Em 1572, depois de uma epopeia, maior ou igual a vida e a trajetória de seu autor, foi publicado em Portugal o livro, Os Lusíadas, de Luís de Camões. O livro, segundo Luís André Nepomuceno, “Os Lusíadas, projeto ambicioso, revelador da espantosa erudição do poeta, narra a história da viagem inaugural de Vasco da Gama que, entre 1497 e 1499, margeou a costa atlântica da África (já conhecida e navegada dos portugueses) e descobriu o caminho marítimo para a Índia.”.
No entanto, se Camões canta as façanhas heroicas, grandiosas e ingentes de Vasco da Gama, “o forte capitão” [1464-1524], e claro da lusa gente, Nepomuceno nos desvela em seu artigo, que a conquista do “Oriente” e a expansão ultramarina portuguesa nesse momento, foi comandada por um fidalgo, que “...enforcou gentes, cortou mãos e pés, bombardeou cidades, assaltou barcos, queimou tripulações vivas e fez mais o que lá não se contou.”. E ontem, como hoje, claro através de vassalos desclassificados, o carniceiro, o genocida, é transformado em herói, em mito...
Só para lembrar, o português, Luís Vaz Camões [c. 1524-1580] de biografia, até hoje com lacunas, além dos Lusíadas, publicou poesias líricas e peças teatrais. E a sua própria vida foi uma epopeia quase que inverossímil: fidalgo metido a valentão? Galanteador? Um humanista, no sentido de saber quase tudo de seu tempo em termos culturais, que foi soldado e que perdeu um olho em nome del rei? Um exilado para o “oriente” que foi encarcerado mais de uma vez? Que em sua volta para Portugal, além de ter sido um náufrago teve que mendigar comida e passagem de volta?
Sobre o artigo, de Luís André Nepomuceno, “O Oriente no olhar de Camões: uma verdade que convém”, publicado na importante, Afro-Ásia, uma das mais longevas e sérias revista do gênero, no mercado desde 1965, que viu inúmeras publicações serem extintas, só posso escrever: que texto magistral, como sempre! Pode parecer um chavão, mas nunca um chaveco.
E sobre Luís André Nepomuceno, já escrevi alhures e repito: professor de literatura, que além de inúmeras palestras e artigos, lançou seu primeiro livro, “A Musa Desnuda e o poeta tímido: o petrarquismo na arcádia brasileira”, em 2002. Depois, “Antipalavra”, de 2004, em 2008, veio, “Petrarca e o Humanismo”. E inúmeros outros, como o último, “Relicário de todas as coisas”, de 2022. E há uma década, ou mais, vem pesquisando sobre o renascimento português.
Sobre as conquistas ultramarinas portuguesas eu já sabia que aquilo ali foi uma “sangreira épica”, como diria E. Wilson, sobre a Guerra Civil Americana...Em minha de-formação lá em Villa Rica, na década de oitenta, a década de tudo para mim, eu já havia corrido os olhos, dentre outros livros, em K. M. Panikkar, “A dominação ocidental da Ásia: do século XV aos nossos dias.” Livro raro e quase proibido naqueles tempos, e primordial para esses assuntos de que trata Nepomuceno. Mas não com tanta intensidade e narrado pelos cronistas coevos... que Nepomuceno cita em profusão.
O que está acontecendo com os yanomamis hoje, tem chocado aqui e o resto do mundo, e mostra que crimes dessa ordem são cometidos por incrível que pareça, em nosso quintal, mas na verdade, não precisamos de lupas em nem de um iphone, para sabermos que genocídios, mais sanguinolentos, velados ou não, estão acontecendo em todas as partes desse Mundo imundo nesse exato momento. Mas são injustificáveis e imperdoáveis, sem anistia. Só que agora, os fatos são ao vivo e em cores, cinzentas, por sinal. E em meu teclado e em minha tela, sinto cheiro de sangue e carnes humanas em decomposição cotidianamente, diuturnamente.
E não se esqueçam nunca, a empreitada orquestrada por Vasco da Gama no Oriente, também acontecia na “Terra dos Papagaios” que depois se chamaria Brasil, e o genocídio aqui, teve seu começo com a chegada de outro português, Pedro Álvares Cabral, ao sul Bahia em 1500. E para um ex-presidente do Brasil, que se encontra em autoexílio ou foragido conspirando golpes de estado, e logicamente mais genocídios, toda a questão indígena desde então, incluindo aí os yanomamis, se resume nessa premissa: "Até vale uma observação neste momento: realmente a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país.".
E como K. M. Panikkar, citado no artigo de Nepomuceno nos diz, “os europeus sempre se comportaram em relação aos asiáticos como se os princípios do direito internacional não se pudessem aplicar fora da Europa, como se a dignidade moral dos povos da Ásia não pudesse colocar-se no mesmo pé com a deles.”.
Mas como Nepomuceno menciona, os “orientais” também, fizeram, fazem e ainda farão o mesmo, genocídios, genocídios e genocídios. E parece, que os portugueses foram os primeirões ali na área, mas depois vieram os outros colegas do velho e sujo continente, fossem católicos, protestantes ou judeus, e se espalharam pelo resto das terras de infiéis e outros semoventes sem lei e sem alma, para civilizá-los e sifilizá-los, como escreveu Chico Buarque. Aqui, do outro lado, Hernán Cortés et caterva fariam o mesmo, com os mesmos tipos de armas e o mesmos escopos sem escrúpulos. Na África, foram inúmeros Gamas e “a mercadoria” que era embarcada em tumbeiros, também já fazia o mesmo com os seus, que tinham a mesma tonalidade epitelial. Mas desde o neolítico esses bípedes só fizeram isso, pelo menos, a maioria deixou de ser antropófaga e aprenderam a ler, escrever e ditar leis. E nessa sua marcha, sempre ao seu lado, uma cruz, um sacerdote ou um altar limpo ou sujo de sangue, amém.
Camões, era poeta, e como alguns deles, transformou o horror em sublime. E ele mesmo, poeta-soldado e caolho por causa disso, não sangrou algum “outro”, “por boniteza e percisão”? Assim parafraseando um outro poeta e conterrâneo seu, Fernando Pessoa: “Ó Lusíadas, quanto de sua tinta são sangue de orientais e africanos?”.
E em tempo, o velho, Gama, como sabemos, não leu o monumento literário que o imortalizou, morreria quase meio século antes da publicação “d´Os Lusíadas” de Camões. Entretanto, Gama, construiu um imenso cemitério no oriente, mesmo não sendo coveiro, como uns e outros aqui, e seu próprio mausoléu e ficou lá em Cochim, na Índia...
Camões, retornou a Portugal, publicou seu livro, teve sua glória em vida e da mesma forma, em vida experimentou sua decadência e seu esquecimento e o Império que cantou demorou alguns séculos para cair e viver como ainda hoje vive o lamento dos mortos que surgiram das grandes e efêmeras conquistas, e as glórias do passado, e “as verdades que convém”... Mas, sem dúvida nenhuma ano que vem os quinhentos anos de seu nascimento serão merecidamente rememorados, paradoxalmente.
NEPOMUCENO, L. A. O Oriente no olhar de Camões: uma verdade que convém. Afro-Ásia, Salvador, n. 66, p. 45–76, 2023. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/49522.
José Eduardo de Oliveira é licenciado em História pela Universidade Federal de Ouro Preto
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