Guerra: quarto escuro

Texto e imagem por Renata Bastos


"Kabum!"

Ela acordou ao som de fogos. Do pequeno quarto escuro localizado embaixo da não tão conservada casa, o barulho era o máximo que ela podia ter. Por isso, ela imaginava cores vibrantes no céu e muito brilho como quando o ano novo chegou. Deitada na cama, ela sempre planejava o dia seguinte. Ela iria sair, ir até a sorveteria preferida dela e pedir quatro bolas - duas de sabor framboesa e as outras de morango. Dessa forma, ela conseguia por meio de sonhos esquecer que o aquecedor estava falhando. No dia seguinte, o barulho anunciou que o sorvete teria que, novamente, ser adiado, mas os batimentos continuavam e tinham um sabor melhor que qualquer coisa naquele momento.

O quarto escuro não tinha os livros, a velha penteadeira e nem a boneca preferida dela. Era cinza, meio mofado de um lado, frio e não tinha janelas. Ela então concluiu que o cômodo era assim para isolar o barulho dos fogos que até ela achava ser alto demais. No almoço, a comida enlatada começou a causar dores no estômago, mas a fome a fez esquecer qualquer desconforto. Ou já seria a hora do jantar? Ela fechou os olhos e desejou uma pequena fresta por onde raios de luz pudessem entrar e refletir tempos melhores. Sem muito o que fazer, ela se sentou na cama improvisada e fingiu sentir o vento frio de inverno nas bochechas. Ela imaginava que o pai chegaria do trabalho e eles poderiam caminhar pelo centro da cidade como de costume aos domingos. Só não sabia quando!

"Kabum!"

Mais uma vez, ela perdeu o sono devido ao estrondo causado pelos fogos. Começou a sentir falta da escola , da rotina, da vida que podia ser vivida sem medo. Ao redor dela, todos pareciam cansados e apreensivos. Daria tempo de sair do quarto escuro e achar algum lugar para descansar os pensamentos em paz? Seria seguro correr para a fronteira da esperança e deixar para trás as marcas do que já não é? Os canais ficaram fora do ar, ela supôs que teria acontecido algo com a torre de TV.

"Kabum!"

Ela começou a evitar usar o celular para poupar a bateria, mas o coração coçava e as mãos gelavam de agonia. Seria o fim? Ela, que sempre ia bem na escola, cumpria as tarefas e ajudava os mais velhos, pensava se isso não seria algum tipo de castigo pela sexta-feira em que ela esqueceu de alimentar o peixe. A mãe dela passava os dias sentada no mesmo canto. Ela que foi calada pelo barulho e pela ausência do marido. Os olhos se perdiam no quarto escuro como se fosse possível desligar o presente , afinal nenhuma das duas pensou que algum dia ele se apresentaria dessa forma: empoeirado, barulhento, destruído e triste.

"Kabum!"

O bibliotecário também estava no quarto. Ela queria ter tido o mesmo tempo, ou sorte, que ele que trouxe alguns livros. Ela pegou emprestado um deles: Orgulho e Preconceito de Jane Austen. Ela se sentiu acolhida quando leu a frase “e nos livros tudo pode acontecer”. Os olhos brilharam e ela sentiu a esperança pulsar novamente. Talvez lá fora tudo seja possível e talvez algum dia o "Kabum!", que ela sabia bem o que era, embora fingisse que não, voltasse a ser novamente apenas fogos. E talvez o pai voltasse e tivesse apenas que lutar contra a calvície. Talvez seja possível sair do quarto escuro e dizer: acabou.

E o "Kabum!" que a guerra trouxe seria apenas o silêncio que o barulho da ignorância deixou.


Renata Bastos é formada em Jornalismo pelo Centro Universitário do Triângulo. Passou por veículos como G1, TV Integração, TV Paranaíba e hoje integra um programa para 12 jornalistas estrangeiros na Suécia. No tempo livre ama ler, cantar e tocar violão.

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