Do lado onde o coração não bate

Texto e foto por Renata Bastos


José acordou cedo, tomou o café e engoliu um pedaço de pão duro. Vestiu o uniforme já velho de tanto usar e colocou as botinas. No caminho para o trabalho, ele se sentiu grato por não estar desempregado em tempos tão difíceis, mas também se sentiu agoniado por ter que escolher que conta não seria paga este mês. Não era rico, mas antes podia se dar ao luxo de comer carne todos os dias, ir trabalhar de carro e fazer um agrado para as crianças comprando uma caixa de bombons vez ou outra. Contudo, com os preços lá em cima, a “mistura” passou a ser, quase todos os dias, ovos e com a gasolina valendo ouro, a bicicleta enferrujada teve que sair do quartinho de bagunças. Apesar disso, ele tinha esperança de que uma força maior pudesse resolver os problemas e melhorar a realidade do seu tão amado país. Talvez alguém com superpoderes, algum mito.

Mas José não era passivo e, mesmo com todas as dificuldades, ajudava, do sofá da própria sala, aqueles que ele apoiava. O dinheiro para o futebol do filho já não era uma realidade, mas a mensalidade do serviço de internet estava em dia, afinal ele tinha que mostrar o quão dedicado ele era aos que, como ele, se viam ali do lado contrário de onde o coração bate. Nas redes sociais ele atacava, mesmo sem saber o motivo, aqueles que o os “amigos” também tentavam diminuir. Às vezes ele se sentia estranho e tinha a impressão de que algo não estava certo, mas ele não questionava os outros que como ele, dos seus celulares, tanto faziam pela terra adorada. Tão maravilhoso! José finalmente tinha um grupo para chamar de seu. Ele finalmente tinha o sentimento de pertencimento. Uma comunidade acima das outras e que seria igual aos que estavam nos palanques mesmo com salários e padrões de vida incomparáveis. Mas o que importava? Ele era parte de algo grande. Tão grande que os detalhes que realmente importavam passavam despercebidos. José via o que os outros viam e não entendia algo que George Orwell disse em um dos seus livros e que, infelizmente, espelhava e ainda espelha toda essa grandeza: “todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros”.

José não queria perder tudo isso. Era importante se encaixar. E para isso, ele teve que sacrificar assistir TV com a família e nem viu que a filha mais velha estava cada vez mais deprimida. A esposa, Maria, agora vivia irritada, dizia para ele não acreditar em tudo que os filhos deste solo publicavam, mas José não fugia à luta. Por outro lado, a mulher sabia que o marido não era ruim. Ele era querido por todos no bairro, um pai carinhoso, tratava todos bem e frequentava a igreja aos domingos. Agora ele lutava pela “família tradicional” e “bons costumes” que, de tão bons, não incluíam o respeito aos que estavam do outro lado.

José achava que tudo o que estava na internet era verdade e não entendia de política, mas não era culpa dele. Em uma terra onde os mitos não tinham interesse que mitos fossem desfeitos, quanto menos ele fosse educado, menos questionados aqueles que tinham campos com mais flores seriam e no poder se manteriam. E a glória continuaria no passado.


Renata Bastos é formada em Jornalismo pelo Centro Universitário do Triângulo. Passou por veículos como G1, TV Integração, TV Paranaíba e hoje integra um programa para 12 jornalistas estrangeiros na Suécia. No tempo livre ama ler, cantar e tocar violão.

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1 Comentários

  1. Entre um mito sem um pingo de noção ou um super-herói que até preso já foi, o melhor mesmo seria nenhum deles. Pena que o país só consegue optar por esquerda ou direita e não por algo realmente novo.

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