princípio de sorriso, olhos sempre úmidos. Pessoas boas têm olhos úmidos, podemos nos ver refletidos através deles. Seus passos são sutis, o que deixa a aproximação de Flaviana quase imperceptível, quando nota, lá está, com a prancheta apoiada ao braço esquerdo, o jaleco com renda nas bordas e botões brancos, e o sorriso aberto.

– Não me lembro de ter participado. – diz seu Alex depois de uma longa pausa.
– É aquela coisa que a gente fala o que precisa. – tenta explicar seu Israel.

Sempre prestativo, seu Israel deixou uma pergunta no ar. Ele dá um jeito de achar a resposta, um método de resolver o problema. Seu Alex, pouco conversa, sempre para na mesma posição: o olhar mais perdido entre todos os outros, não é possível que pense desse tanto, talvez nem pense, mergulha em um estado de hibernação. Admira-me o questionamento, deve ser a memória mesmo, ali poucos se recordam das coisas. Israel, diferente dele, encontra-se em um estado de recuperação melhor. É lúcido e me recebe todos os dias no portão de entrada, desde o primeiro, o que me apresentei naquela Assembleia.

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PASSAM DAS OITO DA MANHÃ, já da esquina vejo o guarda e seu uniforme marrom com detalhes amarelos, a função: “proteger as cadeiras”. Cumprimento-o de passagem: percebo que ando correndo, nem sei se isso é correto, ou se anda ou se corre, enfim, o dia anterior foi um daqueles que almocei sem sentir o gosto da comida, que fui ao trabalho sem observar as belas casas da Getúlio Vargas. Só hoje notei o contraste arquitetônico até chegar aqui. Da Nito de Deus, onde resido, há apenas prédios e mais prédios, segue assim até chegar à avenida Paracatu, a rua mais aleatória da cidade: supermercado, escola, igreja, cemitério e bares para ambas as classes sociais, de tudo um pouco. Ao entrar no bairro Lagoa Grande, local do Caps, entra-se em uma Patos do século XX, as casas de paredes grossas e arabescos nas grades, as cerâmicas escuras e acabamentos quadrados, assim também são os moradores, velhos e presos em outro tempo.

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RESPONDE-ME COM UM SORRISO, era gente boa. Sérgio, não tem cara de segurança, geralmente é alegre e brincalhão, ora ou outra entra na roda de conversa dos pacientes que surgem com os mais variados assuntos, como a regionalidade de Silvano, nascido em Cacete Armado, Tocantins.

– Quem nasce no Cacete Armado é o que? – Pergunta Sérgio, arrancando gargalhadas da turma.

Silvano se defende dizendo que em Minas também existiu um Cacete Armado, que atualmente é a cidade de Natalândia, noroeste do Estado.

Anda pêndulo para frente, como alguém que se recupera de um tropeço, ergue a camisa e me mostra três grandes vértebras estufadas, pouco acima da bunda.

– Caí de um balanço, usado em obras. Fiquei um bom tempo de cama sem mexer um fio de cabelo.

Depois de recuperar os movimentos, as únicas sequelas são aquelas três vértebras estufadas. Hoje vende picolé na rua e reclama da sandália que começa a ferir o pé direito, pelo atrito da correia.

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PASSEI PELO GUARDA, ouvi um pouco da conversa e fui até Israel, que já me esperava naquela terça-feira. Início de semana são os dias mais agitados, ao decorrer, o movimento diminui gradativamente. Com uma camisa do Flamengo e o cavanhaque bem aparado, seu Israel me cumprimentou, segui-o até uma sala, observei o aviso em papel sulfite “banheiro interditado” e vi sair de um dos dormitórios uma gorda feia. Em um pequeno quarto, que parecia ainda menor pela presença de uma cama. Ali qualquer espaço vira dormitório, tudo que querem é um lugar para descansar, porém aquele era destinado aos funcionários, pois ali estava também uma mesa com bolsas e pertences. 

[CONTINUA]

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FICHA CATALOGRÁFICA

RUBIM, Gustavo Pereira. Anônimos; entre a vida e a bebida, histórias interrompidas pelo álcool/ Gustavo Rubim – Patos de Minas: EDITORA, 2019, 116 p.

Capa: Gustavo Oliveira
Diagramação: Gustavo Oliveira
Fotografia: Gustavo Rubim
Revisão: Profª Ms. Regina Macedo Boaventura/ Profª Sintia A. Pereira da Silva
Orientadora: Profª Ms. Regina Macedo Boaventura

1. Livro. 2. Livro-reportagem. 3. Alcoolismo. Jornalismo Especializado I - Centro Universitário de Patos de Minas. Fundação Educacional de Patos de Minas, Patos de Minas, 2019.


* Gustavo Rubim, 22 anos, brasileiro, jornalista pelo Centro Universitário de Patos de Minas, Unipam - Brasil. Mestrando em Integração Latino-americana pela Universidade Nacional de La Plata, UNLP - Argentina. Vive em La Plata - Argentina.

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