Anônimos: entre a vida e a bebida, histórias interrompidas pelo álcool - Parte 10

Por Gustavo Rubim*


OS ASTROS

CHEGUEI PELA MANHÃ, seu Israel esperava no portão, com o sol debruçado sob uma faixa da calçada e parte do rosto sonolento, enquanto fumava um cigarro e observava o trânsito agitado.

Do outro lado, o Doutor Fabiano, jovial e másculo, todo de preto, inclusive os óculos, que ergue para observar melhor o movimento, arrisca atravessar e hesita. Lá vem a ambulância da UPA, no volante, Sergio, sim, o guarda, que no período ocioso, faz bico na ambulância.

– Cuidado, Doutor! Vai ser atropelado. – grita Israel em meio a fumaça do cigarro.

Agora assim vai o Doutor, com o passo firme de seu sapato Ferracini e olhos à mostra, direcionado aos pacientes que também fumam na parte externa e gera uma verdadeira cortina de fumaça, impossível de suportar.

– Bom dia, Doutor!, bom dia, Doutor!, bom dia, Doutor!…

Deixo Israel na porta e encontro, encostado no portal, Geovane, com um aspecto moderno e descolado, camisa estampada, bermuda jeans, tênis esportivo e um ar de confiança, serenidade. Mal parecia aquele homem de uma semana atrás.



GEOVANE

GEOVANE DA SILVA CRUZ começou a beber muito cedo, aos 13 anos, quando perdeu o pai. O pai cuidou dos filhos, com a ausência da mãe, que Geovane não chegou a conhecer, ainda era bebê. Depois nem por fotografia, “pedi a todos os parentes, ninguém tem foto dela, queria ao menos ver o rosto dela”. Passou a trabalhar, cortava grama, limpava quintal, até encontrar emprego em um lava-jato, quando se deu conta já havia começado a beber. O início do seu alcoolismo, o início do fundo do poço, o início da ruína. Dos nove irmãos, dois perdeu para o alcoolismo e as drogas. “Os outros lutam comigo, nunca me abandonaram, eu que os abandonei”. Saía de casa para beber e ficava jogado nas calçadas. Foram internações atrás de internações, até sanatórios, quando vieram os delírios causados pelo álcool. “Cheguei a beber álcool de posto, gasolina com açúcar, o pessoal de casa não comprava álcool, se encontrasse bebia, qualquer coisa que me deixasse bêbado mais rápido”.

A rua é a parte mais difícil, enquanto está com efeito do álcool é suportável, quando passa, vem a ressaca, física e moral. As pessoas passam pela calçada em direção ao trabalho pela madrugada, e Geovane ali sem nada para comer, sem nada para rebater, apenas abraçado a garrafa vazia “a vergonha é tanta que tudo que deseja é se embriagar de novo, no primeiro boteco que encontrar, para ter coragem de chegar em casa”. Isso quando há alguma coisa, chegou a ficar nu na rua, levaram até a bermuda nova, que havia comprado. Andou por um quarteirão até achar a residência de Zé Everton, amigo do pai. Bateu à porta e o encontrou naquela situação, pelado, era horário de entrada no colégio, a rua estava movimentada. Sorte que não foi preso, conseguiu arrumar um trapo de roupa ali. “Passei do fundo do poço”. Hoje mal consegue dormir, “tem gente que deita dez horas da noite e acorda quatro, cinco da manhã”, só queria ter uma noite de sono. Acorda pela madrugada, assiste tevê, ouve rádio e tudo que consegue são duas, três horas de sono seguidas.

“Nunca fui feliz”, nem quando arrumou uma namorada na clínica de reabilitação, se conheceram na confraternização da noite de Natal, juntaram a ala masculina e a feminina. Ela era do estado de São Paulo, descobriu tempo depois uma traição, “não ia dar certo também, era uma drogada, nunca mexi com essas coisas”, pausa, “é até preconceito meu, se for pensar o álcool é pior que qualquer droga”. Não teve filhos, “graças a Deus, digo porque se fosse ter um pai para sofrer com ele, melhor que nem viesse”.

Outra coisa, “não adianta falar, ‘tem tantos dias que não bebo’, quando vem à recaída, você bebe pelos que ficou sem beber e pelos outros que está bebendo”. Vem aquela vontade, você briga, fica nervoso, e perde a luta, bebe, mas tenta beber menos. “A gente quando é alcoólatra, é alcoólatra até a tampa do caixão fechar”.

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POR ISSO COMPREENDIA A TRISTEZA NO OLHAR DE GEOVANE, mas naquela manhã, no encontro do portão, pude enxergar alguma esperança nos olhos turvos.

– Tem dia que a gente acorda com uma autoestima a mais. – diz com uma expressão leve e sorridente.

Fiquei feliz por vê-lo assim, e ali fiquei, em uma das cadeiras laterais, próximo aos outros pacientes, não cheguei a entrar, apenas observava, algo havia de diferente naquele dia ou meu coração estava mais mole que de costume. Seria a convivência diária? Já algum tempo fazia aquele trajeto. Olhei-os, como quem coloca um na cadeira na porta de casa e observa os trafego de carros, pessoas e cachorros, sem nenhum objetivo específico. Notei que cada um era parte da minha história e que nunca iria esquecê-los, meu trabalho por ali já estava feito, aqueles dias que prolonguei eram apenas vontade de estar perto, para não dizer saudade. Nunca me senti tão bem em um lugar, que, agora, deixava de ser um hábitat para alcoólatras e demais dependentes, passa a ser um lugar de acolhida, de pessoas solitárias, em busca de outras pessoas solitárias.

Sim, um solitário só consegue viver ao lado de outro solitário, ambos compreendem os momentos vagos, de longevidade daquele ser, que simplesmente desliga para se refugiar em pensamentos. Assim pensava até ser despertado com a voz meiga de Lorena que se propagava da recepção.

– Hoje a atividade será aqui fora, leremos signos.

Poucos fumavam naquele dia, estar lá fora era suportável.

Nunca liguei para signos, ainda não ligo e acho algo completamente dispensável, como pode um mês de nascimento, a posição do sol, da lua, de Marte ou Júpiter influenciar no meu modo de ser, que bobagem! E lá estou eu no meio deles, curioso para saber o que o destino reserva para mim.

Não, não é que deixei de achar uma grande bobagem, é apenas curiosidade.

O primeiro a ser lido é Aquário, mês de janeiro, a partir do dia 21 de janeiro. Signo de Geovane, que espera atento às previsões de Lorena, sentada em uma das cadeiras, com os espectadores ao seu redor.

– Pela manhã valorize a aparência, hoje é um bom dia para a descoberta de uma nova paixão. No trabalho foque nos objetivos, uma promoção poderá pintar por aí… – e a boca de Lorena soltava suavemente essas palavras.

E vieram outras mais, genéricas, porém aceitáveis, realmente Geovane carregava um ar diferente e se alegrou ainda mais ao ouvir aquelas maravilhas. Será mesmo que essas coisas são precisas? Realmente acertara, acertara cada detalhe.

Agora Libra, a partir de 23 de setembro.

– Ótimo dia para entrevistas de emprego… – mal terminou a frase e Rildo a interrompeu.

– Estou indo para uma entrevista de emprego agora. Era o signo de Rildo, um dos pacientes, libriano com ascendência em sei lá o que e o bumbum virado para a lua. Não acredito, tem algo de errado, esse negócio acerta tudo. Até comemoramos a vaga de Rildo, que já encaminhava segundo as previsões.

Até que enfim Áries, a partir de 20 de março, meu signo, será que acertará também? Fiquei feliz por ser o mesmo signo de Bruna, depois que conversamos sempre me trata com carinho, assim como os outros, seu Lázaro principalmente, ambos gostamos de Roberto Carlos, diz pelos corredores que somos parecidos, a única diferença é que ele bebe, “toma uma”, diz com satisfação, mal ele sabe que fico muito mais feliz por ouvir isso do que ele. Lorena se prepara, vai dizer, Bruna pede silêncio.

– Não foque tanto no trabalho, tire o dia para um passeio no parque. Um novo amor aparecerá…

Parei por aí, foi até onde meu ouvido conseguiu escutar, realmente a primeira frase fez sentido, mas depois vieram as cores, os números, mas cai a ficha, nada daquilo faz sentido, por mais que tenha preferência pelo número treze e goste de vermelho, não quer dizer nada, são escolhas avulsas. Leu-se mais alguns signos, já estávamos todos contentes e com as vidas resolvidas, talvez fosse melhor assim, nos iludirmos com os prognósticos.

Na manhã seguinte Rildo chegou, não com o passo firme, mas com o andar desmedido, pegou um pão seco, abriu a garrafa de café e o despejou dentro do pão, que umedeceu até que caíssem gotas pelo chão, assim entrou pela recepção que uma das meninas: Maísa, Consola ou Fran, acabará de limpar, deixando o rastro de gotinhas marrom pelo chão. Creio que não conseguiu a vaga de emprego.


FILHO PRÓDIGO

JÁ OUVI POR MUITAS VEZES A HISTÓRIA DO FILHO PRÓDIGO, porém não contada por Flávia e com comentários dos pacientes.

Aquele ingrato. Ele tinha um irmão, o pai dividiu a herança entre os dois, logo ele torrou tudo, desobedeceu. Depois ficou pobre e o irmão ia bem com o pai. Agora sem nada, queria voltar para casa, parece que aceitou.

COMENTÁRIO CEARÁ
E torrou tudo mesmo? Com o quê?

Parece que foi na putaria, bebida, cigarro, prostituição. Quando não tinha mais nada foi trabalhar alimentando os porcos, não podia comer nem a comida deles.

RESPOSTA CEARÁ
Bicho besta, podia ter matado um porco daqueles e comido. Agora, todos concordam com a opinião de Ceará.

VOLTA A CONTAR FLÁVIA
Podia mesmo, mas o pai dava comida boa para os empregados, por isso voltou. Pediu serviço lá, como escravo, nem era carteira assinada.

COMENTÁRIO BRUNA
Isso aí parece com a gente aqui, fazemos as burradas, juramos que nunca mais vamos beber, que vamos mudar, aí volta a fazer cagada. Aí cansa, né!? A família desiste da gente, mas quando precisamos ainda estão lá.

Faz sentido, Deus também é assim, não sei como não desiste da gente.

PERGUNTA DO CEARÁ
O outro irmão é o que anda certo?

RESPOSTA FLÁVIA
Parece que é, mas ficou bravo porque o pai fez festa para o irmão. Mas o pai explicou que amava os dois.


ASSEMBLEIA II

MARIA LÚCIA DESSA VEZ ESTAVA AUSENTE, as queixas foram às mesmas da última assembleia e João Batista continuava a falar, seu Cleto e Walter conversavam ao fundo e pouco prestavam atenção, distraídos pelos sons da rua, a reunião foi no espaço reservada ao fumo.

João falou dos guardas, que não separavam as brigas envolvendo os internos, o guarda ouvia calado e tinha a mesma expressão negativa de Lorena.

Naquele dia, Fernando, que estava de plantão, disse que seu trabalho se limitava a proteger a integridade física dos funcionários e objetos, como CADEIRAS. João continuava a falar, já sem a tipoia, tornavam seus movimentos giratórios no centro da roda mais ágeis e desenvoltos. Falou do comportamento de alguns pacientes, falava de RENATO, nisso todo mundo concordava, devia ser expulso ou enviado para departamento.

Emerson, um dos enfermeiros, olhava pela janela de seu habitat, a sala onde fazem e preparam os curativos. “Sabia que houve um ex-funcionário que escreveu um livro sobre o Caps, o livro se chama ‘Um dia após o outro’, o dele me esqueci”. Pensava no título a dar para esse livro, ainda não sei. Era um homem simpático e observava com a mesma simpatia pela janela, coberto por algumas plantas do seu Cleto, Morena Rosa e Onze Horas.

– É só ele que fala, é?! – Disse Ceará e João voltou a sentar-se.

Como naquele dia todos assinaram as atas, com as letras trêmulas e imprecisas.

Já era hora de ir, quando despedi de Lorena, ainda tinha as expressões negativas, perguntei ainda o que houve e me respondeu apenas com um cair de ombros, “nada não”. Assim a deixei e fui-me.

[CONTINUA]

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FICHA CATALOGRÁFICA

RUBIM, Gustavo Pereira. Anônimos; entre a vida e a bebida, histórias interrompidas pelo álcool/ Gustavo Rubim – Patos de Minas: EDITORA, 2019, 116 p.

Capa: Gustavo Oliveira
Diagramação: Gustavo Oliveira
Fotografia: Gustavo Rubim
Revisão: Profª Ms. Regina Macedo Boaventura/ Profª Sintia A. Pereira da Silva
Orientadora: Profª Ms. Regina Macedo Boaventura

1. Livro. 2. Livro-reportagem. 3. Alcoolismo. Jornalismo Especializado I - Centro Universitário de Patos de Minas. Fundação Educacional de Patos de Minas, Patos de Minas, 2019.


* Gustavo Rubim, 22 anos, brasileiro, jornalista pelo Centro Universitário de Patos de Minas, Unipam - Brasil. Mestrando em Integração Latino-americana pela Universidade Nacional de La Plata, UNLP - Argentina. Vive em La Plata - Argentina.

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