Patos não é Paris

Por Flavio Sousa

Imagem: Pinterest/Autor Desconhecido

Este texto é uma declaração de guerra. Guerra ao reacionarismo, ao provincianismo, ao baronato e à pomposa hipocrisia dos políticos locais diante da barbárie que destroça Patos de Minas. Não por acaso parafraseio Aimé Césaire¹. É uma escolha consciente para explicitar o quão fundo mergulhamos no abismo da ignorância. Os sintomas do envenenamento cultural que experimentamos estão por toda parte. A falência do corpo social de um povo se manifesta no rosto cansado de gente que não aguenta mais trabalhar e continuar morrendo de fome. Definitivamente, Paris não é aqui.

Há anos a expressão “É Patos ou Paris” foi abandonada. Famosa nos anos 90, a frase se esvaziou e se tornou restrita à elite. Em 2010, o cantor Frank Aguiar lançou canção homônima que caiu nas graças de parte da população. Depois disso, foi novamente engavetada. Em 2022, o bordão ressurge nas redes sociais, repaginado. No lugar da oração, criou-se um substantivo, ou seja, o município foi renomeado. Não mais Patos de Minas, mas “Paris de Minas”. Paris é uma cidade elegante, bela e deslumbrante. É também histórica e marcada por luta, sofrimento e, mais recentemente, por xenofobia e perseguição aos imigrantes e aos negros. Assim como a Capital francesa, Patos de Minas tem sua história, suas lutas, suas belezas (incontáveis!) seus preconceitos e sua própria tragédia. Esse tipo de comparação parece uma prática comum em diversas cidades brasileiras. Para ficar apenas em Minas Gerais, há quem identifique Belo Horizonte como “Belory Hills”, um trocadilho cafona que se aproveita da semelhança – textual, é claro – com a americana Beverly Hills.

A busca por referências europeias ou americanas é antiga como Adão e eterna como o céu. O Brasil transpira colonialismo, portanto, nada que seja genuinamente brasileiro é visto com bons olhos. As marcas da escravidão, como escreveu o magistral Joaquim Nabuco, se embrenharam nas nossas vastas solidões e muitas feriadas ainda não se fecharam. Patos de Minas é um pequeno laboratório das questões sociais mais relevantes do país. O sangue dos escravizados está por toda parte. No passado, o município foi erguido com sangue negro. Depois de terem sua mão de obra sugada até o tutano, foram relegados às franjas da cidade, vivendo nas piores áreas. Para os pobres de tão pretos e pretos de tão pobres, a outrora Capital do Milho, é a Paris de Vichy, nos 1940. Violenta, hostil e longe de ser a Paris festiva dos filmes hollywoodianos.

O complexo de vira-latas², popularizado por Nelson Rodrigues, a partir de 1950, é reforçado quando as referências de beleza, cultura e educação são importadas do Velho Mundo ou da América. Não há nada mais tacanho que rejeitar a identidade nacional, ou pior ainda, a identidade regional. Portanto, por mais que se busque dizer o contrário, não é possível ver nada de elogioso na comparação entre Patos e Paris. A crítica em questão não reside na falta de beleza, valores ou ideais a serem celebrados em Patos de Minas. Muito pelo contrário: é preservação da cultura de um povo inteiro. Povo esse que, muita das vezes, sequer ouviu falar de Paris. Cumpre destacar, na mesma direção, que não se trata de rejeitar os ideários e as belezas da Capital francesa. Entretanto, é preciso dizer: Patos é Patos e Paris é Paris!

Na “Paris de Minas” não há espaços para todos. O que há de melhor já foi abocanhado pelo baronato e será difícil fazer este cão velho e sarnento largar o osso. Faça uma lista das personalidades mais ricas do município e se surpreenda com a assombrosa proximidade entre todos. Famílias inteiras concentram a renda de centenas – ou talvez milhares – de miseráveis. Dizer que Patos é Paris significa, em última instância, que o que há de melhor aqui não é daqui. Esse raciocínio pode ser comprovado empiricamente. Quantos homens ricos importantes você conhece que já estudaram fora e voltaram para herdar fortunas? A lista é imensa, fique seguro!

O acesso à educação pública, de qualidade e gratuita, sempre será um problema para a “Paris de Minas”. A Universidade Federal de Uberlândia (UFU) foi (e continua sendo) rejeitada pelos poderosos. É somente por meio da exclusão e do coronelismo que Patos de Minas se manifesta como “Paris de Minas”. Nesta terra, onde poucos são donos de tudo, sem devolver o mínimo para quem realmente construiu a cidade, a tragédia se repete, ano a após ano. Diariamente entornamos o caldo das narrativas fajutas daqueles que afundaram o município na miséria da mesmice. Enquanto isso, a violência nas áreas pobres e periféricas cresce, a repressão aumenta e muitos sofrem e morrem.

Em “Paris de Minas” o jovem Sérgio dos Reis Gaya Júnior, de 19 anos, professor de capoeira foi morto³ em uma ação policial desastrosa. Na capital parisiense da morte, o caso foi relegado ao esquecimento e somo quatro meses de silêncio, dor e injustiça. Em “Paris de Minas”, a morte de jovens de periferia não merece apuração. Nem mesmo para não deixar macular o trabalho daqueles que, dia e noite, “cumprem seu duro dever, defendendo seu amor e nossas vidas”. Aos relegados resta a miséria, e o corporativismo hipócrita daqueles que sugam e chamam de lucro.

Patos de Minas não é e não precisa ser Paris. São histórias distintas, povos diferentes. Hoje, pela manhã, quando passei pelo Mercado Municipal e vi um outdoor em homenagem ao jovem Sérgio, percebi que é hora de declarar guerra à tacanhice que tomou conta da nossa cultura. Por que deixar apodrecer no silêncio as mazelas que tocam o povo de verdade de Patos de Minas, não de Paris? Não! É tempo de dizer que o povo que aqui se estabeleceu, sem famílias influentes e influenciadoras, é a maioria dessa cidade, é o coração de Patos de Minas. Ao povo, chegou o momento de reivindicar sua autoridade e notoriedade. Enquanto o silêncio prevalecer, as vozes que precisam ser ouvidas serão tapeadas, vilipendiadas.

É hora de colocar um freio na carroça desarranjada e impedir que o município inteiro seja vendido. As comunidades rurais seguem ilhadas. Os estudantes desejam sonhar em outros campos, porque aqui não campus! As mães choram porque os crimes violentos assassinam, em média, 30 jovens na cidade todos os anos. E ainda dizem que em “Paris de Minas” é seguro para se viver. Até ontem, uma mulher negra era escravizada. Ainda hoje milhares estão na informalidade, porque os empregos perderam a qualidade. Um patrimônio histórico do Vila Garcia, o campo do Vila, foi entregue para dar lugar a mais um supermercado! Empregos de pouca qualidade, com jornadas exaustivas e salários médios baixos. Definitivamente, ninguém quer morar em “Paris de Minas”!

Referências:

1 - Discurso sobre o colonialismo - Aimé Césaire
2 - RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Cia. das Letras, 1993. p.51-52: Complexo de vira-latas.


Flavio Sousa é jornalista e escritor. Autor de "Crônicas Devassas". Especialista em marketing de Moda e Celebrante de Casamento.

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