Respostas para o que ninguém perguntou

Por Renata Bastos

Imagem: Gustavo Vinicius

No fim de fevereiro o frio insistia em ficar enquanto alguns pequenos brotos davam sinal de que a primavera logo chegaria com suspiros frescos e olhares perfumados. Há mais de 50 anos, esse era o período preferido de Adélia que passava horas olhando pela janela a neve derreter enquanto tomava uma caneca de chá. Ela amava a sensação de mudança, mesmo morando a vida inteira na mesma cidade e com quase sempre os mesmos vizinhos, pois sabia que a cada estação algo se transformava dentro dela.

Por outro lado, a modernidade de uma era de telas tornou amigos antigos cada vez mais distantes. Eles estavam ali, do outro lado da rua, mas o grupo no Facebook havia se tornado o único ponto frequente de encontro. Adélia não tinha muita paciência e sempre lia as publicações com dias de atraso, afinal não achava justo interromper seu momento com Nina Simone. Ouvindo o rádio ela pensava o quão maravilhoso era sempre encontrar alguma música que correspondia ao que ela sentia e assim ela não se sentia só, afinal quem escreveu a música, alguma vez, se sentiu da mesma maneira.

Sentada no sofá, ela tentava entender o que havia mudado. Parecia ontem, mas quase dois anos se passaram desde o último dia em que ela passou pela estação central. Diariamente ela caminhava devagar pelo corredor que levava até a plataforma dois só para sentir o inconfundível cheiro dos bolinhos de canela que vinha de uma pequena loja de pães. Em dias normais, ela quase sempre esbarrava em alguém ao passar pelos corredores cheios de pessoas altas, elegantes, apressadas, atrasadas, indiferentes. E claro, em dias normais, ela passaria despercebida com seu casaco azul, meias coloridas à mostra, olhos distantes e o caminhar distraído de quem já foi longe demais. Mas não era um dia qualquer. A recomendação veio de cima para que todos ficassem em casa.

Naquele dia não havia cheiro de bolinhos. A pequena padaria estava, surpreendentemente, fechada. Os corredores da estação central estavam quase vazios demais no meio do dia e a princípio ela achou estranho não ter que prestar atenção para desviar das pessoas no caminho até a plataforma, mas depois pareceu bom não ter que procurar lugar para se sentar no trem, afinal eram quase uma hora de viagem até o pequeno apartamento no norte da capital sueca. Além disso, foi engraçado ver as pessoas evitando se sentar perto uma das outras como se as relações entre desconhecidos em terras vikings, aos olhos dela, já não fossem frias o suficiente. No caminho, ela que se perdia em pensamentos ao tentar acompanhar a paisagem pela janela ou ao ler Clarice, olhou timidamente por cima do livro que tinha em mãos e percebeu olhares tensos. Os casos estavam aumentando. Ela também estava com medo então fechou os olhos, suspirou e voltou-se novamente para a leitura. Agora tudo que ela poderia fazer era ir para casa.

Todos entenderam que ficar em casa era uma questão de humanidade, mas após alguns dias muitos começaram a se sentir afetados sem suas rotinas sociais. Nesse ponto, reclamações dos vizinhos no grupo do Facebook eram constantes. Por outro lado, para Adélia, ficar por dias seguidos em casa não era novidade. Em seu pequeno apartamento ela narrava histórias para si mesma e imaginava motivos para tudo o que via pelas janelas. Além disso, banhos demorados, cafés intermináveis e reorganizar a estante de livros de acordo com o humor (dela) eram atividades cada vez mais frequentes. Também aconteciam debates políticos com as plantas e duetos com o pequeno cachorro. O jantar era no almoço que era no café da manhã que por sua vez vinha de sobremesa após o jantar. Fingia não ver o telefone tocar pois achava falta de respeito interromper as respostas do espelho após fazer perguntas complexas. Ufa! Regras não eram mais regras quando rugas apontavam o caminho.

Ansiosa, fingiu não estar preocupada mas conferiu várias vezes e sabia de cor os dados. Ela sentia o coração esfriar e sofria por sentir demais, mesmo todos sendo estranhos. Não era uma possibilidade não se importar. Enquanto ela lia que as autoridades haviam reforçado para que todos ficassem em casa, a vizinha dos cabelos prateados passou pelo corredor irritada com a notícia. A senhora olhou para os olhos de Adélia e analisou o casaco azul como se fosse memorizar os anos desenhados pelas marcas de expressão, indagou e foi embora:

- Como pode alguém sobreviver por tanto tempo em isolamento social?

Adélia olhou para suas meias coloridas, fechou os olhos, respirou fundo e sorriu timidamente quando a vizinha deu as costas.

Ela havia sobrevivido assim por muito tempo. Por quase toda a vida.


Renata Bastos é formada em Jornalismo pelo Centro Universitário do Triângulo. Passou por veículos como G1, TV Integração, TV Paranaíba e hoje integra um programa para 12 jornalistas estrangeiros na Suécia. No tempo livre ama ler, cantar e tocar violão.

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