Por Gustavo Rubim
“Não é necessário sair de casa. Permaneça em sua mesa e ouça. Não apenas ouça, mas espere. Não apenas espere, mas fique sozinho em silêncio. Então o mundo se apresentará desmascarado. Em êxtase, se dobrará sobre os seus pés.” — Franz Kafka
Frederico Fernandes, um senhor senil; velho, decrépito, muito mais por seus hábitos avelhantados que necessariamente pela contagem dos anos, sabia que aquela segunda-feira chuvosa, em que os pedestres apressados se desconheciam na calçada, enquanto se refugiavam da carga d’água por debaixo das marquises da Major Gote, seria seu último dia. Por decorrência ou, pode-se dizer, consciência desse “acontecimento”, Frederico demorou-se pouco mais que o de costume em sua varanda naquela manhã agitada, como se desejasse agarrar com os olhos seus últimos átimos terrenos, buscando em cada rosto algo de familiar. Para facilitar a perícia, recolheu suavemente, em um pequena poltrona ao lado que lhe servia de apoio, seus óculos de armações grossas. Retirou, de uma cartela de cigarros Marlboro, há tempos guardada numa gaveta de escritório, o tabaco úmido. Faz tempo que havia abandonado o vício, Pensou. Custou a acendê-lo, enquanto ruminava em seu íntimo a causa pela qual deixou de fumar: talvez evitar um câncer de pulmão. Junto a ponta afogueada do cigarro, um raio de sol chegou à varanda e tocou seus pés, como que anunciando o dia que despertara há tempos para os lojistas Majorgotinos. Viu a fumaça desprender-se lentamente do fumo e desfazer-se diante de si, “eis a vida!”. Pôs o Marlboro entre os lábios e tragou com agudeza, sentiu o fumo invadir os pulmões, logo soltou a fumaça pelas narinas, que deixou em seu paladar um terrível gosto de barata. Cuspiu e atirou fora o cigarro.
Por quase três décadas, Frederico Fernandes ministrou aulas no curso de Direito do Centro Universitário. Bom professor, muito pedagógico, mas pouco querido pelos alunos. Ano a ano assustava-se com a decadência intelectual daqueles sujeitinhos orgulhosos que sentavam-se diante dele; quando aparecia um ou outro com bagagem literária, era rasa demais para se esperar algo… deixou de ser exigente para se adequar a capacidade dos alunos [já não havia estimulo para ensinança] e evitar a alcunha de severo. Por muito tempo culpava-se diante disso, seria ele o responsável pela ignorância de seus discentes?, ainda que não fosse de todo, alguma contribuição tinha. Para aliviar-lhe o peso, li calorosamente em sala, sentado na ponta da mesa professoral, O Processo, de Franz Kafka: “Diante da Lei está um guarda” — iniciava em tom homérico, ainda pacífico. “Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei”, acentuava a voz nesse trecho e, com a mão que não segura o livro, gesticulava como se regesse uma orquestra. “Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar-lhe a entrada”. Seus olhos tomavam um brilho assustador e o professor falava à turma cada vez mais consumido por um sentimento febril, até que despertava até os alunos mais sonolentos, que destacavam a cabeça por cima dos braços debruçados sobre a mesa, entre o riso que fazia coro. Seguia sufocando o gargalhar coletivo, “O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. — ‘É possível’ — diz o guarda. — ‘Mas não agora!’. Os olhos já lacrimosos do professor, derramavam-se em lágrimas grossas na recusa eterna do Guarda, deixando-se escorrer por seu traje modesto e antiquado. Os colegiais chegavam a contorcerem-se no chão, diante da cena cômica a qual o professor se submetia. Porém o professor, absorvido pela narrativa kafkiana a todos e a si mesmo, segui contendo os soluços, que, ora ou outra, davam-lhe pequenos balanços corporais, “ — ‘Se todos aspiram a Lei’, disse o homem. — ‘Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?’”. Nesse instante da narrativa, a pupila do professor se dilatara, suas mãos trêmulos custavam a segurar o volume, ele se agitava e bradava a turma, “Atenção, meus caros!, atenção!, eis o sublime e inexplicável”. Se acordara de seus tempos de estudante, em que lia compulsivamente a parábola, em uma velha edição da Biblioteca Central, no apartamento 201 de um prédio amarelo, na rua Amor & justiça, nº xx, detrás do Hospital Regional. Passou longas tardes nessa releitura, sem nunca compreender de todo o trecho final que anunciava aos alunos. “O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: — ‘Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a’. O suor mistura a lágrimas umedecera a camisa de Frederico, que encontrava-se, nesse fim, exausto. Erguera a cabeça, como a criança que após apanhar da mãe e esconder-se em um canto, sai para receber o consolo materno, avistava turbiamente a turma convertida em uma plateia de circo; porém, esse acontecimento não abalara seu espírito. Frederico Fernandes chegara a dizer em classe, que cinco anos de graduação da Lei, não lhes ensinariam a metade do que poderiam aprender nas páginas [não queimadas] de Franz Kafka e que uma OAB não provava nem de perto o conhecimento da Lei.
A fama de patético, embora fosse um homem culto de densa literatura, perseguiu Frederico pelos corredores do Centro Universitário e pelos corredores sociais. Frederico não possuía nenhum traço afeiçoador, seu semblante era rudimentar, embora não fosse um homem feio, tampouco era belo. O rosto magro e angular, o cabelo grisalho, davam-lhe algo de bem-encarado. O tráfego de Frederico, limitava-se ao 1º e 2º piso do Bloco C, caso necessitasse por alguma incumbência ir a outra área, perdia-se como o Senhor K pelo tribunal. Assim, por exemplo, para chegar ao Bloco I, onde formam-se engenheiros e arquitetos, fazia uma rota lateral atravessando os estacionamentos, nunca o caminho mais rápido das rampas pelos blocos D [E, pula] F, G…, para Ele, era como caminhar por um alfabeto. Com exceção daquela manhã, levantara-se sempre cedo, pouco depois das quatro da manhã. Lia poesia até às cinco; escrevia numa Olivetti Lettera 82 cor verde — situada num canto de um cômodo em desuso — sempre em papel pólen A4 90g/m² sem pauta, entre cinco e seis da manhã. Depois erguia-se da cadeira emadeirada. Calçava os sapatos à porta. Descia a pequena espiral de degraus, atravessava a Major Gote ainda sonolenta e ia tomar seu desjejum no Café Expresso; dois pães-de-queijo e duas doses de café com açúcar. Naquele horário, a clientela envelhecida bebericava o líquido preto em copos-americanos. Um contraste para quem passa por ali ao meio-dia e sente entrar pelas vias nasais o odor de gordura e suor. Balcão e mesas ocupadas, alguns olhos fixos ao jornal da tarde, que respinga sangue pelo aparelho preso à parte mais alta da parede lateral.
Para quem desconhece Patos de Minas, ou a desconhece peatonalmente, a Major Gote é a Aorta da Cidade, o vaso sanguíneo mais importante que garante que o sangue saia do coração e siga para outras partes do nosso organismo. Ou melhor, É a maior artéria de nossa Cidade. Além disso, a Major Gote é, sem dúvida, a mais conhecida das artérias. Isso não é por menos, uma vez que se trata da maior e principal artéria do nossa Patos de Minas, e para os peregrinos é sempre um guia: perdeu-se, busca-se o Major. Para Frederico Fernandes, o mais Majorgotino dos patenses, a Major Gote é como um corredor de sua casa. Do deságue da Avenida Marabá até o contorno do balão para entrar na Av. Juscelino Kubitscheck de Oliveira, Frederico conhecia cada metro de chão, sua vida resumia-se a essa rua, onde localiza-se: o Centro Universitário, seu local de trabalho; ópticas e farmácia a cada esquina; Cafés para as refeições; até mesmo o velho Regional, de lá para debaixo da terra… Cemitério Jardim Parque Da Esperança.
Às 12 1/4, descia vagarosamente até dobrar à Avenida Brasil, larga e movimentada — para não dizer que sua vida resumia-se a uma rua. Puxava uma das pesadas cadeiras de madeira, com o encosto vestido com um pano branco, do Restaurante Delícia; alimentava-se sempre do mesmo, arroz e peixe. Sua companhia, e único amigo, Padre Genésio, comentava: — depois de O Velho e o Mar, nunca mais consegui comer peixes, desgraçado Hemingway; ainda matou-se. Frederico ria quando o Padre deixava escapar alguma grosseira.
— Que mal há no suicídio, meu Velho! — discursava o professor, ainda faminto — se Deus deu-nos o livre-arbítrio; possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante, porquê não gozemos dessa liberdade para matarmo-nos. — sorria alegremente na pausa da fala — — Veja!, sou um velho professor, desperdicei-me a vida, que mal há em atar-me uma corda no pescoço e ir destino ao descanso eterno; o não pensar em nada. — gargalhava Frederico sob os olhares do amigo.
O Velho Padre movia-se na cadeira, como que se ajeitando o corpo ajeitasse também os pensamentos, sem permitir que seu incômodo corporal se tornasse um incômodo ouvinte. Pausou e concentrou-se no zumbido de uma mosca que passeava em uma mesa vizinha.
— As fêmeas da mosca-doméstica são um pouco maiores que os machos e apresentam um espaçamento maior entre os olhos. É curioso no reino animal [principalmente entre os invertebrados] as fêmeas terem superioridade física sobre os machos e isso não se refletir entre os Seres Humanos, embora eu ache que as mulheres tenham sim superioridade sobre os homens, mas uma superioridade de outra natureza; não física. As fêmeas das moscas-domésticas apresentam também duas asas funcionais, com o outro par convertido em balanceiros [ou halteres] que estabilizam o voo. Cada fêmea pode pôr cerca de 8 mil ovos brancos. Decorridas 24 horas após a postura, ocorre a eclosão das larvas, as quais se alimentam de restos orgânicos ricos em nutrientes, ou seja, os restos de comida da mesa vizinha. Apresentam uma coloração pálida e 3 a 9 mm de comprimento, fusiformes, com a boca terminal e sem patas. Quando a alimentação é suficiente, transformam-se em pupas com cerca de 8 mm de comprimento e coloração que varia de vermelho a castanho. Ao concluir a metamorfose, o adulto rompe um dos extremos da pupa com um corte circular, emerge e voa em busca de congéneres para acasalar e concluir o seu ciclo vital. Os adultos podem viver uma quinzena em estado selvagem, podendo atingir períodos de vida mais longos em laboratório. O ciclo de vida completo de uma mosca no meio natural varia de 25 a 30 dias. Pense que para esses pequenos insetos os dias possuem peso de anos ou teria se vivessem em estado de consciência.
— Onde deseja chegar com isso, Velho Padre? — interrompeu Frederico — , logo esclarecido pelo sacerdote: — não é onde desejo chegar, Jesus falava por parábolas, eu falo por encheções-de-linguiça. Tenho 76 anos e eles passaram-me rápidos como a existência de uma mosca, todos somos um pouco moscas-domésticas pois vivemos na sujeira deste mundo e alimentamo-nos dela. E quantos não dariam tudo para meterem as mãos um pouco mais nessa sujeira?. Não sou partidário da indignidade do suicida, nem sou condizente com ele. Trato como uma enfermidade mental e do espírito, não há suicídio lúcido!. Quanto a sua pergunta, sei que não há respondi, Deus é a vida, Jesus, seu filho, veio para que todos tenham vida, vida em abundância (Jo10,10). — calou-se um pouco exausto pelo esforço do discurso.
— Velho Padre, morrerei hoje!, assim como Deus está morto, não cito Nietzsche, digo que Deus está morto para mim, pode ser que ele viva para ti e em ti. Deus é uma questão de acreditar, se crer, ele operará os milagres que deseja e os que não operar, dirão: foi da vontade Dele!. Não julgo-me mais inteligente, tampouco superior, por não ter fé, pelo contrário, esse é um caminho mais árduo que o das imposições da religião. O senhor ri, sei que não para zombar de mim, porém, até aqui assumi inteiramente minhas culpas e acertos, tentei ser bom sem o propósito de uma recompensa celestial. Nunca temi o Inferno, pois se Deus não existe, o Diabo muito menos, por que que Deus criaria sua antítese?!. O Inferno é aqui, Velho Padre, o diabo somos nós que destruímos a Criação, se há Deus e deuses, ele é a Criação; a Natureza. Há mais pecado em derrubar uma árvore que em derrubar um homem. — as palavras do professor enchiam-lhe a boca numa convulsão falática — Com que régua mede-se os atos dos Homens?, impossível!, impossível!. Não há justiça no mundo pois a justiça é humana e tudo que é humano é injusto. Agora vamos comer, a entrada foi servida, de sobremesa, quero pudim-de-leite, eis minha última vontade!
O Padre olhava Frederico Fernandes, pela primeira vez, sem fé nas palavras do amigo. Não ousou questioná-lo, já tiveram muitas daquelas discussões acaloradas e gostava dessa atitude de Frederico de não vesti-lhe a batina. A chuva, que banhava a cidade há semanas, deu trégua e o sol destacou-se tímido. Os pedestres baixaram seus guarda-chuvas e desviavam das poças d’águas que se formaram na calçada. O dia estava novamente belo.
— Vou morrer, Padre!, esse é, quem sabe, o último raio de sol que vejo.
— Todos vamos, meu Filho! — consolou o Padre, contemplando o semblante triste e preocupado de Frederico, que apenas agora compreendia sua situação — desde que nascemos caminhamos para a morte.
Frederico deixou o restaurante, sem apreciar o pudim. Eram quase duas horas. Caminhou pela praça Getúlio Vargas, decidido que voltaria à noite para observar as luzes de Natal [o que não fez, se lembraria mais tarde], uma data que para ele havia significado apenas decorativo. A grama cintilava em um verde fresco, sentiu vontade de arrancar os sapatos e pisá-la descalço; não ousou. Ia lento, com os braços cruzados para trás e cabisbaixo. Parou na banca de jornal, defronte ao antigo Fórum, comprou a Folha Patense e o Estado de Minas do dia. Sentou-se num banco detrás da Catedral de Santo Antônio de Pádua — em que operários trabalhavam em uma eterna reforma; cobriam um amarelo lavado de chuva com um cinza-névoa — e pôs-se a ler o noticiário, a velha ladainha!… para ele o factual era tão antigo quanto o passado, “Repórteres semianalfabetos, comem todos os artigos!”. Também, de que importariam as notícias se aquelas eram suas últimas horas, o dia escapara-lhe pelas mãos, a vida escapava-lhe pelas mãos.
Regressou à casa pela rua General Osório, observando as vitrines do ateliês. Viu-se devolvido a sua Major Gote, o sol baixara sob seus ombros, avistava uma raja alaranjada no horizonte. Seus passos pesavam como se arrastasse um corpo além do seu. Os Majorgotinos se retiravam, as lojas baixavam as portas metálicas, restavam apenas as farmácias 24h e as iluminadas lojas dos chineses, que, à época natalina, baixavam as portas lá pelas nove da noite; pobres moças de pé à entrada. Frederico Fernandes deu-se conta de que estava para morrer. Fez um último esforço para galgar a espiral de escada, ainda teve impulso para pensar no Amigo Padre; um pensamento breve e sem importância, como esses que antecedem a morte. O que faria naquelas instantes de vida restantes?, o de costume, talvez à noite leria o Pessoa em voz alta, como ato final de vida. Ouviria o ruído noturno da Major Gote, a observa as luzes dos semáforos com impaciência; era de fato um bom dia para morrer. Agarrou o volume do Livro do Desassossego, leu duas páginas; já não há mais tempo, nem duas vidas seriam suficientes para ler tudo. Repouso a cabeça no travesseiro, ao som de Waltz of the Flowers, de Piotr Ilitch Tchaikovski, e descansou.
Fim.
Gustavo Rubim, 23 anos, brasileiro, jornalista pelo Centro Universitário de Patos de Minas, Unipam - Brasil. Mestrando em Integração Latino-americana pela Universidade Nacional de La Plata, UNLP - Argentina.
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